11/12/2015 por Carla Romualdo
Aqui chegados, há muito mais disponibilidade e paciência para meter conversa ou deixar-se meter conversa com desconhecidos. Às vezes, é gente intelectualmente estimulante, ou pelo menos assim o parece, esta luz mortiça até nos favorece, no bar modernoso do copo de tinto ao fim da tarde. Vêm com um Malraux debaixo do braço, óculinhos de massa, eu é que já não tenho 20 anos, essas deixas já não colam. Outras vezes, é o velhote chato da rua de Cimo de Vila, que vai batendo a bengala na calçada, e espera que apareça um aborígene para protestar-lhe do carro estacionado em cima da passadeira.
– É tudo deles, já viu?
É tudo deles, dos gajos que tomam conta disto tudo, do dono do bar de alterne que emprega a moça corcunda – já viu? tadita da catraia, catraia é como quem diz, já tem uns 50 bem atestados – do dono do hostel, do turista espanhol tan borde. Conversar com desconhecidos, já me explicava o meu velhote, é um marco civilizacional, não somos bichos que andamos para aqui, e é uma maneira como outra qualquer de fazer amigos. Numa cidade como a minha, pequenita, acaba-se sempre a descobrir que o desconhecido é primo do amigo da patroa do vizinho do Nando. Lembras-te do Nando? Então não?!
Passa, entretanto, o carteirista, que isto das cidades pequenas tem a vantagem adicional de conhecermos os carteiristas.
– Lá vai o gajo pró gamanço.
O carteirista – chama-se Rui – é aquele pintas que já foi puto reguila, adolescente malandro mas de bom coração e que poderia ter endireitado o rumo, mas teve uma infelicidade na vida – a mãezinha que se finou, um padrasto que lhe batia, uma mulher que lhe fugiu – e nunca mais saiu da cepa torta. Tem nariz comprido e afiado, é alto e magro como um canivete, tem um caminhar sacudido e sempre alerta, olha para trás muitas vezes, pudera!, tantos que têm contas para acertar com ele. É cobardolas, gosta de roubar velhotas, escapa-se a correr pelas escadas se pressente que alguém no prédio deu pela sua presença. Encontro-o muitas vezes pela cidade, normalmente à porta de um sítio, porque os ladrões de pouca monta são grandes observadores. Eu, se fosse presidente de câmara, havia de contratar um e tê-lo sempre por perto. Ninguém conhece a cidade como um profissional do gamanço. Tu serias uma péssima presidente de câmara, atiram-me. Por acaso.
O que é certo é que, num dia, estamos a ser roubados, no outro sentamo-nos lado a lado com o mãozinhas, ao balcão. Pode acontecer.
– Já me roubaste cinco euros, ó artista. Devias ser tu a pagar-me o almoço.
– Deve estar a fazer confusão, menina. Acontece-me muito.
Lá fora instala-se o Toni, o da aparelhagem. É uma história comprida. O Toni queria ser artista. Começou a cantar no Ultramar, animava as tropas, cantava fado, músicas do Max, do Tony de Matos, do Francisco José, “teus olhos castanhos…”. Isto era na Guiné, aos anos que isto vai. Depois voltou, arranjou emprego como taxista. Casou com a Guida, que era filha do Gervásio. Sabes, o Gervásio? Tinha aquele tasco, lá em baixo, ao pé do tribunal? Esse, exactamente. O Toni gostava era de cantar, formou um conjunto, tocava nos bailes, cantou uma vez num daqueles espectáculos da Radio Festival. Depois, a Guida teve aquele problema, ui, aquilo é que foi. E o Gervásio acabou mal, estava-se mesmo a ver. Agora, o Toni vive da reforma. Anda por aí com um chapéu de palha, fato branco de dealer sul-americano, e uma coluna de som, enorme, que ele traz num carrinho como se fosse uma botija de gás. Instala-se à porta da churrasqueira, do bingo, do bar, pede ao patrão para ligar as colunas, e toca a animar a esplanada. Canta músicas dos Iniciadores, dos Shadows, a “Pomba branca”. O grande êxito dele é aquela do “Som de cristal”, a mulher que, de tantas vezes ter sido deixada em casa pelo marido putanheiro, um dia foi trabalhar para um bar de alterne. As mulheres têm sempre fraca cabeça, nestas canções, também por aí se vê que sabem mais do mundo os do gamanço que os letristas.
A malta, ao balcão, ouve umas coisas, mete conversa, já não há conversas privadas. Ouve lá, tu não és o fulanito? Acabaram-se os anos finesse, do restaurante chique, da Avenida Brasil. Até o sushi, agora, só se for no rodízio. Pobres somos todos, mais nos vale conviver. Chega-me aí a broa, se fazes favor. E faz-me um sinal qualquer se me vires falar de mais.
http://aventar.eu/2015/12/11/eu-as-vezes-embarco-em-conversas-banais/#more-1241388
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