* Nuno Pinheiro
04 de maio
2024 - 22:30
O problema
é mesmo o assumir a história. Portugal até o fez quando o assunto, bastante
antigo eram as perseguições aos judeus. As reparações significam, para
Portugal, o afastar o discurso luso-tropicalista que, mesmo 50 anos depois do
fim das colónias, continua a predominar.
50 anos
depois de uma revolução que pôs tudo em causa e chegou mesmo a mudar a
geografia da pátria, surge uma nova vaga de discussão dos símbolos nacionais e
também da história e do império.
Os símbolos
nacionais são, e isso tem dignidade constitucional, a bandeira e o hino, ambos
provenientes do 5 de outubro de 1910. O seu desrespeito é crime punível com,
até um ano de prisão. Quer isso dizer que não podem ser discutidos? Se até as
pátrias (entendidas como países) mudam, porque não os símbolos. Alguém nascido
em 1944 na Crimeia, teria nascido na República da Crimeia, uma das Repúblicas
da URSS, porém, em 1945, essa república foi integrada na República Russa, para
em 1954 passar a fazer parte da República da Ucrânia, igualmente parte da URSS.
Em 1991 teria passado a ser cidadão da Ucrânia independente, para em 2014
passar a ter nacionalidade da Crimeia e logo a seguir Russa. As pátrias mudam,
podemos discutir os símbolos.
Talvez a
maior mudança provocada pelo 25 de abril tenha sido a independência das
colónias. Foi o fim do império, presente na vida portuguesa desde 1415 (Tomada
de Ceuta). É uma das maiores mudanças na vida nacional e também levou a uma
nova constituição, a de 1976, que continua em vigor. Porém, talvez por se ver
como herdeiro do regime republicano, o novo regime democrático não colocou em
causa os símbolos que vinham de 1910, porém estes símbolos estão cheios do
passado colonial.
O Hino,
nascido no ambiente do ultimato de 1890, evoca em primeiro lugar a expansão,
vista como uma glória passada que se queria renovar. O renovar era a viragem
para África que os Bretões (na versão original) queriam limitar. Se em relação
à questão colonial está desatualizado, o pior é ser um hino de um país que se
via como decadente e que canta, precisamente essa decadência. Não creio que
hoje Portugal seja, ou sequer se veja como um país decadente.
A bandeira
foi alvo de acesa discussão antes de ser aprovada. Discutia-se o verde e rubro
por oposição ao anterior branco e azul. Foi aprovado o segundo em sinal de
mudança, com o tempo passou a dizer-se que era o verde da esperança
(inicialmente seria mais do positivismo e do futuro) e o vermelho do sangue,
quando inicialmente seria sobretudo associada ao combate. Lá está a esfera que
simboliza a expansão, as cinco quinas simbolizando os cinco reis mouros
derrotados por D. Afonso Henriques na Batalha que sucedeu ao milagre de Ourique
(já na altura desmontado por Herculano) e os sete castelos, algo misteriosos,
mas que podem representar a incorporação do Reino dos Algarves. Entre os
símbolos propostos em 1910, mas não aceites, ficou o barrete frígio, símbolo da
república. Pena, porque ao menos teríamos um símbolo revolucionário.
É uma
bandeira mais virada para o passado do que para o futuro, estando, nesse
sentindo, na mesma linha do hino. Ambos são fruto de uma época em que, quer na
música, quer nas artes visuais, não se procura a simplicidade. Aí de quem,
hoje, queira fazer simplificações, nem que seja para um logotipo que, do ponto
de vista gráfico, deve ter a austeridade necessária para ser reconhecível em
formatos muito pequenos. A discussão foi enorme, as acusações de desrespeito
também, tudo à volta de um pequeno símbolo gráfico, inspirado, mas não igual à
bandeira. Diga-se que este logotipo substituiu um, encomendado pelo anterior
governo, que, obviamente, também era uma interpretação gráfica (mas pior) da
bandeira.
Antes de
aprovar esta bandeira, houve discussão, mas talvez se tenha perdido a
oportunidade de o fazer de novo em 1974/75, que foi uma mudança maior que a de
1910. Talvez a oportunidade se tenha perdido porque, como dizia Eduardo
Lourenço, ainda falta descolonizar as mentalidades. Acrescento, depois de me
ter cruzado com mais um monumento de enaltecimento da expansão que parecia de
1943, mas era de 2003, que pouco se fez para essa descolonização. Mas o que nos
impede de discutir hoje o hino e a bandeira? A virulência do debate justifica a
sua necessidade. A ideia de que só fazê-lo será uma traição à pátria, ainda
mais.
De local
inesperado, já que insuspeito de ser um ativista anticolonial, antirracista ou
anti seja o que for, Marcelo Rebelo de Sousa, surgiu a ideia de reparação pelos
malefícios do colonialismo. Não foi muito específico, estamos a falar da guerra
colonial, de um período mais alargado, ou mesmo de 600 anos, desde o século XV?
A onda de protestos contra estas declarações foi ainda maior. Na sua crista o
Chega a acusar o presidente de traição e proclamar o seu amor pela pátria, pela
história pátria (tão bem aprendidinha naqueles livros com desenhos de meninos
da Mocidade Portuguesa) e pela alma portuguesa (dava o nome para uma loja de
souvenirs de produtos antigos portugueses, vendidos a peso de ouro, mas já
existe uma coisa parecida com um nome semelhante). Se Ventura diz 100, há
sempre quem o siga a dizer 50. Pela parte da IL, a preocupação é com os euros,
nada de ideologias ou princípios que a nossa religião é o dinheiro. O governo,
fala em “respeito pela verdade histórica”, e lá estamos de volta aos livros com
os meninos da mocidade, talvez numa versão mais atualizada e talvez alguém se
lembre das tentativas de Nuno Melo de censurar programas que não cabiam na sua
conceção salazarista da história. Mas também há quem, em vez de 50, tenha dado
só 25, Marta Temido, cabeça de lista do PS às Europeias, veio, a este
propósito, falar “em desrespeitar aquilo que é a História, aquilo que é o
envolvimento de todas as partes num processo histórico.”
Interessante
que venha de quem veio, Marcelo Rebelo de Sousa falou em crimes e esses
existiram, na maioria ficaram anónimos, mas ele próprio prestou homenagem a
Marcelino da Mata, o mais reconhecido criminoso da guerra colonial. Mais
interessante ainda é perceber se são devidas reparações aos povos das antigas
colónias. Uma defesa, que vi, inclusivamente em pessoas insuspeitas de
admiração pelo colonialismo, é que Portugal não deveria essas reparações por
ter deixado boas infraestruturas nesses países. Olhando para fotografias das
partes brancas de Luanda, ou Lourenço Marques, até podemos acreditar nisso, mas
essa uma ponta de verdade em territórios em que faltava o básico, em populações
a quem faltava o mínimo dos mínimos.
Também a
devolução de bens culturais se deparou com narizes torcidos, afinal, não é nada
de importante, coisas tribais, numa demonstração de sobranceria euro centrista
e racista.
Não parece
plausível pegar numa nota e entregá-la a cada cidadão das ex-colónias, a cada
descendente de escravos, mas programas de cooperação, acesso a estudantes a
universidades, até empréstimos são formas possíveis. Mas Portugal até o tem
feito, poder-se-ia discutir o aprofundamento, só que o problema não é esse. O
problema é mesmo o assumir a história. Portugal até o fez quando o assunto,
bastante antigo eram as perseguições aos judeus. As reparações significam, para
Portugal, o afastar o discurso luso-tropicalista que, mesmo 50 anos depois do
fim das colónias, continua a predominar. É o ver o passado como passado e não
como um presente suspenso, que permite olhar para o futuro.
50 anos depois da última grande transformação, parece que estamos mesmo na altura de discutir a pátria, os seus símbolos, a sua história, o império e, até, a culpa. Parafraseando Marc Bloch, com essa discussão a história ficará mais clara.
Sobre o/a
autor(a)
Investigador
de CIES/IUL
https://www.esquerda.net/opiniao/nao-discutimos-patria/90721
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