* António Sousa Homem
Lições de História em família miguelista
O volume (com anotações marginais em lápis ou em tinta azul pardacenta) estava reservado às leituras seculares do Verão, geralmente passado na tranquilidade de Ponte de Lima. Era o tempo ideal para disciplinar a historiografia.
Será muito difícil esquecer aquelas tardes cheias de luz, estivais, preguiçosas, às vezes intermináveis, de outras vezes curtas de mais – e por isso não sei por quem ‘A Quadrilha dos Marçais’ foi escolhido para leitura. Naqueles anos não havia propriamente ‘leituras de Verão’ ditadas pela moda mais recente. No Minho dos anos 50 as novidades demoravam a chegar e, quando chegavam, depois de o velho Doutor Homem ter transportado a família até ao velho casarão de granitos cobertos de musgo e hera, já tinham passado de moda.
O Tio Alberto era uma excepção comovente e o livro pertencia-lhe. Tinha sido publicado em 1938 e falava da guerrilha e das perseguições entre as margens do Douro e do Côa, primeiro entre ‘miguelistas’ e ‘liberais’, depois entre fiéis à rainha ou convictos da Junta do Porto e da Patuleia. No fundo, era a prova de que a província, a velha província dos nossos antepassados, conhecera a crueldade e a violência da mesma forma que as cidades a tinham promovido. Pelas suas páginas escorria sangue justo e injustificado, relatos de emboscadas nos vales de amendoeiras que limitavam o cenário produtivo das vinhas do Douro, suspeitas de assassinatos decididos em casas de família. A ideia de que existia uma bondade natural no género humano, uma sensibilidade ‘rural’ e dada a concertos campestres, caía por terra depois dessas descrições e dos inventários de atrocidades cometidas em nome das bandeiras de ocasião.
O velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a encolher os ombros, encarando com grande naturalidade o desfile de mortandades e de crimes, mencionando a necessidade de relativizar o nosso espanto. 'Nada que não tivesse acontecido.'
A minha sobrinha Maria Luísa descobriu o livro num destes fins-de-semana polvilhados pela tepidez de Maio, mas afligido por uma trovoada cujos relâmpagos anunciavam um entardecer tranquilo sobre os pinhais de Moledo. As minudências de história pátria são pouco comentadas para que não pareçam leviandades. No fundo, as hordas vão e vêm, deixam um rasto de sangue e de desperdício. Tem sido assim desde o princípio das coisas, enquanto nos limitamos a escolher o que não pode ser escolhido: o nosso passado. A família não o esconde: fomos miguelistas de primeira e de última hora. Já não podemos escolher outra coisa.
31 de Maio 2009,
A diferença entre um homem e a sua sombra
"A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava ‘o Príncipe’, era um testemunho que teria de passar às novas gerações"
Ao chegar a uma espécie de ponto de não retorno nas discussões sobre o século XIX (o século ao qual o grosso da família ainda vagamente pertence), a Tia Benedita, matriarca ultramontana de Ponte de Lima, costumava citar a correspondência do senhor Duque do Luxemburgo, embaixador de França junto da corte de D. João VI. Ao invocar "um francês", a Tia Benedita parecia o próprio Príncipe Regente a passar revista às tropas da Azambuja (há uma reprodução do quadro de Domingos Sequeira em casa do Tio Henrique, nos Arcos de Valdevez): contrariada, sim, mas usando da prerrogativa. Ora, e ao que vinha a citação? É que o Duque do Luxemburgo, depois de ter visitado a família real no Rio de Janeiro, declarou com certa convicção que se o príncipe D. Pedro viesse a ser rei, "dali não se esperasse nada de bom". Foi pior, foi imperador.
Isto, escrito na língua de Voltaire (a Tia Benedita conservava um recorte do ‘Cardeal Saraiva’ a fim de não se esquecer que o autor do ‘Cândido’ era um perigoso ateu e maçónico), tinha o seu peso e limitava-se a confirmar a bondade da escolha que todos os ramos da família, mesmo os mais desleixados, nunca questionaram: o lado do senhor Dom Miguel.
Duzentos anos depois, os Homem continuam no mesmo lugar – no século XIX –, apesar de já se praticar o divórcio e de, creio, as novas gerações terem passado a fumar alguns tabacos demasiado aromáticos. O mundo dos últimos duzentos anos, pelo menos em Portugal, também não se alterou enormemente: enquanto os Homem se escondiam no Alto Minho ou tratavam das suas vidas no Porto, sem alarido, as grandes famílias e generais do constitucionalismo, e depois da República, e depois do Estado Novo, e depois da Democracia, limitavam-se a administrar um país que lhe fora legado por aquele que o Duque do Luxemburgo caracterizara de maneira tão simples – e definitiva.
Infelizmente, os pessimistas têm quase sempre razão. Em Portugal, por motivos acrescidos. A Tia Benedita foi criada pelo seu pai, nosso trisavô, no escândalo dessa derrota que a família não esqueceu, preferindo – em vez disso – ignorar o nome de Évora Monte. A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava "o Príncipe", era um testemunho que teria de passar às novas gerações.
Seja como for, a família conserva o retrato do senhor D. Miguel entre as suas relíquias, e de vez em quando (por desfastio e irresponsabilidade) limita-se a comparar o brio oratório de José Acúrsio das Neves com o calculismo do Dr. Passos. E a diferença é entre um homem e uma sombra.
20 de Abril 2014
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