domingo, 2 de junho de 2019

Quando os grandes romances nasciam nos jornais


Catarina Pires

25 Maio 2019 — 06:21


"Não há nada mais poderoso do que uma boa história", disse Tyrion, o anão de A Guerra dos Tronos, no último episódio da série que há oito anos prende milhões de espectadores. Os jornais perceberam isso há dois séculos e foi assim que nasceram os folhetins e muitos dos grandes romances dos séculos XIX e XX. É o caso de O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, engendrado nas páginas do Diário de Notícias.

A ideia chegou-lhes numa noite de verão, no passeio público [atual Avenida da Liberdade, em Lisboa], em frente de duas chávenas de café. Os dois amigos, Eça de Queirós, então com 24 anos, e Ramalho Ortigão, de 33, estavam aborrecidos, "penetrados pela tristeza da grande cidade que cabeceava de sono".

Vai daí deliberaram reagir e "acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias" [que à época se situava no Bairro Alto], contam eles no prefácio à terceira edição do folhetim em livro.

Um em Leiria (Eça), outro em Lisboa (Ramalho), munidos apenas da sua imaginação, de uma resma de papel, da sua alegria e da sua audácia, puseram mãos à obra e ter-se-ão divertido à brava naqueles dois meses em que enganaram o bom povo que lia o jornal e avidamente acompanhava as cartas ao "Sr. redator do Diário de Notícias", publicadas a partir de 24 de julho de 1870.

Estas, provenientes de diferentes protagonistas da aventura, todos anónimos, narravam misteriosos acontecimentos passados algures entre Sintra e a capital, que envolviam um oficial inglês morto com ópio, e iam formando um puzzle deslindado apenas a 27 de setembro, data em que os autores se deram a conhecer e revelaram a natureza ficcional do folhetim.

A trama, urdida para criar suspense dia após dia, obedecia à lógica folhetinesca, mas ao mesmo tempo subvertia-a na medida em que durante os dois meses em que foi publicada, só os autores e Eduardo Coelho, diretor do jornal e amigo de Ramalho Ortigão, saberiam que tudo aquilo existia apenas na imaginação dos dois escritores. Uma carta, assinada por Z. e antecedida de uma nota do próprio Diário de Notícias, é particularmente deliciosa, se lida a esta luz.

"Senhor redator do Diário de Notícias. - Lisboa, 30 de Julho de 1870. - Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como quase toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o doutor anónimo conta o caso que essa redação intitulou O Mistério da Estrada de Sintra. Interessava-me essa narrativa e (...) ia-me parecendo ter diante de mim o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do roman-feuilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim publicado hoje as iniciais do nome de um homem - A.M.C. - acrescentando-se que a pessoa designada por estas letras é estudante de Medicina e natural de Viseu! O acaso não podia reunir tudo isto. Havia, portanto, o intuito de fazer cobardemente uma insinuação infamíssima. Isto não é lícito a romancista nenhum.

"A primeira impressão que senti foi a da repulsão e do tédio. Saindo de casa pouco depois da leitura do seu periódico, procurei o meu amigo, para lhe ler a passagem que lhe dizia respeito, e pôr-me à sua disposição no caso de que precisasse de mim para pedir, quanto antes, à redação do Diário de Notícias a satisfação de honra, que homens de educação e de brio não poderiam decerto recusar a semelhante agravo. Em casa do meu amigo acabo, porém, de saber, cheio de confusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é ignorado o seu destino!"

Era ao povo e à burguesia - às massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos jornais.

A.M.C., que na verdade era tão inventado como Z., andava nas bolandas que fariam dele personagem fulcral para o desfecho da história de amor, ciúme, adultério e morte que apaixonou (e fez crescer) os leitores do Diário de Notícias. Uma história sem vilões, apenas trágicos e humanos enganos, na qual, pelo meio, Eça e Ramalho - é também um mistério quem escreveu o quê - vão já espetando umasFarpas, quando dão voz ao estudante de Medicina, e até teorizando sobre a volatilidade feminina e as (evitáveis?) fatalidades da paixão, fazendo lembrar Flaubert e a sua Madame Bovary, também ela publicada primeiro em folhetim - na revista Revue de Paris, em 1856 -, quando a condessa de W faz a sua confissão.

Era ao povo e à burguesia - às massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos jornais.

Assim, o rodapé da primeira página, designado de folhetim, onde iam parar os assuntos mundanos, as piadas, as receitas e os diz-que-diz, passou a ser ocupado por romances em série, os tais romans-feuilletons de que falava Z. na sua carta ao senhor redator do Diário de Notícias.

Honoré de Balzac foi um dos pioneiros do género, no jornal La Presse, em 1836, com A Solteirona, Alexandre Dumas fez render a sua pena com O Conde Monte CristoOsTrês Mosqueteiros, entre outros, mas o grande fenómeno aconteceu com Os Mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats entre junho de 1842 e outubro de 1843.

O escritor, filho do médico de Napoleão e frequentador dos salões da alta burguesia, desce ao bas fond parisiense e as histórias que resultam dessa incursão são de tal forma poderosas que não só atraem a atenção de milhares de leitores como o transformam também a ele, que de aspirante a dandy passa a ativista na defesa dos direitos do povo. O jornal ganhou leitores, a fórmula espalhou-se mundo fora - Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Brasil - e o folhetim conquistou um lugar de destaque na literatura mundial.

É certo que muita da produção literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas também tornou possível romances intemporais, como "Crime e Castigo".

Na senda de Os Mistérios de Paris, e ainda antes do disruptivo Mistério da Estrada de Sintra, Camilo Castelo Branco publicou, no diário portuense O NacionalOs Mistérios de Lisboa, em 1853, e muitas cidades e jornais do mundo tiveram os seus mistérios, atrás do sucesso de Eugène Sue.

É certo que muita da produção literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas o facto de permitir aos escritores uma renda regular, que lhes dava tempo e espaço para escrever, tornou possível romances intemporais, como Crime e Castigo, de Dostoievski, ouAnna Karénina, de Tolstoi; Ulisses, de James Joyce, ou os vários Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle; todos os romances de Charles Dickens ou A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe; A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, ou As Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, entre muitos outros.

No século XX, ao contrário do que talvez se possa pensar, o aparecimento da rádio e depois da televisão não mataram os folhetins. Um Adeus às Armas, de Heming­way,Terna É a Noite, de Scott Fitzgerald, ou A Sangue Frio, de Truman Capote, foram impressos primeiro em jornais ou revistas. E, enfim, as tramas seriadas foram conquistadas pelos microfones radiofónicos e ecrãs de televisão. As novelas e séries, que continuam a prender-nos, não são mais do que descendentes dos velhos folhetins.



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