quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

“Três capítulos de ‘Os Maias’ estiveram perdidos na tipografia

“Três capítulos de ‘Os Maias’ estiveram perdidos na tipografia. O livro podia nem sequer ter sido publicado”
21.02.2018 às 17h38
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 “Estilos precisos e dúcteis” não é o mesmo que “estilos preciosos e dúcteis” e é por sabê-lo que os investigadores Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha regressaram à primeira edição de “Os Maias” e às notas e correspondência de Eça de Queirós para reconstituir o texto na versão mais aproximada da intenção do autor. E também para entender as voltas que a obra maior da ficção queirosiana deu, passando de mãos para mãos em diferentes tipografias. A edição crítica do romance é apresentada esta quarta-feira, em Lisboa
Sendo o romance “Os Maias” considerado a obra maior da ficção queirosiana, porque é que esta edição crítica e anotada só é publicada agora? Foi uma escolha editorial?
Isto é um trabalho que envolve muita gente, sobretudo professores universitários e investigadores que têm os seus ritmos de trabalho, as suas prioridades e os seus doutoramentos para fazer. Depende muito da disponibilidade dos colaboradores. Não há uma ordem pré-estabelecida, mas evidentemente que a extensão dos materiais tem aqui alguma influência e “Os Maias” são de facto uma obra muito extensa. A coleção das edições críticas das obras de Eça de Queirós - que integra livros que foram publicados em vida, como “Os Maias”, outros que foram publicados postumamente, como “A Capital”, volumes que reúnem textos que Eça publicou em jornais mas não reuniu em livro - está organizada por setores e essa organização tem uma lógica editorial.


Foi a partir da edição de 1888, a primeira e única publicada enquanto Eça era vivo, que trabalharam? 
Sim, trabalhámos a partir dessa edição que é aquilo a que chamamos edição autorizada, isto é, a única edição que Eça acompanhou e que teve muitos acidentes de percurso. O texto esteve na tipografia mais de oito anos. Eça vivia no estrangeiro e isso também complicava as coisas. Seja como for, essa edição ficou como o único texto de referência. Há alguns materiais de espólio, como um ou outro manuscrito abandonado, que também foram aqui usados, mas mais como apêndices e trabalho preparatório. Não trabalhámos a partir de manuscritos porque de facto não há manuscritos. Devem ter-se perdido quando Eça os enviou para a tipografia a partir da Inglaterra.


Em termos de texto, esta edição é então em tudo semelhante à primeira?
Não é exatamente igual, porque esta edição intervém nos lugares do texto em que é preciso intervir. Dou-lhe um exemplo. Eça usava muitos estrangeirismos, “champagne” por exemplo, mas às vezes esses estrangeirismos eram aportuguesados e outras vezes não. Também a forma como a palavra “turiste” aparece escrita na página 27 não é igual à forma como aparece escrita na página 627. Foi preciso andar num vai-vem constante no texto para tentar uniformizar este tipo de divergências. A obra levou muito tempo a ser escrita e passou de facto por muitas mãos em diferentes tipografias, o que fez com que os critérios fossem muito oscilantes. Na época, os escritores confiavam muito no trabalho das tipografias e isso gerava algumas discrepâncias e incongruências. A edição crítica procura, na medida do possível, normalizar o texto. E evidentemente resolver também alguns lapsos que o escritor cometeu e o tipógrafo não viu.


O que acrescenta esta edição crítica às leituras que normalmente fazemos de “Os Maias”?
A essas leituras que fazemos acrescenta as correções que incidem sobre erros que foram cometidos ao longo dos tempos. Dou-lhe um exemplo, tratando-se este de um erro que não está na primeira edição do romance, publicada enquanto Eça ainda era vivo, mas que foi aparecendo nas edições seguintes. Há um certo passo em que se fala em “estilos precisos e dúcteis”. No entanto, a certa altura, e em edições posteriores, introduziu-se aqui uma gralha, passando a ler-se “estilos preciosos e dúcteis”, o que evidentemente tem um significado diferente. Isto é só um exemplo, porque há de facto várias gralhas que se foram repetindo ao longo dos anos. Pergunta-me - para que serve então uma edição crítica? E eu respondo-lhe - serve como matriz para futuras edições. É um pouco como se quiséssemos reproduzir um quadro mas, percebendo que esse quadro está um pouco estragado, optássemos por restaurá-lo primeiro e só depois então reproduzir. Assim, as editoras que continuam a editar “Os Maias” têm de considerar o facto de já existirem edições críticas de muitos títulos. Porque de facto não faz sentido fazermos edições desta natureza se as edições correntes, que estão no mercado, não baseiam nessas edições críticas. É como se estivéssemos constantemente a repetir os mesmos erros e a reproduzir a versão estragada do quadro e não a restaurada.

DIVULGAÇÃO

As editoras não têm considerado essas edições?
Algumas sim, outras não, e basicamente por razões económicas. De facto, é mais barato reproduzir infinitamente e também dá menos trabalho. Há quem invoque a questão dos direitos de autor, mas isso é apenas uma má desculpa, porque os direitos de Eça de Queirós estão em domínio público. A editora pode usar edições críticas sem ter de pagar um tostão nem à Imprensa Nacional nem à família de Eça. Se não usa, é por preguiça - porque usar edições críticas obriga a recompor o texto e não apenas a fazer uma reprodução fotomecânica - ou por razões económicas. Isto merece uma reflexão. A nossa ideia de património baseia-se muito no património físico - nas capelas românicas, nos quadros do séc. XVI e por aí fora. Se alguém estragar um monumento, uma escultura, uma pintura, uma capela ou a fachada de uma catedral, essa pessoa é responsabilizada e a comunidade indigna-se. Mas parece que as obras dos escritores não cabem neste critério e que portanto podem ser estragadas ao longo dos anos, que não há problema nenhum e ninguém se preocupa.


De que modo é que a leitura de notas escritas por Eça e da correspondência que ele trocou com personalidades suas contemporâneas contribuiu para fixação do texto?
Nesses documentos e cartas percebemos as voltas que o texto deu e os acidentes que conheceu. Três capítulos de “Os Maias” estiveram perdidos na tipografia, ninguém sabia onde estavam. Ou seja, o livro podia nem sequer ter sido publicado. Todos esses acidentes e todas essas orientaçoes que o escritor dá, a ajuda que pede aos amigos, como a Ramalhão Ortigão, e os pedidos que faz à tipografia para rever a obra, têm um valor muito grande para nós, ajudam-nos a reconstruir a história do texto.


Além desses acidentes e incidentes, e das dificuldades variadas associadas à escrita desta obra, o que mais revelam essas cartas
Revelam que, a partir de certa altura, no princípio dos anos 80, Eça percebe que este tema é de facto extremamente importante. E claramente resolve escrever o romance da vida dele. A história de “Os Maias” é muito complexa, com cenários muito amplos e muitas personagens, como de resto acontecia com os escritores daquela época. E Eça não tinha toda a disponibilidade para se dedicar ao romance, à ficção; escrevia inclusive para jornais para ganhar dinheiro. No meio disto tudo, e enquanto escreve o livro, atravessam-se vários projetos pelo seu caminho, como o romance “A Relíquia”. Tudo isto atrasou o processo. Refira-se também que, paradoxalmente, “Os Maias” são provavelmente o romance relativamente ao qual Eça de Queirós vai revelando ter mais dúvidas.


Que tipo de dúvidas?
Dúvidas do género - será que é isto que eu quero? Será que as pessoas vão entender isto? E de facto, na época, muita gente não entendeu. A obra era realmente muito ambiciosa. Está para além da dimensão de Portugal.


O que é que as pessoas não entenderam ou entenderam erradamente?
Quando o livro foi publicado, houve um incidente que causou polémica. Muita gente pensou que a personagem Tomás de Alencar era uma sátira do poeta Bulhão Pato, que era um senhor muito conhecido e respeitado. Pinheiro Chagas, por exemplo, foi muito veemente nessa acusação e o próprio Bulhão Pato também reagiu muito mal. Tudo isto para dizer que um grande romance daqueles limitou-se, para muita gente, a este incidente. Dou-lhe outro exemplo. Fialho de Almeida, outra pessoa muito respeitada na época e crítico influente, a dada altura acusa as personagens de Eça de serem todas muito parecidas umas com as outras e muito afrancesadas, ao que escritor respondeu dizendo qualquer coisa como - “Meu caro amigo, conhece Portugal? Conhece Lisboa? É assim que as pessoas são”. De facto, foi um romance que, na época, não teve leituras à sua altura.


E entretanto já teve?
Com certeza que sim. Ao longo dos anos, foi sendo entendido como o maior romance da literatura portuguesa e uma obra extremamente conhecida, apreciada e traduzida em dezenas de línguas. Só não é considerado um grande romance da literatura universal porque foi escrito em português. Se fosse escrito em inglês ou francês, disputaria lugar com o “Madame Bovary”, por exemplo, e com as obras do Dickens.


Além de ter sido pouco entendido, o livro também foi pouco comprado. Considera que já nos redimimos das falhas dos nossos antepassados? A obra já é valorizada como merece?
Acho que sim. Quando se trata de apreciação literária, às vezes não há como dar tempo ao tempo para que as verdades críticas venham ao de cima. A sucessão de leituras, muitas delas até já distanciadas, acabam por fazer justiça à obra. Isto não aconteceu só com Eça.


No prefácio a esta edição, descreve-se “Os Maias” como uma “empresa extremamente ambiciosa, expressão culminante e genial de muito daquilo que Eça tinha para dizer aos seus contemporâneos e à posteridade”. Porque é tão importante que a posteridade continue a ouvir o que Eça tinha para lhe dizer?
Basta olhar à nossa volta, não é? A nossa vida pública e a nossa vida privada estão cheias de personagens queirosianas vestidas à moda do séc. XXI. Repare como Eça caricaturou a figura do escritor, com os seus tiques, as suas manias, as suas vaidades, e repare como caricaturou a figura do político. Eça inventou a palavra verborreia a propósito do discurso político no parlamento e a pergunta que fica é - será que hoje em dia ainda faz sentido usar a palavra verborreia? Olhando à minha volta, olhando para a vida política, social, económica e religiosa, eu acho que faz. As manias, os pequenos vícios e as pequenas virtudes, tudo isso atormentou este homem que conheceu Portugal como pouca gente conheceu. E tudo isso continua muito presente na nossa vida pública. Tal como continuam presentes no nossos imaginário e cultura os grandes temas - o medo da morte, os amores proibidos, a questão do incesto.


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