Jean Genet em 1957 num quarto de hotel
Hulton-Deutsch Collection/CORBis
Hulton-Deutsch Collection/CORBis
Jean Genet - O voo do ladrão
20.12.2010 - Tiago Bartolomeu Costa
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Que homem foi este, para além do santo e do mártir que dele quiseram fazer? Passam cem anos sobre o seu nascimento, mas talvez não tenhamos ouvido tudo o que tinha para dizer
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Parece estar-nos a dizer que não esconde nada. As mãos abertas enfrentam o jornalista, que, naquele quarto de hotel em 1957, lhe perguntava, uma vez mais, quem era. "Se eu estou sozinho, posso falar a verdade. Se estou com alguém, minto. Eu sou marginal", poderia ter-lhe respondido, como disse mais tarde a um amigo escritor, Tahar Ben Jelloun.
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"Com excepção dos seus livros, não sabemos mais dele do que a data da sua morte, que ele imagina próxima", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão que adaptou "Querelle de Brest".
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Mas Jean Genet, abandonado pela mãe num orfanato em Paris, com menos de um ano, foi uma figura maior, que não cabia nos seus próprios livros. "Mau rapaz autodidacta", Jean podia ter sido uma personagem inventada por Genet -achava, aliás, que no teatro representamo-nos sempre a nós próprios ("Uma acção teatral não deve decorrer num palco mas em mim", disse). E porque não acreditava na biografia, "em vida não queria que se lhe perguntasse sobre a sua vida", explica Pascal Fouché, que este ano, quando se assinalam os cem anos do nascimento do escritor, publicou em livro um conjunto de cartas inéditas da mãe do autor de "Un condamné à mort", uma lavadeira que morreria aos 30 anos com gripe espanhola.
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Sem família nem raízes, a ideia de pátria horrorizá-lo-á, e é ao ambiente de uma infância que nunca teve que Jean Genet, por diversas vezes, regressará. Muitas das personagens das suas histórias, como Querelle, o marinheiro homossexual, ou Maurice, o prisioneiro em "Alta Vigilância", carregam nomes de amigos seus no orfanato. Há ainda Solange, uma das criadas na peça do mesmo nome, uma vizinha por quem Genet se apaixonou quando era criança.
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Os seus textos proporão, permanentemente, um outro mundo, uma outra realidade, outro conjunto de valores, onde se encontra, apesar de tudo, um desejo intrínseco de salvação dos homens, anjos caídos e negros.
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Vítima e predador
Era só um homem que distinguia o real da ficção. "É preciso não confundir os planos: há o plano literário e o plano vivido. A ideia de um assassinato pode ser bela. Mas o assassinato real é outra coisa", disse Genet em entrevista, em 1976, a Hubert Fichte.
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Genet viverá aquilo que Aurélie Renaud apelida, num dos artigos incluídos no muito completo dossier que lhe dedicou a última edição da "Magazine Littéraire", de "experiência da exclusão". "Afrontando a sociedade burguesa, Genet escolhe assumir o destino cruel que lhe é imposto pelo exterior. Cultivando a sua alteridade como um tesouro, liberta-se de um perpétuo e fundamental "exercício de alteridade e de alteração", dedicando-se a transformar-se num "estrangeiro profissional"", conclui a autora.
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E Genet, vivendo a experiência da exclusão, institui-se enquanto homem e autor a partir de três princípios que atravessarão a sua vida e a sua obra, a saber: a traição, o roubo e a homossexualidade, "valores cardinais da contramoral que estabeleceu para o seu método [de escrita]".
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"A literatura não apagou a sua vida", diz valter hugo mãe, autor de "o cu de jean genet", breve poema incluído em "contabilidade poesia 1996-2010" e que começa assim: "ninguém podia acreditar que jean genet tivesse ganho asas líquidas, escuras como o fundo dos mares, e pairasse sobre os pensamentos menos cautelosos dos homens." valter hugo mãe diz que o autor francês não teve "a biografia ridícula e vaidosa da maior parte dos autores". "Era um escritor que não escondia nada, que lidava consigo mesmo propondo-se como vítima, mas que se perseguia, como se se quisesse magoar", acrescenta. "insatisfeito, retomava as marés às escuras asas e alava novamente, ondulando e aspergindo o chão com os olhos, sempre ávido de mais", conclui o poema. "Há um discurso incendiário e impiedoso, onde ele é vítima e predador. E, erguendo esse paradoxo, consegue chegar a várias pessoas com temáticas fortíssimas e extremamente amargas", diz ainda valter hugo mãe.
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"A obra de Genet escapa a qualquer fidelidade", escreveu Luís Miguel Cintra no texto incluído no programa do espectáculo "Splendid"s", encenado em 1995. "A sua genialidade estará sobretudo no profundo desassossego a que obriga qualquer um", diz o encenador, que voltará a Genet no próximo ano com "A Varanda", "uma glorificação da imagem e do reflexo".
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"Escrever - e antes de escrever entrar na possessão desse estado de graça que é uma espécie de ligeireza, de inaderência ao chão, ao concreto, àquilo a que habitualmente apelidamos de real", deixou no célebre "Journal d"un voleur". Mais tarde dirá: "Quando escreves, pensa no leitor. Dá-lhe a mão, ou toma a sua; sabe que ele não é obrigado a seguir-te e que, não importa em que altura, te poderá largar e partir."
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Mas "o que está escrito não tem que ser verdade", alerta Jaime Rocha, dramaturgo que assinou "Azzedine", peça que revisita não apenas o modelo dramatúrgico de "Alta Vigilância", mas a própria biografia e bibliografia do autor, e que o Teatro Experimental de Cascais estreará em Abril do próximo ano.
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"Há um lado político, importante e corajoso, porque é político no sentido em que se confronta com questões sobre o sistema e o poder. É um dos autores que, no seu tempo, mais fugiu à autocensura. Não tinha medo das palavras", acrescenta.
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Quando Jean Cocteau leu o manuscrito de "Un condamné à mort", livro "terrível, obsceno, impublicável, inevitável", declarou também que era "o grande acontecimento da época". E foi assim com outros livros, alguns deles publicados sem que o nome do autor aparecesse na capa, para evitar a prisão. E, no entanto, nunca a estética teve prioridade face à política. "A obra de Genet é, de facto, perigosa", escreve Melina Balcázar Moreno na "Magazine Littéraire". "Contra o esquecimento que toda a amnistia supõe, Genet opõe-se à morte dos mortos no seio da comunidade dos vivos."
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"Um homem morto não vale nada, zero, um deserto ao vento", diz a personagem Genet pensada por Jaime Rocha. "Eu vim para falar, para encher as minhas personagens de palavras, para lhes dar a paz. Podia ter-me enforcado, dado um tiro nos miolos. Mas não, vivi santo e morri santo. E isso ficou escrito", diz ainda. Jaime Rocha salienta que há uma crueldade explícita em Genet, "que mais facilmente, porque mais mediático, as pessoas reconhecerão no seu teatro", por onde não deixa de passar "uma corrente de afectos". "Era um homem do tempo da solidariedade e dos afectos", para quem "a violência choca, porque não a pode prever".
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"Falar é roubar palavras", escreveu Sartre em "Saint Genet, comédien et martyr", o monumental texto de introdução às "Obras Completas de Genet", editadas pela Gallimard. Poeta, dramaturgo, ensaísta, prosador, Genet foi, na literatura, polissémico. Mas foi ainda realizador de um filme só, "Un chant d"amour", que vai para lá da provocação que os seus conteúdos explícitos poderiam fazer, porque trata do desejo, num sentido mais primário, mais visceral e, por isso, mais humano.
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O seu teatro continua a ser representado e entre as peças mais importantes estão "As Criadas" (o ano passado vimos a encenação de Jean-Luc Bondy no Festival de Almada) ou "Os Negros"(Rogério de Carvalho apresentou-a, em 2006, no Teatro Nacional S. João). Escrevia Luís Miguel Cintra em 1995: "A ideia de uma obra que se não distingue de uma maneira violenta de viver, a concepção de toda a arte como poesia e da política como prática artística revolucionária, a construção de si próprio como a de um exemplo trágico de relação com os outros, como a elaboração de uma solidão, tornam Genet mais do que num autor, num santo, como Sartre lhe resolveu chamar, num caso exemplar, absoluto e irrepetível, de quem para sempre continuaremos a ler os poemas, os livros, a tentar representar as peças, coleccionar os retratos, cobiçar os amantes. Mas não sei se nos deixará entendê-lo bem."
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"Genet nunca quis ser outra coisa senão um observador", procura explicar René de Ceccatty, mas, acrescenta Jaime Rocha, "estatuaram-no". Na peça que escreveu, a dada altura, o dramaturgo coloca Genet a dizer: "Quiseram fazer de mim um santo e eu quero morrer como se tivesse uma maldição." "Não sou um homem de adesões, sou um homem de revolta. Eu gostaria que o mundo - e preste bem atenção ao que lhe estou a dizer -, gostaria que o mundo não mudasse para que pudesse estar contra o mundo", disse Genet.
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"Era um anti-sistema, mas não era um delinquente puro e duro. Era um homem infinitamente culto, que fez da prisão a sua vida", descreve Jaime Rocha, que salienta o lado militante da cidadania, que o levará a abraçar causas como a dos Black Panters, um movimento revolucionário afro-americano influente nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, e a causa palestiniana, ainda antes da era bombista. "Ele esteve sempre do lado da vítima", reforça.
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E depois há Chatila, o campo de refugiados na Palestina. Genet foi o primeiro europeu a chegar. "Quatro horas em Chatila" resume bem o envolvimento que queria viver e a destruição do modelo social que queria construir. Jaime Rocha, reinventando esse livro, coloca-o a recordar-se: "Eu vi o sangue coalhado pelas ruas estreitas, rapazes e velhos palestinianos a quem cortaram as mãos e os braços, mulheres com as ancas trespassadas por facas, crânios abertos à machadada, olhos furados, barrigas esventradas, mortos, muitos mortos espalhados pelas ruelas, queimados, desmembrados, dezenas, centenas, dois dias e três noites de matança."
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Depois disto, Genet não poderia esconder mais nada. Morreu na noite de 14 para 15 de Abril de 1986 num pequeno hotel de Paris. A sua campa, discreta em Marrocos (onde viveu os últimos anos), é o último gesto político de um homem sozinho.
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Parece estar-nos a dizer que não esconde nada. As mãos abertas enfrentam o jornalista, que, naquele quarto de hotel em 1957, lhe perguntava, uma vez mais, quem era. "Se eu estou sozinho, posso falar a verdade. Se estou com alguém, minto. Eu sou marginal", poderia ter-lhe respondido, como disse mais tarde a um amigo escritor, Tahar Ben Jelloun.
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"Com excepção dos seus livros, não sabemos mais dele do que a data da sua morte, que ele imagina próxima", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão que adaptou "Querelle de Brest".
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Mas Jean Genet, abandonado pela mãe num orfanato em Paris, com menos de um ano, foi uma figura maior, que não cabia nos seus próprios livros. "Mau rapaz autodidacta", Jean podia ter sido uma personagem inventada por Genet -achava, aliás, que no teatro representamo-nos sempre a nós próprios ("Uma acção teatral não deve decorrer num palco mas em mim", disse). E porque não acreditava na biografia, "em vida não queria que se lhe perguntasse sobre a sua vida", explica Pascal Fouché, que este ano, quando se assinalam os cem anos do nascimento do escritor, publicou em livro um conjunto de cartas inéditas da mãe do autor de "Un condamné à mort", uma lavadeira que morreria aos 30 anos com gripe espanhola.
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Sem família nem raízes, a ideia de pátria horrorizá-lo-á, e é ao ambiente de uma infância que nunca teve que Jean Genet, por diversas vezes, regressará. Muitas das personagens das suas histórias, como Querelle, o marinheiro homossexual, ou Maurice, o prisioneiro em "Alta Vigilância", carregam nomes de amigos seus no orfanato. Há ainda Solange, uma das criadas na peça do mesmo nome, uma vizinha por quem Genet se apaixonou quando era criança.
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Os seus textos proporão, permanentemente, um outro mundo, uma outra realidade, outro conjunto de valores, onde se encontra, apesar de tudo, um desejo intrínseco de salvação dos homens, anjos caídos e negros.
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Vítima e predador
Era só um homem que distinguia o real da ficção. "É preciso não confundir os planos: há o plano literário e o plano vivido. A ideia de um assassinato pode ser bela. Mas o assassinato real é outra coisa", disse Genet em entrevista, em 1976, a Hubert Fichte.
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Genet viverá aquilo que Aurélie Renaud apelida, num dos artigos incluídos no muito completo dossier que lhe dedicou a última edição da "Magazine Littéraire", de "experiência da exclusão". "Afrontando a sociedade burguesa, Genet escolhe assumir o destino cruel que lhe é imposto pelo exterior. Cultivando a sua alteridade como um tesouro, liberta-se de um perpétuo e fundamental "exercício de alteridade e de alteração", dedicando-se a transformar-se num "estrangeiro profissional"", conclui a autora.
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E Genet, vivendo a experiência da exclusão, institui-se enquanto homem e autor a partir de três princípios que atravessarão a sua vida e a sua obra, a saber: a traição, o roubo e a homossexualidade, "valores cardinais da contramoral que estabeleceu para o seu método [de escrita]".
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"A literatura não apagou a sua vida", diz valter hugo mãe, autor de "o cu de jean genet", breve poema incluído em "contabilidade poesia 1996-2010" e que começa assim: "ninguém podia acreditar que jean genet tivesse ganho asas líquidas, escuras como o fundo dos mares, e pairasse sobre os pensamentos menos cautelosos dos homens." valter hugo mãe diz que o autor francês não teve "a biografia ridícula e vaidosa da maior parte dos autores". "Era um escritor que não escondia nada, que lidava consigo mesmo propondo-se como vítima, mas que se perseguia, como se se quisesse magoar", acrescenta. "insatisfeito, retomava as marés às escuras asas e alava novamente, ondulando e aspergindo o chão com os olhos, sempre ávido de mais", conclui o poema. "Há um discurso incendiário e impiedoso, onde ele é vítima e predador. E, erguendo esse paradoxo, consegue chegar a várias pessoas com temáticas fortíssimas e extremamente amargas", diz ainda valter hugo mãe.
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"A obra de Genet escapa a qualquer fidelidade", escreveu Luís Miguel Cintra no texto incluído no programa do espectáculo "Splendid"s", encenado em 1995. "A sua genialidade estará sobretudo no profundo desassossego a que obriga qualquer um", diz o encenador, que voltará a Genet no próximo ano com "A Varanda", "uma glorificação da imagem e do reflexo".
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"Escrever - e antes de escrever entrar na possessão desse estado de graça que é uma espécie de ligeireza, de inaderência ao chão, ao concreto, àquilo a que habitualmente apelidamos de real", deixou no célebre "Journal d"un voleur". Mais tarde dirá: "Quando escreves, pensa no leitor. Dá-lhe a mão, ou toma a sua; sabe que ele não é obrigado a seguir-te e que, não importa em que altura, te poderá largar e partir."
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Mas "o que está escrito não tem que ser verdade", alerta Jaime Rocha, dramaturgo que assinou "Azzedine", peça que revisita não apenas o modelo dramatúrgico de "Alta Vigilância", mas a própria biografia e bibliografia do autor, e que o Teatro Experimental de Cascais estreará em Abril do próximo ano.
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"Há um lado político, importante e corajoso, porque é político no sentido em que se confronta com questões sobre o sistema e o poder. É um dos autores que, no seu tempo, mais fugiu à autocensura. Não tinha medo das palavras", acrescenta.
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Quando Jean Cocteau leu o manuscrito de "Un condamné à mort", livro "terrível, obsceno, impublicável, inevitável", declarou também que era "o grande acontecimento da época". E foi assim com outros livros, alguns deles publicados sem que o nome do autor aparecesse na capa, para evitar a prisão. E, no entanto, nunca a estética teve prioridade face à política. "A obra de Genet é, de facto, perigosa", escreve Melina Balcázar Moreno na "Magazine Littéraire". "Contra o esquecimento que toda a amnistia supõe, Genet opõe-se à morte dos mortos no seio da comunidade dos vivos."
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"Um homem morto não vale nada, zero, um deserto ao vento", diz a personagem Genet pensada por Jaime Rocha. "Eu vim para falar, para encher as minhas personagens de palavras, para lhes dar a paz. Podia ter-me enforcado, dado um tiro nos miolos. Mas não, vivi santo e morri santo. E isso ficou escrito", diz ainda. Jaime Rocha salienta que há uma crueldade explícita em Genet, "que mais facilmente, porque mais mediático, as pessoas reconhecerão no seu teatro", por onde não deixa de passar "uma corrente de afectos". "Era um homem do tempo da solidariedade e dos afectos", para quem "a violência choca, porque não a pode prever".
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"Falar é roubar palavras", escreveu Sartre em "Saint Genet, comédien et martyr", o monumental texto de introdução às "Obras Completas de Genet", editadas pela Gallimard. Poeta, dramaturgo, ensaísta, prosador, Genet foi, na literatura, polissémico. Mas foi ainda realizador de um filme só, "Un chant d"amour", que vai para lá da provocação que os seus conteúdos explícitos poderiam fazer, porque trata do desejo, num sentido mais primário, mais visceral e, por isso, mais humano.
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O seu teatro continua a ser representado e entre as peças mais importantes estão "As Criadas" (o ano passado vimos a encenação de Jean-Luc Bondy no Festival de Almada) ou "Os Negros"(Rogério de Carvalho apresentou-a, em 2006, no Teatro Nacional S. João). Escrevia Luís Miguel Cintra em 1995: "A ideia de uma obra que se não distingue de uma maneira violenta de viver, a concepção de toda a arte como poesia e da política como prática artística revolucionária, a construção de si próprio como a de um exemplo trágico de relação com os outros, como a elaboração de uma solidão, tornam Genet mais do que num autor, num santo, como Sartre lhe resolveu chamar, num caso exemplar, absoluto e irrepetível, de quem para sempre continuaremos a ler os poemas, os livros, a tentar representar as peças, coleccionar os retratos, cobiçar os amantes. Mas não sei se nos deixará entendê-lo bem."
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"Genet nunca quis ser outra coisa senão um observador", procura explicar René de Ceccatty, mas, acrescenta Jaime Rocha, "estatuaram-no". Na peça que escreveu, a dada altura, o dramaturgo coloca Genet a dizer: "Quiseram fazer de mim um santo e eu quero morrer como se tivesse uma maldição." "Não sou um homem de adesões, sou um homem de revolta. Eu gostaria que o mundo - e preste bem atenção ao que lhe estou a dizer -, gostaria que o mundo não mudasse para que pudesse estar contra o mundo", disse Genet.
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"Era um anti-sistema, mas não era um delinquente puro e duro. Era um homem infinitamente culto, que fez da prisão a sua vida", descreve Jaime Rocha, que salienta o lado militante da cidadania, que o levará a abraçar causas como a dos Black Panters, um movimento revolucionário afro-americano influente nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, e a causa palestiniana, ainda antes da era bombista. "Ele esteve sempre do lado da vítima", reforça.
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E depois há Chatila, o campo de refugiados na Palestina. Genet foi o primeiro europeu a chegar. "Quatro horas em Chatila" resume bem o envolvimento que queria viver e a destruição do modelo social que queria construir. Jaime Rocha, reinventando esse livro, coloca-o a recordar-se: "Eu vi o sangue coalhado pelas ruas estreitas, rapazes e velhos palestinianos a quem cortaram as mãos e os braços, mulheres com as ancas trespassadas por facas, crânios abertos à machadada, olhos furados, barrigas esventradas, mortos, muitos mortos espalhados pelas ruelas, queimados, desmembrados, dezenas, centenas, dois dias e três noites de matança."
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Depois disto, Genet não poderia esconder mais nada. Morreu na noite de 14 para 15 de Abril de 1986 num pequeno hotel de Paris. A sua campa, discreta em Marrocos (onde viveu os últimos anos), é o último gesto político de um homem sozinho.
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