terça-feira, 7 de maio de 2024

Nuno Pinheiro - Uma questão de hinos

* Nuno Pinheiro

15 de janeiro 2023 - 16:34

Belicista, colonialista, decadentista, virado para o passado, o Hino tem um concentrado daquilo que Portugal já não é, ou já devia não ser. Podia (devia) ter sido mudado em 1974, quando Portugal se libertou (e libertou) das colónias.

Confesso que nunca me interessei muito pela música de Dino de Santiago, recentemente a sua presença na Festa do Avante e, sobretudo, as declarações que fez depois irritaram-me. Nada contra a Festa do Avante, fui a algumas, mas este era o ano para não ir.

Nos últimos dias tenho assistido a um enorme clamor contra o cantor, já que, nas comemorações dos 50 anos do expresso teria dito que o hino devia ser substituído, pois era belicista: “às armas, às armas”, “contra os canhões …”. Enfim, pôs o dedo numa ferida, o que justificou os apelos a que lhe fosse retirada a nacionalidade (não sei como, mas enfim …). Apesar das reações ultranacionalistas gerou-se um debate interessante.

Vamos ao centro da questão, ao Hino. Hino e Bandeira são os símbolos nacionais oficiais, e definidos na constituição. Enquanto símbolos representam o país numa determinada altura. Pode-se questionar se o hino (não se falou na bandeira, mas porquê esquecer) representa Portugal hoje, ou, por outras palavras, que país representam. Claro que há sempre quem ache que “a Pátria não se discute”, nem sequer os seus símbolos, que, ignorando a história, seriam imutáveis.

Tanto o hino como a bandeira foram oficializados com a implantação da república em 1910. Substituiu o “Hino da Carta”, vindo das revoluções liberais que, se hoje tinha aspetos pouco aceitáveis (Viva, Viva, Viva o Rei, Viva a Santa Religião) tinha outros mais interessantes:

“Venturosos nós seremos

Em perfeita união,

Tendo sempre em vista todos

Divinal Constituição”

Quando foi proclamada como hino, “A Portuguesa” já tinha 20 anos, tinha nascido em 1890 na grande comoção provocada pelo Ultimato Inglês de 1890. Lembremos que por via desse ultimato, Portugal foi obrigado a desistir das pretensões sobre o território entre Angola e Moçambique que não dominava. A música de Lopes de Mendonça e Keil do Amaral, foi na altura foi um grande êxito popular e os “canhões” eram os “bretões”, havendo versões em que isso é expresso.

É um apelo belicista sem dúvida, porém esse apelo nunca foi seguido, os “Bretões” eram a maior potência do mundo. Acaba por ser uma convocação guerreira frustrada. Sublinhe-se que os britânicos não teriam de fazer nenhum esforço para desalojar portugueses da zona reivindicada pelo “Mapa Cor-de-Rosa”, que reivindicava para Portugal o território entre Angola e Moçambique, pois Portugal não tinha nenhuma presença nesse território. Os canhões nunca dispararam.

Além do belicismo, o hino é, também, colonialista, nasce de um dos muitos momentos de comoção e perda (ainda que imaginária) do império colonial. “A Portuguesa” acumula, aliás, todas essas perdas, que já se detetam em Camões no século XVI, “Levantai hoje de novo, o esplendor de Portugal”. Nota-se também um renovar do sebastianismo (que nunca morreu), não faltando, sequer “As brumas da memória”.

Apesar de se tratar sobretudo da colonização de África, que era um projeto de futuro, é um hino voltado para o passado, aliás defende que a vitória de Portugal será dada pelo passado:

Oh, pátria ergue-se a voz

Dos teus egrégios avós,

Que há-de guiar-te à vitória!

Pode parecer estranho que um novo regime, que queria romper com o passado, vá adotar um hino virado para esse passado. A questão colonial não causará espanto, já que a República não só não queria romper com esse passado, como criticava à Monarquia a fraqueza neste aspeto. Porém, este apelo ao passado é o sinal de que a República se via como um renovar da grandeza anterior, destruída pelo regime que a precedia. Aconteceu outras vezes em Portugal. É interessante que o hino escolhido pelo regime republicano não incorporasse as questões fundamentais do republicanismo, porém a geração de 70 era uma referência intelectual para os republicanos e, ninguém esquecia “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares” de Antero de Quental. Viam o país como estando decadente e queriam alterar isso.

Belicista, colonialista, decadentista, virado para o passado, o Hino tem um concentrado daquilo que Portugal já não é, ou já devia não ser. Podia (devia) ter sido mudado em 1974, quando Portugal se libertou (e libertou) das colónias. Não o foi, talvez porque, como dizia Eduardo Lourenço, não houve uma descolonização das mentalidades e, olhando para as reações, quase 50 anos depois, essa continuou a não se fazer.

É verdade que o Hino está desatualizado, não representa o país atual. Representará, ainda, o país em que nasci (só ainda do tempo do império colonial), não representa o em que nasceu Dino de Santiago (já não havia colónias), menos ainda o de hoje. O mesmo se passa com a Esfera Armilar no centro da bandeira. Talvez represente o apego ao passado, não no sentido do gosto pela história que vai perdendo horas nos currículos escolares, na preservação do património, mas num peso de uma determinada história de glórias passadas que é paralisante para o futuro.

Na minha infância, em que éramos obrigados a cantar o hino, o final era sempre: “Contra os canhões, batatas com feijões”, e este é para mim o hino, nunca aprendi o outro, aquele que agora se canta nos jogos da seleção com uma bastante pirosa mão no peito. Não sou muito, nem pouco, nacionalista, mas mesmo que o fosse, o meu país não é chorar impérios perdidos.

Nuno Pinheiro

Sobre o/a autor(a)

NUNO PINHEIRO

Investigador de CIES/IUL

https://www.esquerda.net/opiniao/uma-questao-de-hinos/84717

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