quinta-feira, 2 de abril de 2015

Cartografia de Ossos (1)

  • Sérgio Sousa 

N.º 2009 
Avante  1.Maio.2012 
Cartografia de Ossos (1)
Música sem Partitura de Domingos Lobo
Um título de imediato inquietante; veremos depois que adequado, justificado.
Cartografia, representação de uma notícia que serve para orientar; ossos, os despojos interiores, estruturais, que restam. (Uma personagem expressará, pág. 133: «Não quero redenção nem castigo, alheamento apenas. Que nem os ossos fiquem para testemunhar a minha passagem pelo mundo...»).

Image 10541

Portugueses, carregamos a memória da descoberta de rotas marítimas, e dos tráficos que nelas empreendemos; o melhor e o pior, a ciência náutica e os negreiros.
E no começo do século XXI, ainda as feridas abertas durante quase metade do anterior por uma repressão atroz, suspensa numa madrugada de Abril, sem de seguida se terem liquidado devidamente as respectivas contas.
Transportamos igualmente os referentes culturais que sobreviveram aos seus criadores.
Tudo ocorrências passadas, de que persistem resquícios, enterrados, desenterrados.
E vivemos num mundo onde alguns vaticinam – e não só vaticinam, nisso efectivamente se empenham – que um«lodo» alastrante acabará por submergir muitos outros, pág. 131: «sobretudo aos ingénuos..., aos idealistas que acreditam nas madrugadas que cantam.»
Percursos, não por completo desvendados, nem reabilitados, nem terminados.
Romance, inquestionável: personagens, com passado, presente, consistência complexa, evoluindo por diferentes espaços e ao longo do tempo, não cronologicamente, peripécias. Escorreito e exuberante, adjectivo este que no prefácio do livro Urbano Tavares Rodrigues utiliza para qualificar o talento de Domingos Lobo.
Romance onde afluem as dimensões de poeta e de dramaturgo do seu autor; de poeta, na catadupa das metáforas e alegorias urdidas com vocabulário versátil e de precioso recorte frásico; de dramaturgo, nos cenários invocados pelas personagens, na emotividade das cenas, na estrutura narrativa intensa assente, ainda que subtilmente camuflados, nos solilóquios e diálogos – quanto a estes, mais propriamente, no contracenar –, sem que o narrador se mostre, não obstante esteja do princípio ao fim presente enquanto tal na unidade de estilo, que expresso em diferentes andamentos, aliás consignados no próprio texto/partitura, assegura um distanciamento crítico do autor mesmo quando os temas se revelam cruéis e até tétricos.
Tudo servindo uma panorâmica sócio-cultural e um aprofundar do humano que fazem de «Cartografia de Ossos» um romance maior do nosso tempo. 
* 
Romance policial?
Também, e de espionagem, na intriga de que se serve do desenrolar e desvendar de uma investigação criminal onde não falta, sequer, o confronto entre o detective privado e o bófia, ou chui. Imbricada, com falsas pistas e volte-faces, mas de que aqui apenas cabe elogiar a sua eficácia a captar e a manter presa a atenção do leitor.
Mais essencialmente, policial e de espionagem por imergir nobas-fond.
Desde «Os Navios Negreiro não sobem o Cuando»2, e recentemente em, por exemplo, «A Estranha Guerra do Largo do Intendente»3, encontra-se na prosa de Domingos Lobo, tornou-se nela uma marca de estilo, o ingresso com grande à-vontade na vivência do lumpen, transmitido literariamente pela recriação da viva e variada semântica que lhe é própria.
Diferentemente dos burgueses de Maupassant, e mesmo dos de Fellini, Domingos Lobo não olha «de cima para a canaille, antes como Gorki, ou Goya, no meio dela perscruta «na miséria, na degradação, ainda uma dignidade humana, que» sabe expressar impressivamente, sem sentimentalismo nem demagogia. Não apenas o ritmo desenfreado da saga das personagens esotéricas de «O que diz Molero», Dinis Machado - Livraria Bertrand, 1977 -, não só o convívio em espaços e com gentes marginalizadas de «Memórias de um rufia lisboês», Orlando Neves - Editorial Escritor, 1994 - , para além de tudo isso, uma procura semântica, umreferencial literário e uma perspectiva sociopolítica e cultural.
Não haverá, na focagem de zonas culturais tidas como desqualificadas, que buscar referentes para Domingos Lobo, porque ele sim, assume essa posição na nossa literatura contemporânea, pela desenvoltura com que em tais zonas penetra poeticamente, e de que apenas nos ocorrem paralelos noutras artes, como no cinema de Ettore Scola de «Feios, porcos e maus» [1976], e nalguns quadros de Francis Bacon, e mais até de Paula Rego, usando uma linguagem que superiormente integra gíria, calão, palavrão, ao serviço de um realismo cru, até ao âmago do humano.
Domingos Lobo patenteia-nos a consciência do tecido sócio-cultural da língua, que artisticamente lavra.
*
 Falemos um pouco apenas do enredo, tão-só para espicaçar curiosidades:
Em Lisboa um velho torcionário e assassino, «oitenta anos, o cancro a devorá-lo, sem esperança», sentado «às tardes no sofá, quando as forças lho permitiam,» «do vasto escritório»onde se espalhava «o espólio de uma vida», que comportava inclusive «uma colecção de obras de arte», o mais do tempo deitado numa cama articulada, assistido por uma«enfermeira, fiel companheira de maleitas e destinos aziagos», contrata um detective privado – que viremos a saber, pág. 198, não ter sido escolhido por acaso – a quem incumbe de lhe encontrar e trazer «um filho de adolescentes desvarios».
O torcionário nascera na miséria, como conta, pág. 132:«...conhecia-a por dentro, bebi-lhe o leite azedo até ao tutano. Precisava evadir-me desse estrume, desse chão viscoso que se alimenta de fezes, ignorância, absurdas crenças, passividade ignara. E consegui...» Relatar-nos-á como.
O detective é um homem – na infância, curiosamente, passou por Nagosela4, pág. 93 – que não preenche o protótipo do profissional sagaz, «de olho vivo» e «bom de briga»; pelo contrário, míope, usa umas lentes «fundo de garrafa» numa armação de macacaúba e, «sensível», pág. 60: «outro mister lhe assentaria: bailarino do Bolshoi; costureiro, poeta romântico dado a sonetos devorados pela tísica.» Na cena de acção magnificamente descrita na pág. 109, acaba sendo do adversário a decisão de «devolver-lhe a dignidade em declínio instável.»
O velho agonizante iniciara a sua carreira como soldado da GNR, limpando os cavalos e removendo estrume nas cavalariças do Quartel do Carmo. «Step by step», como lhe aprazia dizer, fora ascendendo naqueles anos de implantação dos fascismos na Europa e das guerras que desencadearam, legionário em 1938, com dezoito anos de idade – pág. 52 –, guindou-se depois a guarda prisional no Aljube, a agente da Pide, a inspector da mesma casa e, por mor das contingências da negregada profissão, seguiu mesmo um percurso internacional, com especialização em tortura científica na Alemanha, actuação como agente infiltrado e provocador em Paris no Maio de 68, colaborando ainda com outras «secretas» criminosas ao serviço de tristemente conhecidos caudilhos. No trajecto, sempre que se propiciara, fora-se apropriando de alguns pecúlios alheios, como o que «guardava» da decadente prostituta Careca,quando foi «encontrada [morta] pelos almeidas da câmara», o que lhe permitiu, na conjuntura económica «favorável» do salazarismo e também com «bons conhecimentos», realizar os seus primeiros investimentos imobiliários, págs. 69/70. Igualmente, de um amigo especial que assassinou, veio a locupletar-se com valiosas peças de arte.
Capaz dos desempenhos mais selváticos, leia-se, págs. 112/113, o relato do linchamento de um patriota negro, numa noite em Lourenço Marques, este pide não se apresenta um boçal, antes sabe alinhar desculpas para o seu comportamento. «O meio é o homem», diz, e «vindo» ele donde viera...
Enquanto guarda no Aljube cedera a pequenos subornos, pág. 53, «a troco de quase nada; uns lápis, papel, umas cartas passadas sem a vistoria censória do comando», obtivera que «alguns presos, quase todos comunistas», lhe ensinassem «matemática, português, francês», conhecimentos que tivera o discernimento de descobrir quanto lhe seriam úteis. Como reconhece, dirigindo-se ao detective: «Você não imagina o que aquela gente me ensinou».
Não admira que seja na boca deste velho torcionário que Domingos Lobo coloque um discurso terrífico, mas lúcido, sobre o propósito de contrariar a evolução do mundo.
E na cama onde agoniza canceroso, mas ciente de que algum inimigo pode ainda chegar para um derradeiro ajuste de contas, o antigo operacional da repressão profere para o detective, pág. 131:
«A vossa revolução falhou, meu caro. Olhe para os lados, veja o que por aí vai... A vossa revolução está hoje inquinada, os abutres do capital tomaram-na por dentro, a social-democracia é hoje uma patranha desnecessária. O vosso“Estado social”...vai definhando aos poucos de morte natural e gangrenando de iniquidade sórdida: agoniza num charco de corrupção, comandada do alto por capos mafiosos, por uma teia de interesses sinistros que se instalaram na banca, nos ministérios, na justiça, nas estruturas do Estado, nos jornais. O lodo é total e há-de submergir-vos, sobretudo aos ingénuos como você, aos idealistas que acreditam nas madrugadas que cantam.» (Negrito meu.)
Duas mulheres se cruzaram na trajectória do jovem, e então garboso, soldado da GNR; das interferências que nela tiveram, ou vice-versa, saberá quem leia o romance.
O detective, desde a infância carregava a culpa de julgar não ter correspondido às expectativas do pai, militante da esquerda que, após uma passagem pela prisão, se isola de todos, soçobra no alcoolismo e se suicida, enquanto a mulher ensandece.
O velho legionário, torcionário, assassino, encarna o herói negativo; o detective é o seu exacto contrário, o não herói, que nada descobre do que investiga, antes acaba surpreendido pelas revelações dos outros, mesmo quanto ao que de mais íntimo a si apenas respeita.
*
 Para desempenhar as tarefas de encontrar e trazer o filho ao torcionário, o detective, de seu nome Rafael, deslocar-se-á de Lisboa ao Porto.
Apreciemos a mestria do romancista, acompanhando o amanhecer do domingo da partida na sala de visitas do antigo império, o Rossio de Lisboa, pág. 18:
«O sol, madraço, entre nuvens. Lisboa mansa de monhés cabisbaixos e ajuntamentos crioulos na medina do Rossio, saudosos das bolanhas da Guiné. Os desvalidos do capitalismo em saída pestilenta do papelão, as mãos sujas estendidas à esmola de turistas sonâmbulos na igreja de S. Domingos, o cheiro a ranço cosmopolita do Mc Donald’s, os ardinas a vender sonhos retardados, os graxa com a miséria terceiro-mundista a tiracolo, a ginjinha a sobreviver num gueto a tresandar a século XIX, um teatro nacional definhando na estética untuosa e lorpa do liberalismo de casaca, pomposo nas colunatas helénicas, a armar ao clássico pindérico pós-pombalino, desenquadrado da harmonia simples e geral que o marquês impôs à reconstrução da cidade; restaurantes de labregos, travestidos de empresários hoteleiros, com ementas de bafio e unto, a piscarem o olho ao turista desarmado; argamassa de frango no espeto e bifanas gordurosas em casqueiro de esferovite para o inevitável desarranjo das miudezas.
Lisboa dos domingos capados, tédio sem remisso desde as nevoentas capitulações sebastiânicas, a fazer de capital cosmopolita em pátria estreita e insalubre, ainda com sombras de inquisidores, esbirros e bufos pelas esquinas.»
E o adregar do detective a um Porto Manso5, págs. 39 e seguintes:
«O Largo de Campanhã, com tascas taciturnas e pensões manhosas. Sala para poucas visitas: chegar e andar. Uma chuva redonda, mansa, esboroa o empedrado, a luz aquosa treme nas poças de água, nos néons das lojas, nas montras sujas de excrementos de pássaros vadios e moscas resistindo à cacimba noctívaga.»
«...pátio Fontinha, nome de lugar, de sítio, ilha seria, uma ilha no Porto já rodeada de prédios altos e o camartelo a avançar ameaçador, pátio de velhos que aguardam o último sopro dos frios e de jovens que envelhecem de repente, ao cair do estuque, da caliça, da chuva que se insinua pelas telhas em declive sobre os tanques de lavar roupa, a chuva no musgo dos beirais, nas rugas. Pátio de pobres, ilha de deserdados num Porto que os cerca de prédios altos, de cimento e silêncio, que os esconde na penumbra dos cenários para que se não vejam as mazelas, os rostos, a miséria ao vivo e a cores – o surro das roupas de dentro.»
*
Porém, mais do que romance policial e de espionagem, tragédia.
Embora oculta, outrossim para servir a táctica de suspense da trama investigatória, mas efectivamente diegese trágica, porque acabamos por descobrir – e os indícios sempre nos tinham sido proporcionados no decurso dela, v. g., a notação da vizinha do prédio em frente, a que no começo não damos atenção, mas que tornada recorrente nos intriga, e só na pág. 156 se enuncia, «lugar sinistro que tem um prédio em frente onde num 2.º andar aberto às suas introspecções de aprendiz de feiticeiro, de anacoreta mórbido, habita um mistério que Rafael desvendará um dia, quando a coragem lhe der ânimo e lhe comandar os gestos e os passo que inseguros andam» – que as personagens têm traçado um destino pela interacção das suas condições sociais, a que não poderão eximir-se, e que a partir daí, da descoberta da pág. 163, revelação, o que no dizer de uma personagem«parece um pouco folhetinesco», na essência verdadeiro reconhecimento, inexoravelmente se cumpre.
O próprio pide dirá, pág. 134: «Os delinquentes são produto do meio social. Aqui tem uma boutade marxista com a qual concordo. Eu, por exemplo, se vivesse outro tempo e uma outra situação social, seria por certo um mecenas, um bom samaritano...».
Assim, o filho do suicida atormentado com o injustificado remorso de não ter correspondido à projecção que, para si, imputa ao pai ter feito, pode num imprevisto confim encontrar uma amante, não a saberá trazer consigo. E o que repudiou um filho, descurou outro, morrerá na inclemência que determinou a vida daqueles.
*
 Parábola:
Os algozes algum dia perderão o poder e morrerão às mãos das suas antigas vítimas. Destas, as mais inesperadas surgirão no momento de se perpetrar o desfecho.
Romance realista do começo do século XXI.
No século XIX, mesmo quando se denunciava a injustiça social, em regra imperavam móbeis idealistas, e a vida das personagens obedecia a determinismos psicológicos.
A telenovela actual – conteúdo que também se comercializa no suporte livro, dispostos em pilhas a atravancar as entradas dos supermercados – cumpre desenvolvimentos maniqueístas em cenários de caricatura leve da realidade.
Em «Cartografia de Ossos», o cru mundo em que vivemos resulta da luta que lhe subjaz, e que Domingos Lobo eximiamente sintetiza, pág. 118: Um mundo em que uns, são«os vencidos de uma liberdade que se foi aos poucos esboroando por falta de alimento, de oxigénio, da febre dos húmus, deixando perdido em labirintos de ranço um país prostrado, submisso e ausente, com a roupa de dentro a ver-se e o mau cheiro escondido em caves bolorentas.» Os outros, os que «que ficcionaram uma pátria inexistente, uma ficção de plástico, espécie de fábula crioula, folhetim piegas no qual metade do povo fala um dialecto indígena, intraduzível, e não cabe nem se reflecte na fotografia da pompa e circunstância, nessa vacuidade pífia e inchada de ar putrefacto que se masturba entesando o peito para que nele as sumidades desta pátria de eunucos que se “devoram a si mesmos” espetem, a preceito, uma comenda de lata e desvergonha.»
_______
Notas
1 . – Nova Vega, Lisboa, 2012
2 . – «Mas o capitão tinha seus caprichos, é natural. Teimava que aquilo era uma guerra e tinha de haver disciplina senão era do caraças, o caos, a anarquia, com a consequente falência moral das tropas: o r.d.m. era para cumprir. E o r.d.m. era o r.d.m. catano, não era o kamasutra, isto não é bordel nem estância balnear, seus tansos, e a partir de agora quem não cumprir o que vem nos buques, tem como prémio um extenso rol de passatempos que vai desde a limpeza das fossas…

Como se a presença destes destemidos marinheiros não bastasse para garantir a segurança e bem estar dos mancebos – todos não somos bastantes, botas dixit –, lá estava o destacamento atento, venerando e obrigado da pide, a interrogar peixes, a arrancar unhas aos crocodilos mais subversivos, a espancar sobas e mainatos fugidos à fome, a insultar a lua e a dor de corno, a coçar os colhões e a flor-do-congo até o sangue subir à cabeça da picha, a palitar dentes podres, a encher o ar de vermes e mau cheiro.»
«Os navios negreiros não sobem o Cuando», Nova Veja, 2.ª edição 2005, pág. 20.
3. – A exuberância de «A estranha guerra do Largo do Intendente»:
Pág. 15: «Naquela noite as prostitutas de entre Martim Moniz e Intendente, andavam em roda polideira entre o basto assustadas e o ligeiramente inquietas, era conforme a idade e o tempo gasto em criar musgo e manha para contornar os apertos da bófia e os ataques dos chulos.

Pág. 27: O mundo estava cada vez mais igual e enfadonho: uma choldra. Era urgente uma nova revolução cultural. Este país não tem emenda. Desandemos, disse imperioso Stanley. Embarcaram, nessa noite, num cacilheiro trôpego rumo a Xangai. Com eles seguiu Micolinacoçacudedo, cuja escapara, dada a vetusta idade, à saga reformista.
Este país é só relaxações e devassidão capitalista. Sempre afirmei, desde que vi o Afonso bater na Teresinha, que este país não tinha futuro. Micolinacoçacudedo deleitava-se em filosofias de pataco catando piolho vesgo na careca de Stanley Ho, enquanto o luar de Janeiro entrava pela escotilha e lhe acirrava a urticária no caruncho das coxas.»
In «Território Inimigo», Edições Cosmos, 2009.
4 . – Domingos Lobo nasceu em Nagozela.
5. – Título redoliano, como se sabe. Um dia, de uma tese de doutoramento constará uma extensíssima lista das referências literárias contidas nesta, e noutras obras de Domingos Lobo, ainda que se restrinja o inventário à menção de títulos.

Sem comentários: