segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

"...tocou-nos ser a memória" - Luís Sepúlveda

Ípsilon


Luís Sepúlveda

"...tocou-nos ser a memória"

15.12.2010 - Fernando Sousa
 

Dois miúdos desaparecidos de uma foto antiga, amigos mortos, a casa dos Parra, em Santiago, mandada abaixo por uma escavadora, Luís Sepúlveda, cujo dom de escrita é um poder, ressuscita-os a todos em "Histórias Daqui e Dali"; até a um cão que a polícia abandonou e a uma cadela que ladrava à ETA
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No que quer que escreva, Luís Sepúlveda põe toda uma humanidade seja na ficção seja no que mais gosta - o exercício da memória para que ela não se dilua. Tal e qual assim. E por isso os seus leitores gostam tanto da história do gato Zorbas como do "Encontro de Amor num País em Guerra", do "Velho que Lia Romances de Amor" ou de obras onde o mais azedo de si vem à tona como "O General e o Juiz", para dar só um exemplo - há mais.
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"Histórias Daqui e Dali" (Porto Editora), que veio lançar a Portugal, é um novo exemplo do que poderia ser uma obsessão se não tivesse por trás uma história trágica, a do Chile recente, e as provações de um exilado que anda pelo mundo a explicar sonhos e pesadelos. "Escrevo porque tenho memória e cultivo-a escrevendo", disse uma vez.
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Tão pouco é uma questão de idade, não; embora, nascido em 1947, a refira várias vezes neste acrescento de velhos episódios da angústia chilena - "Não, porque deixo que os anos envelheçam comigo; e até não é mau quando vou à piscina de Gijón e uma jovenzinha me diz que tenho direito a desconto". Nem de resumos de vida - "Não gosto em geral do género memorialístico. Leio poucas biografias, todas as que leio são decepcionantes, omitem muitas coisas ou contam outras que não me interessam saber". Mas talvez já seja de adeuses.
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Metido num sobretudo, a caminho de uma noite fria e de mais um encontro com alguns dos "mil amigos" e leitores portugueses, admite que escreveu sobre desaparecimentos (naturais) e despedidas.
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"Histórias Daqui e Dali" é um salto a um passado de coisas, umas vividas, outras interrompidas. Um "album" de 25 retratos como o dos garotos que a fotógrafa Anna Petereson não voltou a encontrar em La Victoria (Santiago), do jornalista Augusto Olivares, que se suicidou na mesma manhã em que Salvador Allende também se matou, de velhas máquinas Olivetti, Underwood ou Adler salvas do lixo, da luta ao lado do comandante Martín, na Nicarágua, do silêncio, agora, de Katya Olevskaia, que na Rádio Moscovo dizia "Escuta, Chile", da morte de Mario Benedetti, de Turquito, do tempo do Equador, de Edward, um cão polícia adoptado por punks, ou de La Negra, uma cadela que gostava de liberdade e de ciclistas, e que desfilava contra os crimes da ETA.
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"É de alguma maneira um livro íntimo. Foi uma forma de partilhar com os meus leitores - não sou um arrogante neste aspecto, mas sei que tenho muitos leitores, incluindo um grupo de uns mil amigos aqui em Portugal - outras amizades que tive e tenho, uma fase bastante terrível da minha vida depois dos 50, prolongando-lhes a memória através da homenagem."
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Heróis frágeis
Mas é uma forma também de espetar dardos em catástrofes como a dos confins gelados da Patagónia e da Terra do Fogo, que derretem aos olhos dos turistas que se divertem com as alterações climáticas; em episódios de puro desconcerto, como o de Edna Espinosa, que por um rabo maior morreu numa clínica de Bogotá, às mãos de Soler, um falsário que despiu a bata e fugiu da sala de operações; ou de pura nostalgia como a redução a escombros da casa dos Parra - Violeta, Isabel e Ângel - onde passou horas que lhe ficaram para sempre debaixo da pele. À trincheira intelectual, na Calle Carmen, 340, chamavam-lhe La Peña.
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"Sim, mas uma nostalgia mais como um exercício de memória. A mim e a muitos escritores da minha geração tocou-nos ser a memória, conservadores da memória dos nossos países, para que não se apague, como a história oficial tentou fazer, toda uma época. Isto é para mim importante, porque me sinto muito orgulhoso dessa memória, que foi rica. Porque tal como disse Eduardo Galleano, esta memória é uma memória de fogo, e gosto de manter vivo o seu fogo."
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"Quando, no Chile, tínhamos qualquer coisa como 17 ou 18 anos e começávamos o nosso 1968, estavam a acontecer coisas semelhantes noutros países. Estamos a falar da memória colectiva. Para mim tão importante como Victor Jara, no Chile, é um Jan Palach, na Checoslováquia, dois homens diferentes mas da mesma dimensão, ambos assassinados por terem achado que era possível viver num mundo mais decente."
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Em dois dos textos, uma espécie de declaração: "Nem esquecimento, nem perdão!" Uma frase terrível.
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"Sim, é. É uma frase de grande responsabilidade. Penso que o perdão enquanto categoria moral é uma das manifestações mais altas, pois é a generosidade em estado puro. Mas para que exista tem de existir primeiro desculpa de quem cometeu a falta."
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Tínhamos acabado de falar do golpe de Setembro de 1973, o mais recorrente dos temas do autor, que foi parte do GAP, o grupo de amigos de Allende, a sua escolta, todos mortos depois. Está contada num documentário, "Héros Frágiles", de que se considera um. "Sim, sinto-me um pouco parte desse colectivo de pessoas que tinham uma grande dureza e ao mesmo tempo uma grande fragilidade." E outra vez a lembrança de Augusto Olivares, cuja arma era: uma Olivetti.
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O mais português dos escritores latino-americanos, como uma editora lhe chamou, trabalha agora numa história, passada entre os anos de 1967 e 1989. É uma ficção, onde um personagem "tem muito" do que o autor viveu. A memória outra vez, pelo punho de quem não a quer em água como os glaciares da Terra do Fogo.
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