Tradução - Sandra Cristina da Costa Luna
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63 Elevando-se bem acima da cidade, numa coluna alta, erguia-se a estátua do
Príncipe Feliz. Era toda revestida de finas folhas de ouro puro, nos olhos
tinha duas safiras brilhantes, e um grande rubi vermelho cintilava no punho da
sua espada. De facto, o Príncipe Feliz1 era muito admirado. “É bonito como um
cata-vento,” comentou um dos conselheiros municipais que queria ganhar
reputação por ter gostos artísticos; “só não é assim tão útil,” acrescentou,
receando que o considerassem pouco prático, o que realmente ele não era.
“Porque não podes ser como o Príncipe Feliz?” perguntou uma mãe sensata ao
filho que lhe pedia a lua.2 “ O Príncipe Feliz nem sequer sonha em chorar por
alguma coisa.” “Ainda bem que há alguém no mundo que está tão feliz,” murmurou
um homem desiludido enquanto fitava a maravilhosa estátua. “Parece mesmo um
anjo,” disse uma das crianças do orfanato quando saíam da catedral nas suas
capas escarlate vivo e nos seus bibes imaculados.3 “Como sabeis?”4 disse o
Professor de Matemática, “nunca vistes um.” 5 “Ah! Isso é que vimos, em
sonhos!” responderam as crianças; então o professor de matemática franziu o
sobrolho e pôs um ar muito severo, pois não aprovava que as crianças sonhassem.
Uma noite voou sobre a cidade uma pequena andorinha. 6 As suas amigas tinham
ido para o Egipto seis semanas antes, mas ela tinha ficado para trás, pois
estava apaixonada por um junco belíssimo.7 Tinha-o conhecido no início da
Primavera enquanto voava rio abaixo atrás de uma grande mariposa amarela, e
tinha ficado tão atraída pela sua cintura fina que tinha parado para falar com ele.8
“Posso amar-te?” disse a andorinha, que gostava de ir direita ao assunto, e o
junco fez-lhe uma vénia profunda. Então voou de roda dele, tocando a água com
as suas asas e fazendo círculos prateados.9 E foi assim a sua corte ao longo de
todo o Verão
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_________________ 64 “É uma relação ridícula,” censuravam as outras andorinhas.10 “ele não tem dinheiro e tem demasiados parentes”. E de facto o rio estava repleto de juncos. Depois, quando o Outono chegou, todas voaram para longe. Após terem partido a andorinha sentiu-se sozinha e começou a ficar cansada do seu amado. “ Não tem conversa,” disse ela, e temo que seja um dandi, sempre a namoriscar com o vento.” E era certo, quando o vento soprava, o junco fazia as mais graciosas reverências. “Admito que é caseiro,” continuou, “mas adoro viajar, e por isso, o meu marido deveria também adorar viajar.” “Vens embora comigo?”, disse-lhe finalmente; mas o junco abanou a cabeça, estava tão agarrado à sua casa. “Tens andado a brincar comigo,” exclamou. “Vou-me embora para as pirâmides. Adeus!” e voou para longe. Todo dia voou e à noite chegou à cidade. “Onde irei hospedar-me?” disse; “Espero que a cidade tenha feito preparativos.” Depois viu a estátua na coluna alta. “Vou hospedar-me aqui,” disse; “tem uma óptima situação, com muito ar fresco.” E lá pousou ela mesmo aos pés do Príncipe Feliz. “Tenho um quarto dourado,” disse suavemente para si mesma ao olhar em volta e preparando-se para adormecer; mas, quando estava mesmo a pôr a cabeça debaixo da asa, uma grande gota de água caiu-lhe em cima. “Que coisa estranha!” exclamou; “não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão muito nítidas e brilhantes e, porém, está a chover. O clima no norte da Europa é realmente desagradável. O junco costumava gostar da chuva, mas era só egoísmo seu.” Então caiu outra gota. “Qual a utilidade duma estátua se não consegue manter a chuva afastada?” disse; “Tenho de procurar um bom tubo de chaminé,” e decidiu voar para longe. Mas antes de ter aberto as asas, uma terceira gota caiu e ela olhou para cima e viu… Ah! 11 O que é que ela viu?
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_________________ 64 “É uma relação ridícula,” censuravam as outras andorinhas.10 “ele não tem dinheiro e tem demasiados parentes”. E de facto o rio estava repleto de juncos. Depois, quando o Outono chegou, todas voaram para longe. Após terem partido a andorinha sentiu-se sozinha e começou a ficar cansada do seu amado. “ Não tem conversa,” disse ela, e temo que seja um dandi, sempre a namoriscar com o vento.” E era certo, quando o vento soprava, o junco fazia as mais graciosas reverências. “Admito que é caseiro,” continuou, “mas adoro viajar, e por isso, o meu marido deveria também adorar viajar.” “Vens embora comigo?”, disse-lhe finalmente; mas o junco abanou a cabeça, estava tão agarrado à sua casa. “Tens andado a brincar comigo,” exclamou. “Vou-me embora para as pirâmides. Adeus!” e voou para longe. Todo dia voou e à noite chegou à cidade. “Onde irei hospedar-me?” disse; “Espero que a cidade tenha feito preparativos.” Depois viu a estátua na coluna alta. “Vou hospedar-me aqui,” disse; “tem uma óptima situação, com muito ar fresco.” E lá pousou ela mesmo aos pés do Príncipe Feliz. “Tenho um quarto dourado,” disse suavemente para si mesma ao olhar em volta e preparando-se para adormecer; mas, quando estava mesmo a pôr a cabeça debaixo da asa, uma grande gota de água caiu-lhe em cima. “Que coisa estranha!” exclamou; “não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão muito nítidas e brilhantes e, porém, está a chover. O clima no norte da Europa é realmente desagradável. O junco costumava gostar da chuva, mas era só egoísmo seu.” Então caiu outra gota. “Qual a utilidade duma estátua se não consegue manter a chuva afastada?” disse; “Tenho de procurar um bom tubo de chaminé,” e decidiu voar para longe. Mas antes de ter aberto as asas, uma terceira gota caiu e ela olhou para cima e viu… Ah! 11 O que é que ela viu?
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65 Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, lágrimas que lhe
corriam pelas faces douradas abaixo. O seu rosto era tão belo ao luar que a
pequena Andorinha ficou cheia de pena. 12 “Quem és tu?”, perguntou. “Eu sou o
Príncipe Feliz.” “Então porque choras?”13, perguntou a Andorinha;
“Encharcaste-me completamente.”14 “Quando era vivo e tinha um coração humano,”
respondeu a estátua, “não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio
Sans-Soussi, onde a dor não está autorizada a entrar.15 Durante o dia brincava
com os meus companheiros no jardim e à noite abria o baile no Salão Nobre.16 A
toda a volta do jardim erguia-se um muro altivo, mas nunca me dei ao trabalho
de perguntar o que estava para lá dele, tudo à minha volta era tão bonito. Os
meus cortesãos chamavam-me o Príncipe Feliz, pois eu era verdadeiramente feliz,
se prazer é felicidade.17 Assim vivi e assim morri. Agora que estou morto,
ergueram-me18 aqui tão alto que consigo ver toda a fealdade e miséria da minha
cidade e, apesar de o meu coração ser de chumbo, não posso deixar de chorar.”
“O quê? Não é de ouro maciço?” perguntou a andorinha de si para si. Era
demasiado educada para fazer qualquer comentário pessoal em voz alta. “Lá
longe,” continuou a estátua numa voz baixa e musical, “lá longe, numa ruela, há
uma casa pobre. Uma das janelas está aberta e através dela consigo ver uma
mulher sentada a uma mesa. Tem o rosto magro e gasto, e as mãos vermelhas,
ásperas, todas picadas pela agulha, pois trata-se de uma costureira. Está a
bordar passifloras19 num vestido de cetim para a mais encantadora das damas de
honor da rainha usar no próximo baile da corte. Numa cama ao canto da sala, o
filho está doente de cama. Tem febre e está a pedir laranjas. A mãe não tem
nada para lhe dar a não ser água do rio, por isso ele está a chorar. Andorinha,
andorinha, pequena andorinha20, por que não lhe levas o rubi do punho da minha
espada? Tenho os pés atados a este pedestal e não consigo mexer-me.” “Estão à
minha espera no Egipto,” disse a andorinha. “As minhas amigas já voam Nilo
acima, Nilo abaixo e falam com as grandes flores de lótus. Em breve irão dormir
no túmulo do grande rei. O próprio rei lá está no seu caixão pintado. Está
envolto em linho
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66 amarelecido e embalsamado com especiarias.21 À volta do pescoço tem um colar
de jade verde-pálido e as suas mãos são como folhas secas.” “Andorinha,
andorinha, pequena andorinha,” disse o Príncipe, “não ficas comigo uma noite e
és minha mensageira? O rapaz está sequioso e a mãe tão triste.” “Acho que não
gosto de rapazes,” respondeu a andorinha. “No verão passado, junto ao rio,
havia dois rapazes malcriados, os filhos do moleiro, que estavam sempre a
atirar-me pedras. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais
para que isso aconteça e, além disso, venho de uma família famosa pela sua
agilidade; mesmo assim, foi um sinal de desrespeito.” Mas o Príncipe Feliz
tinha um ar tão triste que a pequena andorinha sentiu pena. “Está muito frio
aqui,” disse; “mas ficarei contigo por uma noite e serei tua mensageira.”
“Obrigada, pequena andorinha,” disse o Príncipe. Então a andorinha pegou no
grande rubi da espada do Príncipe e voou para longe com ele no bico por cima
dos telhados da cidade. Passou pela torre da catedral, onde estavam esculpidos
anjos de mármore branco. Passou pelo palácio e ouviu o som de dança. Uma bela
rapariga saía para a varanda com o seu apaixonado. “Como são maravilhosas as
estrelas,” disse-lhe ele, “e como é maravilhoso o poder do amor!” “Espero que o
meu vestido esteja pronto a tempo do baile de gala,” respondeu ela; “Mandei
bordar passifloras; mas as costureiras são tão preguiçosas.” A andorinha passou
pelo rio e viu as candeias penduradas nos mastros dos navios. Passou por cima
do gueto e viu os velhos judeus a regatear uns com os outros e a pesar dinheiro
em balanças de cobre. Finalmente, chegou ao casebre e espreitou para dentro. O
rapaz contorcia-se febril na cama e a mãe tinha adormecido, de tão cansada que
estava. Saltitou para dentro e pousou o grande rubi na mesa junto ao dedal da
mulher. Depois esvoaçou à volta do quarto, refrescando a testa do rapaz com as
suas asas. 22 “Sinto-me tão fresco,” disse o rapaz, “Devo estar a ficar
melhor”; e caiu num sono delicioso.23 Depois, a andorinha voou de volta para o
Príncipe Feliz e contou-lhe o que tinha feito. “É estranho,” observou, “mas até
me sinto quente agora, apesar de estar tanto frio _______________________________________________________________________________
67 “É porque fizeste uma boa acção,” disse o Príncipe. E a pequena andorinha
pôs-se a pensar e logo depois adormeceu. Pensar sempre lhe dava sono. Quando o
dia nasceu, voou até ao rio e tomou banho. “Que fenómeno singular,” disse o
professor de ornitologia enquanto atravessava a ponte. “Uma andorinha no
Inverno!” E escreveu uma longa carta sobre isso ao jornal local. Toda a gente a
citava, estava tão cheia de palavras que ninguém conseguia perceber. “Esta
noite vou para o Egipto,” disse a andorinha, animada com a ideia. Visitou todos
os monumentos públicos e ficou pousada durante muito tempo no topo do
campanário da igreja. Por onde quer que andasse, os pardais chilreavam e diziam
uns aos outros, “Que distinta, esta estranha!” portanto divertiu-se imenso.
Quando a lua surgiu, ela voou de volta para o Príncipe Feliz. “Tens algum
recado para o Egipto?” exclamou; “Vou pôr-me a caminho.” “Andorinha, andorinha,
pequena andorinha,” disse o Príncipe, “porque não ficas comigo mais uma noite?”
“Estão à minha espera no Egipto,” respondeu a andorinha. “Amanhã as minhas
amigas voarão para lá da Segunda Catarata.24 O hipopótamo aninha-se no meio do
canavial e o Deus Mémnon senta-se no grande trono de granito. 25 Durante toda a
noite ele observa as estrelas e, quando a estrela da manhã brilha, solta um
grito de alegria, para depois voltar ao silêncio. Ao meio dia, os leões
amarelos aproximam-se da beira da água para beber. Têm olhos como berilos
verdes26 e rugem ainda mais alto do que a catarata. “Andorinha, andorinha,
pequena andorinha,” disse o Príncipe, “ lá longe do outro lado da cidade vejo
um jovem numa mansarda. Está curvado sobre uma secretária coberta com papéis, e
num vaso a seu lado há um ramo de violetas murchas. Tem cabelo castanho e
crespo, lábios vermelhos como romãs e olhos grandes e sonhadores. Está a tentar
acabar uma peça para o director do teatro, mas tem demasiado frio para poder
continuar a escrever. Não há fogo na lareira e enfraqueceu de fome.” “Ficarei
contigo mais uma noite,” disse a andorinha, que realmente tinha bom coração.
“Levo-lhe outro rubi?” “Ai de mim! Já não tenho nenhum rubi,” disse o Príncipe;
“os meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras raras, trazidas
da Índia há mil anos. Arranca um deles
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68 e leva-lho. Há-de vendê-lo ao joalheiro para comprar comida e lenha e
terminar a sua peça.” “Querido Príncipe,” disse a andorinha, “eu não posso
fazer isso”; e começou a chorar. “Andorinha, andorinha, pequena andorinha,”
disse o Príncipe, “faz o que te mando.” Então a andorinha arrancou o olho do
Príncipe e voou para a mansarda do estudante. Foi fácil entrar, já que havia um
buraco no telhado. Lançou-se por ele fora e entrou no quarto. O jovem tinha a
cabeça enterrada nas mãos, por isso não ouviu o bater das asas do pássaro, mas
quando ergueu os olhos encontrou a bela safira pousada nas violetas murchas.
“Começo a ser reconhecido,” exclamou; “isto é de um grande admirador. Agora
posso acabar a minha peça,” e ficou todo contente. No dia seguinte a andorinha
voou até ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os
marinheiros a içar grandes arcas para o porão com cordas. “Ooupa!”27 gritavam à
medida que cada arca subia. “Vou para o Egipto!” exclamou a andorinha, mas
ninguém lhe prestava atenção; e quando a lua subiu, voou de volta para o
Príncipe Feliz. “Vim dizer-te adeus,” exclamou. “Andorinha, andorinha, pequena
andorinha,” disse o Príncipe, “porque não ficas comigo mais uma noite?” “É
Inverno,” respondeu a andorinha, “e a neve gelada estará aqui em breve. No
Egipto o sol é quente nas palmeiras verdes e os crocodilos estão deitados na
lama com um ar muito preguiçoso. As minhas companheiras estão a construir um
ninho no Templo de Baal, e as pombas cor-de-rosa e brancas observam-nas
arrulhando umas para as outras.28 Querido Príncipe, tenho de te deixar mas
nunca te esquecerei, e na próxima Primavera heide trazer-te duas belas jóias
para o lugar das que ofereceste. O rubi será mais vermelho que uma rosa
vermelha e a safira será tão azul como o imenso mar.”
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69 “Na praça aqui em baixo,” disse o Príncipe Feliz, “está uma pequena
vendedora de fósforos.29 Deixou cair os fósforos na sarjeta e estão todos
estragados. O pai vai bater-lhe se ela não levar para casa algum dinheiro, e
ela está a chorar. Não tem sapatos nem meias, e tem a cabecinha descoberta.
Arranca o meu outro olho e dá-lho, para que o pai não lhe bata.” “Ficarei
contigo mais uma noite,” disse a andorinha, “mas não posso arrancar-te o outro
olho. Ficarias completamente cego.” “Andorinha, andorinha, pequena andorinha,”
disse o Príncipe, “faz o que te mando.” Então ela arrancou o outro olho ao
Príncipe e partiu dali com ele.30 Passou em voo rasante pela vendedora de
fósforos e meteu-lhe a jóia na palma da mão.31 “Que lindo pedaço de vidro,”
exclamou a menina; e correu para casa, rindo. Depois a andorinha regressou ao
Príncipe. “Estás cego agora,” disse, “por isso, ficarei sempre contigo.” “Não,
pequena andorinha,” disse o pobre Príncipe, “tens de ir embora para o Egipto.”
“Ficarei sempre contigo,” disse a andorinha, e dormiu aos pés do Príncipe.
Passou todo o dia seguinte pousada no ombro do Príncipe, contando-lhe histórias
do que tinha visto em terras estranhas. Falou-lhe das íbis32 vermelhas, que se
alinham ao longo das margens do Nilo e apanham peixinhos dourados com os bicos;
da Esfinge, que é tão velha como o próprio mundo, mora no deserto e tudo sabe;
dos mercadores, que caminham devagar ao lado dos seus camelos transportando nas
mãos contas de âmbar33; do Rei das Montanhas da Lua34, que é tão negro como o
ébano e presta culto a um grande cristal; da grande cobra verde que dorme numa
palmeira e tem vinte sacerdotes alimentando-a com broinhas de mel; e dos
pigmeus que navegam em grandes folhas lisas num grande lago e estão sempre em
guerra com as borboletas
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70 “Querida pequena andorinha,” disse o Príncipe, “falas-me de coisas
maravilhosas, mas mais maravilhoso que tudo é o sofrimento de homens e
mulheres. Não existe mistério tão grande como a miséria. Voa sobre a minha
cidade, andorinha, e conta-me o que lá vês.” Então a andorinha voou sobre a
grande cidade e viu os ricos a divertir-se nas suas belas casas, enquanto os
pobres se sentavam aos portões. Voou por vielas sombrias e viu as caras pálidas
de crianças esfomeadas a olhar com indiferença as ruas negras. Debaixo dos
arcos de uma ponte dois meninos abraçavam-se um ao outro para se manterem
quentes. “Temos tanta fome!” diziam. “Não podeis deitar-vos aqui,” gritou o
vigia, e eles desapareceram na chuva.35 Depois voou de volta para o Príncipe e
contou-lhe o que tinha visto. “Estou coberto de ouro puro,” disse o Príncipe,
“deves retirá-lo, folha por folha, e dá-lo aos meus pobres; os vivos pensam
sempre que o ouro os pode fazer felizes.” Folha após folha do ouro puro a
andorinha foi retirando, até que o Príncipe Feliz ficou sem brilho e cinzento.
Folha após folha do ouro puro foi ela levando aos pobres; os rostos das
crianças foram ficando rosados e elas riam e brincavam na rua. “Já temos pão!”
exclamavam. Depois veio a neve e depois da neve, a geada. As ruas pareciam
feitas de prata, tão brilhantes e reluzentes; longos pingentes de gelo como punhais
de cristal pendiam das goteiras das casas. Toda a gente se vestia de peles, as
crianças usavam gorros vermelhos e patinavam no gelo.36 A pobre pequena
andorinha tinha cada vez mais frio mas não abandonaria o Príncipe, amava-o
tanto. Apanhava migalhas à porta da padaria, quando o padeiro não estava a ver,
e tentava manter-se quente batendo as asas. Mas finalmente soube que iria
morrer. Teve apenas forças para voar para o ombro do Príncipe uma vez mais.
“Adeus, querido Príncipe!” murmurou, “deixas-me beijar-te a mão?” “Fico feliz
por finalmente ires para o Egipto, pequena andorinha,” disse o Príncipe, “ já
cá ficaste demasiado tempo; mas tens de me beijar nos lábios, porque eu amo-te
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71 “Não é para o Egipto que eu vou,” disse a andorinha. “Vou para a casa da
morte. A morte é a irmã do sono, não é?”37 Beijou o Príncipe Feliz nos lábios e
caiu morta a seus pés.38 Nesse momento um curioso estalido soou no interior da
estátua, como se alguma coisa se tivesse partido. A verdade é que o coração de
chumbo se tinha rachado em dois. Sem dúvida que era um Inverno extremamente
rigoroso. 39 Bem cedo na manhã seguinte, o presidente da câmara caminhava em
baixo na praça na companhia dos conselheiros municipais. Ao passar pela coluna
olhou para cima para a estátua: “Valha-me Deus! Que gasto parece o Príncipe
Feliz!” disse. “Que gasto, realmente!” exclamaram os conselheiros municipais,
que concordavam sempre com o presidente da câmara; e foram lá todos acima olhar
para ele. “O rubi caiu da espada, os olhos foram-se e já não é dourado,” disse
o presidente da câmara, “de facto é pouco melhor que um pedinte!” “Pouco melhor
que um pedinte,” disseram os conselheiros municipais. “E até está aqui um
pássaro morto a seus pés!” continuou o presidente da câmara. “Temos mesmo de
fazer um decreto para não permitir aos pássaros morrer aqui.” E o arquivista do
município tomou nota da sugestão. Então deitaram abaixo a estátua do Príncipe
Feliz. “Como já não é belo, já não é útil,” disse o professor de arte na
universidade. Depois derreteram a estátua numa fornalha, e o presidente da
câmara teve uma reunião da Assembleia para decidir o que fazer com o metal.40
“Temos de ter outra estátua, é claro,” disse, “e será uma estátua de mim
próprio.” “De mim,” disseram cada um dos conselheiros municipais, e discutiram.
Da última vez que ouvi falar deles ainda estavam a discutir.
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72 “Que coisa estranha!” disse o encarregado dos operários na fundição. “Este
coração de chumbo partido não derrete na fornalha. Temos de o deitar fora.”
Então deitaram-no para um monte de lixo onde também a andorinha jazia morta.
“Traz-me as duas coisas mais valiosas da cidade,” disse Deus a um dos seus
anjos; e o anjo levou-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto. “Escolheste
bem,” disse Deus, “pois no meu jardim do Paraíso este passarinho cantará para
todo o sempre e na minha cidade de ouro o Príncipe Feliz louvar-me-á.
http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/55978/2/tesemestsandraluna000127843.pdf
Gravura El Príncipe Feliz y
otros cuentos de Oscar Wilde, ilustrado por Walter Crane y Jacomb
Hood, se publicó en 1888, in
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