terça-feira, 20 de maio de 2014

as crónicas de antónio sousa homem 04

* António Sousa Homem


Os velhos, afinal

O desembarque do Mindelo, em Julho de 1832, não entra nas conversas, habituais ou ocasionais, à mesa dos almoços de domingo. A ideia de que as “tropas liberais” tinham atravessado triunfalmente os areais arborizados do actual Mindelo (na antiga Praia dos Ladrões) foi sempre alvo de ressalvas por parte do Doutor Homem, meu pai, que nunca esqueceu o nome da Areosa de Pampelido, onde na verdade teve lugar o desembarque (chama-se agora Praia da Memória) – se tivesse vivido na época, e passado o armistício das guerras civis, ele teria sido um cartista, mas hoje já não se conhece a diferença entre o Duque de Saldanha e o da Terceira. Um dos meus sobrinhos considerou que não tinha utilidade conhecer a diferença entre cartistas e setembristas porque isso eram coisas de outros tempos. Na verdade, a história não se repete sempre da mesma forma e ninguém na família, em seu estado normal e aceitável de juízo, acha decente a ideia de queixar-se da vida. Basta haver retratos dela e que os velhos se interessem pelo assunto, continuando a saber distinguir cartistas e setembristas.

Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. Ele acreditava que esse era o segredo de uma longevidade que se tornou tradicional na família e nunca concedeu margem de manobra à idade, excepto quando, de tempos a tempos, regressava dos funerais. Um funeral, nesses tempos, tinha uma dimensão trágica que não se lhes conhece hoje, porque a morte está vulgarizada como um acontecimento que nos chega pela televisão e no cinema; habituámo-nos.

A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa. O tempo, que consome tudo, é mais doce nos verdes anos, enquanto não há reumatismo nem males das coronárias, mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. As actrizes que se recusam a envelhecer recusam-se também a serem fotografadas para não mostrarem como o tempo é um passageiro infalível da nossa vida. É uma forma, como qualquer outra, de encarar as coisas.

As minhas irmãs e um dos meus cunhados descobriram há anos a virtude do exercício físico e da meditação oriental – e sentem-se felizes. São pacientes e fazem genuflexões, transpiram e podem tocar o pé esquerdo com os dedos da mão direita. Noto pelo seu ar que travam um combate entre iguais e isso comove-me. Esta gente devia ser louvada porque faz um esforço (que eu considero nos limites do sobrenatural, preguiçoso como sou) para continuar a viver com dignidade, se bem que o mundo, no entanto, não lhes responda à altura, enumerando até à exaustão as virtudes da juventude. Torna-se cansativo.

Se pensarmos bem, os velhos não tomam drogas e cometem muito menos crimes, ocupam menos espaço e não fazem tanto barulho, conhecem haver uma diferença entre setembristas e cartistas (o século XIX não foi há tanto tempo) e a maior parte deles não é perigosa para o resto da humanidade. Mas, como mo recordam com alguma vileza, é evidente que não contribuem para a enriquecer a Fazenda pública nem para estabilizar as contas da previdência social e conhecem melhor – distraem-se mais facilmente – as coisas do passado do que as do presente.

Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui.

in Revista Notícias Sábado – 9 Setembro 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 9.9.06


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O nosso miguelismo

Escrevo à mão, tenho tinteiro e a caneta é uma ‘Parker’ que já cruzou os destinos de três gerações. Mesmo assim, a família surpreende-se quando lê estas crónicas e descobre que, por detrás do funâmbulo que conhecem, há um escândalo em perspectiva. Desta vez, uma das minhas irmãs protestou a propósito de uma crónica em que menciono as opções políticas da família: entre o “ultramontanismo” e o “cartismo”.

Verdadeiramente, nunca houve ultramontanos em Ponte de Lima tirando fases da existência da Tia Benedita, quando lhe parecia que os sobrinhos e netos andavam tentados pelo demónio. Como o demónio era uma categoria moral e não uma personagem substantiva, o seu ultramontanismo era tido na conta de um pequeno delírio das nossas províncias – as que desconfiavam da República como antes tinham execrado Passos Manuel, José Estêvão e os Cabrais.

A única vantagem do ultramontanismo era, rigorosamente, taxinómina: tudo o que lhe era estranho cabia no campo do inimigo. Tamanha simplicidade era comovente e simplificadora, ainda que injusta. Se não soubéssemos da generosidade fria mas autêntica da Tia Benedita, julgaríamos que a senhora estaria predestinada a vir para a rua dar vivas à Vilafrancada – mas “o inimigo” era-lhe profundamente necessário como um tónus para os males de espírito, evitando o ressentimento. Em boa verdade, era uma das condições admitidas para a sua íntima felicidade.

A família foi pouco cartista, mesmo assim. Por conveniência, mas sem ambição, tinha – digamos – os seus espiões. À medida que os ‘revolucionários’ se transformavam em ‘reformistas’, e que os ‘reformistas’ se mudavam ‘regeneradores’ e, depois, em ‘conservadores’, não havendo já ‘radicais’, os Homem repousaram e puderam voltar a olhar, com discreta melancolia, para o retrato do Senhor D. Miguel, estacionado no casarão de Ponte de Lima.

O mundo, ordinariamente (como concluiu o meu bisavô, o último dos nossos miguelistas de raiz), gira sempre para o mesmo lado. Munidos desta certeza, nem o meu avô nem o velho Doutor Homem, meu pai, se preocuparam mais com o assunto, decretando que as velhas histórias políticas da família podiam ser, definitivamente, arrumadas – e o nosso nome reabilitado para os tempos modernos.

Era mentira. Também era tranquilizador, mas era mentira. Quando se chegava a vias de facto, ou seja, àquele momento em que se corria o risco de entrar no campo da apostasia, a lembrança do vintismo, do “Eusébio Macário”, dos barões de fresca data e dos pobres versos de Leitão da Silva (nome por que Garrett era conhecido intramuros), foi sempre morigeradora e teve o condão de nos lembrar o nosso pecado político original. Ou mortal, no fm de contas, se tivermos em conta que hoje toda a gente é democrática. Nós, lá no fundo, continuávamos a ser reaccionários.

Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, lembrou-nos sempre que a ironia era a mais mortífera das armas desses tempos e dos que haviam de vir. Era essa a razão por que podíamos ouvi-lo rir sonoramente quando calhou, num certo Verão, ler Júlio Dinis. Ele ria de Tomé da Póvoa, o honrado agricultor dos “Fidalgos da Casa Mourisca” – e do frade Januário, o personagem estomacal que representava o reaccionarismo ultramontano. Ele achava graça à literatura panfletária e conhecia de cor trechos de José Acúrcio das Neves, que comparou os revolucionários de 1820 a personagens das aventuras de Gulliver.

Esses tempos foram felizes para os Homem. Tonificados pela derrota, um bálsamo para a sua tentação permanente para a petulância, dedicaram-se à família, aos negócios, à vida académica e ao epicurismo que alegrou a vida dos celibatários da tribo, que foram um nadinha picarescos. Camilo havia de achar-lhes alguma graça, a esses Homem de outros tempos, sitiados pela modernidade, cómicos, desadaptados, com uma elegância digna das Cortes de Lamego, se elas tivessem existido.

O nosso miguelismo não é actual. É desses tempos. Só uma grande falta de sentido de oportunidade nos levou a manter o retrato do Senhor D. Miguel até hoje, sob o olhar divertido, respeitoso, irreverente, comovido e derrotado de várias gerações de Homem, inclusive dos que, hoje, votam no Bloco de Esquerda. Na próxima semana, terei de ouvir os protestos da minha sobrinha, mal o jornal chegue a Braga.

in Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 23.6.07

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