domingo, 26 de abril de 2015

As chuvas de Maio e as lojas gourmet

“As lojas gourmet são as perfumarias de outrora, discretas, cheias de luxos sugestivos, cobertas de auras misteriosas”

Por António Sousa Homem

As primeiras chuvas de Maio foram já tépidas e não obrigaram à alteração no guarda-roupa de Moledo, que é geralmente sensato. Ao contrário dos hábitos do velho Doutor Homem, meu pai, a "roupa de meia estação" (um eufemismo para falar das transições entre as sucessivas guerras dos Elementos) caiu hoje em desuso. A minha sobrinha Maria Luísa, com pesar e algum drama, atribui a catástrofe às alterações climáticas; esquecia-me de dizer que ela pensa que se trata de uma catástrofe. Tem alguma razão: houve peças que saíram do guarda-roupa e nunca mais foram guardadas de ano para ano, não só porque as pessoas desejaram vestuário mais "prático" (um absurdo) mas também porque as estações do ano dão saltos abruptos para o colo umas das outras até se confundirem ou até se separarem definitivamente. Com isso, as pessoas perderam bastante – as ‘toilettes’ de antigamente desapareceram, a pose de antigamente (estudada, frívola, ‘snob’, geralmente elegante) também desapareceu, e o clima perdeu importância desde que deixámos de usar chapéu, abafos irregulares e fazendas de alfaiate.

De qualquer modo, a minha sobrinha chegou a Moledo na semana passada acompanhada de um ligeiro granizo das serras – que lembrou o descontrole da nossa atmosfera e a desconfiança eterna a que em casa eram votados os cavalheiros da meteorologia, sisudos e de voz grave, esclarecida. Ela trouxe produtos de uma loja gourmet de Braga – fumados escolhidos, compotas perfumadas, bolachas de latitudes longínquas, um vinho húngaro, entre outras primícias. Parecia a chegada do meu Tio Alberto, no regresso das suas viagens misteriosas. O vinho húngaro, o Tokai, pertence à nossa memória, e os seus atributos prendiam-se sempre com a suspeita de amores imaginários com princesas longínquas ou com a existência de paixões mirabolantes que nunca teriam romance escrito à altura. ~

As lojas gourmet são as perfumarias de outrora, discretas, cheias de luxos sugestivos, cobertas de auras misteriosas. Dona Elaine desconfia, naturalmente; ela acha que a compota de groselha é uma invenção hostil à nossa compota de amoras, carregada de uma saudável carga de açúcares amarelos transformados em xarope perfumado. Os fumados de arenque parecem-lhe sardinha de barrica, a comida para pobres dos seus primos dos Arcos; e quanto aos vinhos doces, de sobremesa, ela sugere que o vinho abafado ou as ginjas seculares de Ponte da Barca cumprem perfeitamente a sua função. Por mim, contive-me. À falta de roupa de meia estação e de um boné de ‘tweed’, a ideia de uma loja gourmet não estava mal. Era falsa, sim; mas compensava...

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