Catarina Pires
25 Maio 2019 — 06:21
"Não há nada mais poderoso
do que uma boa história", disse Tyrion, o anão de A Guerra dos Tronos, no último episódio da série que há oito
anos prende milhões de espectadores. Os jornais perceberam isso há dois séculos
e foi assim que nasceram os folhetins e muitos dos grandes romances dos séculos
XIX e XX. É o caso de O Mistério da
Estrada de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, engendrado nas
páginas do Diário de Notícias.
A ideia chegou-lhes numa noite de
verão, no passeio público [atual Avenida da Liberdade, em Lisboa], em frente de
duas chávenas de café. Os dois amigos, Eça de Queirós, então com 24 anos, e
Ramalho Ortigão, de 33, estavam aborrecidos, "penetrados pela tristeza da
grande cidade que cabeceava de sono".
Vai daí deliberaram reagir e
"acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das
alturas do Diário de Notícias"
[que à época se situava no Bairro Alto], contam eles no prefácio à terceira
edição do folhetim em livro.
Um em Leiria (Eça), outro em
Lisboa (Ramalho), munidos apenas da sua imaginação, de uma resma de papel, da
sua alegria e da sua audácia, puseram mãos à obra e ter-se-ão divertido à brava
naqueles dois meses em que enganaram o bom povo que lia o jornal e avidamente
acompanhava as cartas ao "Sr. redator do Diário de Notícias", publicadas a partir de 24 de julho de
1870.
Estas, provenientes de diferentes
protagonistas da aventura, todos anónimos, narravam misteriosos acontecimentos
passados algures entre Sintra e a capital, que envolviam um oficial inglês
morto com ópio, e iam formando um puzzle deslindado
apenas a 27 de setembro, data em que os autores se deram a conhecer e revelaram
a natureza ficcional do folhetim.
A trama, urdida para criar suspense dia após dia, obedecia à
lógica folhetinesca, mas ao mesmo tempo subvertia-a na medida em que durante os
dois meses em que foi publicada, só os autores e Eduardo Coelho, diretor do
jornal e amigo de Ramalho Ortigão, saberiam que tudo aquilo existia apenas na
imaginação dos dois escritores. Uma carta, assinada por Z. e antecedida de uma
nota do próprio Diário de
Notícias, é particularmente deliciosa, se lida a esta luz.
"Senhor redator do Diário de Notícias. - Lisboa, 30 de
Julho de 1870. - Escrevo-lhe profundamente indignado. Principiei a ler, como
quase toda a gente em Lisboa, as cartas publicadas na sua folha, em que o
doutor anónimo conta o caso que essa redação intitulou O Mistério da Estrada de
Sintra. Interessava-me essa narrativa e (...) ia-me parecendo ter diante de mim
o ideal mais perfeito, o tipo mais acabado do roman-feuilleton, quando inesperadamente encontro no folhetim
publicado hoje as iniciais do nome de um homem - A.M.C. - acrescentando-se que
a pessoa designada por estas letras é estudante de Medicina e natural de Viseu!
O acaso não podia reunir tudo isto. Havia, portanto, o intuito de fazer
cobardemente uma insinuação infamíssima. Isto não é lícito a romancista nenhum.
"A primeira impressão que
senti foi a da repulsão e do tédio. Saindo de casa pouco depois da leitura do
seu periódico, procurei o meu amigo, para lhe ler a passagem que lhe dizia
respeito, e pôr-me à sua disposição no caso de que precisasse de mim para
pedir, quanto antes, à redação do Diário
de Notícias a satisfação de honra, que homens de educação e de brio
não poderiam decerto recusar a semelhante agravo. Em casa do meu amigo acabo,
porém, de saber, cheio de confusão e de surpresa, que ele desapareceu e que é
ignorado o seu destino!"
Era ao povo e à burguesia - às
massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam
atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as
influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos
jornais.
A.M.C., que na verdade era tão
inventado como Z., andava nas bolandas que fariam dele personagem fulcral para
o desfecho da história de amor, ciúme, adultério e morte que apaixonou (e fez
crescer) os leitores do Diário de
Notícias. Uma história sem vilões, apenas trágicos e humanos enganos, na
qual, pelo meio, Eça e Ramalho - é também um mistério quem escreveu o quê - vão
já espetando umasFarpas, quando dão
voz ao estudante de Medicina, e até teorizando sobre a volatilidade feminina e
as (evitáveis?) fatalidades da paixão, fazendo lembrar Flaubert e a sua Madame Bovary, também ela publicada
primeiro em folhetim - na revista Revue
de Paris, em 1856 -, quando a condessa de W faz a sua confissão.
Era ao povo e à burguesia - às
massas - que os folhetins se dirigiam. Eram estas que os jornais queriam
atrair, não só para ganharem leitores - e ganhavam - como para as
influenciarem, educarem, entreterem, prenderem. Nelas estava o futuro dos
jornais.
Assim, o rodapé da primeira
página, designado de folhetim, onde iam parar os assuntos mundanos, as piadas,
as receitas e os diz-que-diz, passou a ser ocupado por romances em série, os
tais romans-feuilletons de
que falava Z. na sua carta ao senhor redator do Diário de Notícias.
Honoré de Balzac foi um dos
pioneiros do género, no jornal La
Presse, em 1836, com A
Solteirona, Alexandre Dumas fez render a sua pena com O Conde Monte Cristo, OsTrês Mosqueteiros, entre outros, mas o
grande fenómeno aconteceu com Os
Mistérios de Paris, de Eugène Sue, publicado no Journal des Débats entre junho de 1842 e outubro de 1843.
O escritor, filho do médico de
Napoleão e frequentador dos salões da alta burguesia, desce ao bas fond parisiense e as
histórias que resultam dessa incursão são de tal forma poderosas que não só
atraem a atenção de milhares de leitores como o transformam também a ele, que
de aspirante a dandy passa
a ativista na defesa dos direitos do povo. O jornal ganhou leitores, a fórmula
espalhou-se mundo fora - Inglaterra, Estados Unidos, Rússia, Brasil - e o
folhetim conquistou um lugar de destaque na literatura mundial.
É certo que muita da produção
literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas também
tornou possível romances intemporais, como "Crime e Castigo".
Na senda de Os Mistérios de Paris, e ainda antes do
disruptivo Mistério da Estrada de
Sintra, Camilo Castelo Branco publicou, no diário portuense O Nacional, Os Mistérios de Lisboa, em 1853, e muitas cidades e jornais do
mundo tiveram os seus mistérios, atrás do sucesso de Eugène Sue.
É certo que muita da produção
literária impressa em páginas de jornal não ficou para a história, mas o facto
de permitir aos escritores uma renda regular, que lhes dava tempo e espaço para
escrever, tornou possível romances intemporais, como Crime e Castigo, de Dostoievski, ouAnna Karénina, de Tolstoi; Ulisses,
de James Joyce, ou os vários Sherlock
Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle; todos os romances de Charles Dickens
ou A Cabana do Pai Tomás, de
Harriet Beecher Stowe; A Guerra dos
Mundos, de H.G. Wells, ou As
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, entre muitos outros.
No século XX, ao contrário do que
talvez se possa pensar, o aparecimento da rádio e depois da televisão não
mataram os folhetins. Um Adeus às
Armas, de Hemingway,Terna É a Noite,
de Scott Fitzgerald, ou A Sangue
Frio, de Truman Capote, foram impressos primeiro em jornais ou revistas. E,
enfim, as tramas seriadas foram conquistadas pelos microfones radiofónicos e
ecrãs de televisão. As novelas e séries, que continuam a prender-nos, não são
mais do que descendentes dos velhos folhetins.
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