* Nuno Pinheiro
15 de
janeiro 2023 - 16:34
Belicista,
colonialista, decadentista, virado para o passado, o Hino tem um concentrado
daquilo que Portugal já não é, ou já devia não ser. Podia (devia) ter sido
mudado em 1974, quando Portugal se libertou (e libertou) das colónias.
Confesso que
nunca me interessei muito pela música de Dino de Santiago, recentemente a sua
presença na Festa do Avante e, sobretudo, as declarações que fez depois
irritaram-me. Nada contra a Festa do Avante, fui a algumas, mas este era o ano
para não ir.
Nos últimos
dias tenho assistido a um enorme clamor contra o cantor, já que, nas
comemorações dos 50 anos do expresso teria dito que o hino devia ser
substituído, pois era belicista: “às armas, às armas”, “contra os canhões …”.
Enfim, pôs o dedo numa ferida, o que justificou os apelos a que lhe fosse
retirada a nacionalidade (não sei como, mas enfim …). Apesar das reações
ultranacionalistas gerou-se um debate interessante.
Vamos ao centro
da questão, ao Hino. Hino e Bandeira são os símbolos nacionais oficiais, e
definidos na constituição. Enquanto símbolos representam o país numa
determinada altura. Pode-se questionar se o hino (não se falou na bandeira, mas
porquê esquecer) representa Portugal hoje, ou, por outras palavras, que país
representam. Claro que há sempre quem ache que “a Pátria não se discute”, nem
sequer os seus símbolos, que, ignorando a história, seriam imutáveis.
Tanto o hino
como a bandeira foram oficializados com a implantação da república em 1910.
Substituiu o “Hino da Carta”, vindo das revoluções liberais que, se hoje tinha
aspetos pouco aceitáveis (Viva, Viva, Viva o Rei, Viva a Santa Religião) tinha
outros mais interessantes:
“Venturosos nós
seremos
Em perfeita
união,
Tendo sempre em
vista todos
Divinal
Constituição”
Quando foi
proclamada como hino, “A Portuguesa” já tinha 20 anos, tinha nascido em 1890 na
grande comoção provocada pelo Ultimato Inglês de 1890. Lembremos que por via
desse ultimato, Portugal foi obrigado a desistir das pretensões sobre o
território entre Angola e Moçambique que não dominava. A música de Lopes de
Mendonça e Keil do Amaral, foi na altura foi um grande êxito popular e os
“canhões” eram os “bretões”, havendo versões em que isso é expresso.
É um apelo
belicista sem dúvida, porém esse apelo nunca foi seguido, os “Bretões” eram a
maior potência do mundo. Acaba por ser uma convocação guerreira frustrada.
Sublinhe-se que os britânicos não teriam de fazer nenhum esforço para desalojar
portugueses da zona reivindicada pelo “Mapa Cor-de-Rosa”, que reivindicava para
Portugal o território entre Angola e Moçambique, pois Portugal não tinha
nenhuma presença nesse território. Os canhões nunca dispararam.
Além do
belicismo, o hino é, também, colonialista, nasce de um dos muitos momentos de
comoção e perda (ainda que imaginária) do império colonial. “A Portuguesa”
acumula, aliás, todas essas perdas, que já se detetam em Camões no século XVI,
“Levantai hoje de novo, o esplendor de Portugal”. Nota-se também um renovar do
sebastianismo (que nunca morreu), não faltando, sequer “As brumas da memória”.
Apesar de se
tratar sobretudo da colonização de África, que era um projeto de futuro, é um
hino voltado para o passado, aliás defende que a vitória de Portugal será dada
pelo passado:
Oh, pátria
ergue-se a voz
Dos teus
egrégios avós,
Que há-de
guiar-te à vitória!
Pode parecer
estranho que um novo regime, que queria romper com o passado, vá adotar um hino
virado para esse passado. A questão colonial não causará espanto, já que a
República não só não queria romper com esse passado, como criticava à Monarquia
a fraqueza neste aspeto. Porém, este apelo ao passado é o sinal de que a
República se via como um renovar da grandeza anterior, destruída pelo regime
que a precedia. Aconteceu outras vezes em Portugal. É interessante que o hino
escolhido pelo regime republicano não incorporasse as questões fundamentais do
republicanismo, porém a geração de 70 era uma referência intelectual para os
republicanos e, ninguém esquecia “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”
de Antero de Quental. Viam o país como estando decadente e queriam alterar
isso.
Belicista,
colonialista, decadentista, virado para o passado, o Hino tem um concentrado
daquilo que Portugal já não é, ou já devia não ser. Podia (devia) ter sido
mudado em 1974, quando Portugal se libertou (e libertou) das colónias. Não o
foi, talvez porque, como dizia Eduardo Lourenço, não houve uma descolonização
das mentalidades e, olhando para as reações, quase 50 anos depois, essa
continuou a não se fazer.
É verdade que o
Hino está desatualizado, não representa o país atual. Representará, ainda, o
país em que nasci (só ainda do tempo do império colonial), não representa o em
que nasceu Dino de Santiago (já não havia colónias), menos ainda o de hoje. O
mesmo se passa com a Esfera Armilar no centro da bandeira. Talvez represente o
apego ao passado, não no sentido do gosto pela história que vai perdendo horas
nos currículos escolares, na preservação do património, mas num peso de uma
determinada história de glórias passadas que é paralisante para o futuro.
Na minha
infância, em que éramos obrigados a cantar o hino, o final era sempre: “Contra
os canhões, batatas com feijões”, e este é para mim o hino, nunca aprendi o
outro, aquele que agora se canta nos jogos da seleção com uma bastante pirosa
mão no peito. Não sou muito, nem pouco, nacionalista, mas mesmo que o fosse, o
meu país não é chorar impérios perdidos.
Sobre o/a
autor(a)
Investigador de
CIES/IUL
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