quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Oralidade e cultura popular na escrita de José Saramago - Walter Praxedes

blog da Revista Espaço Acadêmico

Oralidade e cultura popular na escrita de José Saramago

Posted: 09/02/2011 by Revista Espaço Acadêmico in colunista da REA
por WALTER PRAXEDES*
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Uma das características mais marcantes da criação romanesca do escritor português José Saramago é a reconstituição da oralidade em sua escrita. Discuto, a seguir, as opiniões de alguns estudiosos da obra saramaguiana a esse respeito. O objetivo é enfatizar a relevância da cultura popular como fonte de inspiração e reflexão.
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Como ponto de partida podemos tomar um raciocínio do próprio Saramago, para quem as características de sua técnica narrativa
“… provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor música e usa os mesmos elementos que o músico: sons e pausas, altos e baixos, uns, breves ou longas, outras” (SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote, 1997: 223).
Para Walter Benjamin (1983) a diferença entre as figuras do narrador e a do romancista se deve, em grande medida, à dependência do gênero romanesco em relação ao livro. Ao invés de ser um contador de histórias presente, o romancista é alguém que pode estar distante no espaço e no tempo e que realiza a sua expressão através da reprodução técnica permitida pela indústria do livro.
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Através de seus romances Saramago assimila, em parte, as posições do narrador e do romancista, derrubando a fronteira existente entre ambas, através da recuperação da tradição oral, e também pelo fato de assumir a posição de alguém que utiliza-se da imaginação para reinterpretar a história portuguesa e interpretar a realidade contemporânea para contar ao leitor a sua versão das mesmas, realizando, assim, um diálogo reflexivo sobre a condição humana e o “sentido da vida”, na intenção da superação da solidão do autor e do leitor.
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O romance Levantado do chão, publicado em 1980, tem a especificidade de demarcar um ponto de superação na expressão literária e romanesca de José Saramago. Na obra, o autor consegue desenvolver uma forma de discurso que reproduz a diversidade conflituosa da realidade retratada pela narrativa em construção, através da incorporação da tradição oral dos camponeses alentejanos. Em uma entrevista a Horácio Costa, Saramago assim  explica esse momento de sua produção literária:
“Eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: fome, o desemprego, o latifúndio, a política, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava como contar isso… Então, o que aconteceu? Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que eu escrevo, sem pontuação. Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais, de todos os sinais que vamos pondo aí… Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que agora narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles.” (SARAMAGO, 1998: 22-23)
A preocupação com a história e a identidade portuguesa, revelada em seus romances, torna as narrativas criadas por Saramago um meio para o encontro com personagens, homens e mulheres, com identidades específicas, por certo, mas que já revelam as perspectivas e os valores que o autor antevê como imprescindíveis para o futuro de sua sociedade. Leyla Perrone-Moisés (1998: 101-108) interpreta que
“… o aspecto ao mesmo tempo artificioso e natural do português de Saramago resulta de uma engenhosa aliança do erudito com o popular, do livresco com a oralidade. Sua prosa incorpora uma rica tradição literária, de Fernão Lopes a Vieira, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Pessoa, aí presentes num intertexto que não é apenas alusivo ou citacional, mas que age num nível mais difícil de captar, o da arquitetura sintática, da prosódia, das técnicas narrativas e descritivas. A essa tradição, Saramago trouxe sua nota pessoal que, na superfície do texto, consiste na supressão da maior parte dos sinais convencionais de pontuação, marcadores de pausas ou de entoação. Esse modo de escrever, segundo ele, lhe ocorreu de repente após a 20ª página de “Levantado do Chão” (1980) e tornou-se desde então sua marca registrada. A supressão total ou parcial de pontuação, largamente praticada desde o início do século pelos prosadores de vanguarda (em Portugal por Almada Negreiros), não tem, em Saramago, um intuito puramente experimental, mas decorre do caráter oral de sua prosa, mais proferida do que escrita, e proferida com larguíssimo fôlego. Essa prática só funciona plenamente porque Saramago tem o domínio absoluto da lógica discursiva, do ritmo da frase e da respiração do falante, de modo que seu leitor jamais se extravia nos segmentos do discurso ou confunde os interlocutores de um diálogo.”
Um dos sujeitos recriados por Saramago na forma de personagem de ficção é Antonio Mau-Tempo, membro da terceira geração da família camponesa, aqui lembrado justamente porque na narrativa “…será grande contador de histórias, vistas e inventadas, vividas e imaginadas, e terá a arte suprema de apagar as fronteiras entre umas e outras…” (Levantado do chão: 124). Saramago alimenta sua pesquisa com as histórias contadas pelos camponeses e as recria  dando a voz a Antonio Mau-Tempo, que vai juntando mais e mais histórias em seus relatos, pois, afinal, como numa boa conversa “…a gente começa a contar um caso, mas metem-se outros adiante…” (Levantado do chão: 130). Na voz de Antonio Mau-Tempo as histórias acabam sempre com um julgamento dos fatos relatados. As contravenções praticadas pelo bandido José Gato e seu grupo sempre acabavam com uma boa justificativa: “… ao José Gato conheci-o sempre como um homem que se meteu naquela vida porque não ganhava para comer”;  e seguidas, ainda, de um julgamento moral de suas ações: “… Tinha boas coisas o José Gato, essa justiça deve de se lhe fazer. Nunca roubou nada aos pobres, a orientação dele era só roubar onde o havia, aos ricos, como dizem que fazia o José do Telhado” (Levantado do chão: 133); ou ainda numa absolvição de Antonio Mau-Tempo ao contraventor, em tom fatalista: “…o José Gato era um maltês sério. Acho que foi sempre um homem muito só, esta é a minha idéia” (Levantado do chão: 135).
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No romance seguinte, Memorial do convento, José Saramago volta a apresentar um contador de histórias, Manuel Milho, trabalhador na construção do Convento de Mafra e amigo de Baltasar Sete-Sóis, um dos protagonistas da narrativa. Em volta de uma fogueira, antes de dormir, sentavam-se os amigos para ouvir a história contada  por Manuel Milho por etapas, deixando o melhor da história sempre para o dia seguinte, acirrando, assim,  a curiosidade dos ouvintes que resistiam contra a postergação do fim da narrativa:  “… O José Pequeno protestou, Nunca se ouviu história assim, em bocadinhos, e Manuel Milho emendou, Cada dia é um bocado de história, ninguém a pode contar toda… (Memorial do convento: 253). A história de Manuel Milho acaba com uma lição moral que ensina aos ouvintes o exemplo daqueles que perseguiram tenazmente as suas vontades.
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Como nos ensina Segolin (1999: 274) “… a obra de Saramago nos evoca ainda o velho contador de histórias, ao pé da fogueira ritual ou da lareira doméstica, … a tecer com a voz e o corpo enredos fantásticos sobre seres não menos fantásticos ou a transformar, com a magia do verbo e da voz, as miudezas e os pequenos gestos do cotidiano em momentos epifânicos reveladores, pondo a nu heroísmos e fantasmas insuspeitados e recônditos no âmago do ser humano, deflagrando sonhos, pondo em cena nosso teatro interior, estimulando-nos a trazer à luz os anjos e demônios que nos habitam”.
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Através desta reprodução da oralidade na escrita, torna-se possível uma comunicação entre autor e leitor, pois o narrador emite um discurso problematizador da realidade histórica, no qual o elemento contraditório é intrínseco à própria representação do real que é afirmada e em seguida analisada e criticada. A narrativa desenvolve-se como uma forma de comunicação do pensamento em movimento contínuo tentando dar conta do movimento da realidade, através de sucessivas superações, que possibilitam uma nova síntese. Pode-se afirmar, por isso, acompanhando uma reflexão de João Alexandre Barbosa (1998), que “…o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca das relações possíveis entre a representação da realidade pela linguagem da narrativa e as inserções operadas pela imaginação ficcional”. O próprio Saramago, na posição de narrador do Memorial do convento, explica sua opção pela recuperação da imaginação na escrita: “…fingindo, passam então as histórias a ser mais verdadeiras que os casos verdadeiros que elas contam…” (Memorial do convento: 134).
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A oralidade torna possível, segundo Calvino (1990: 51) “…a dilatação do tempo pela proliferação de uma história em outra, que é uma característica da novelística oriental. Sheherazade,  conta uma história na qual se conta uma história na qual se conta uma história, e assim por diante”. O narrador de Levantado do chão não esconde do leitor a utilização desse artifício, como fica evidente na seguinte digressão:
“A gente vai falando para passar o tempo, ou para não deixar que ele passe, é um modo de pôr-lhe a mão no peito e dizer, ou suplicar, Não andes, não te movas, se dás esse passo pisas-me, que mal é que eu te fiz. É também como baixar-me, pôr a mão na terra e dizer-lhe, Pára, não gires, ainda quero ver o sol”. (Levantado do chão: 166-167)
Por tudo isso podemos concluir que a narrativa saramaguiana reafirma a importância da voz  dos excluídos e marginalizados para o entendimento humano. Porém, muito mais do que um mero recurso estilístico, trata-se de um projeto bem sucedido de recuperação da cultura popular na literatura e de demonstração de que entre ambas não pode ser estabelecida uma barreira.
Referências
BARBOSA, João Alexandre. “Até aos limites da realidade”. In: Suplemento Mais!. Jornal Folha de São Paulo, 6/12/98.
BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: Textos escolhidos. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das letras, 1990.
JÚDICE, Nuno. “José Saramago: O romance no lugar de todas as rupturas”. In: Atelier du Roman, n.º 13, Paris. 1987-1989. Artigo divulgado na página do Instituto Camões na Internet
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “As artimages de Saramago”. Jornal Folha de São Paulo, 6/12/98.
SEGOLIN, Fernando. “O evangelho às avessas de Saramago ou divino demasiado humano ou o Deus que não sabe o que faz”. In: BERRINI, Beatriz (org.). José Saramago uma homenagem. São Paulo, Educ/Fapesp, 1999.
SARAMAGO, José. Levantado do chão. Rio de Janeiro, São Paulo, Editora Record, Editora Bertrand Brasil, 1996.
______. Memorial do convento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
______. Cadernos de Lanzarote. São Paulo, Cia das Letras, 1997.
______. Entrevista a Horácio Costa. In: Cult - Revista Brasileira de Literatura - Ano 2 – n. 17, São Paulo, 1998.


* WALTER PRAXEDES é docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Doutor em Educação (FEUSP). Publica na REA, nº 35, abril de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/035/35/wpraxedes.htm
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