sábado, 2 de abril de 2022

Bruno Amaral de Carvalho - Os pássaros não cantam em Lugansk


REPORTAGEM -  Os pássaros não cantam em Lugansk, por Bruno Amaral de Carvalho
(texto e fotos) em Lugansk (Donbass)  31 de Março de 2022

Na Ucrânia, prosseguem os combates no Donbass pelo controlo territorial desta região mineira. Há oito anos debaixo de fogo, as forças separatistas apoiadas pela Rússia tentam avançar na autoproclamada República Popular de Lugansk ante a resistência ucraniana.

Uma antiga igreja ortodoxa aparece no caminho e o motorista benze-se. Depois, acelera. "Bistra, bistra", diz entredentes. "Fast, fast", repete em inglês. O ambientador, pendurado no espelho retrovisor, dança ao ritmo das crateras no asfalto. Em vez do típico pinho perfumado, há a fotografia de Vladimir Putin. No pára-brisas, um “Z” branco a fita adesiva.

O homem que tem o Presidente russo como ídolo chama-se Konstantin e explica que estamos demasiado perto da linha da frente. O “inimigo” está à espreita e pode haver snipers. A poucos quilómetros de Trehizbenka, na autoproclamada República Popular de Lugansk, o carro vai abrandando à medida que as lagartas de vários tanques com a marca “Z” se cruzam no caminho. Sente-se a proximidade das forças ucranianas enquanto se sucedem os postos de controlo. Uma ponte destruída e um autocarro carbonizado são postais de uma guerra que começou em 2014 e que nunca deixou de fazer vítimas. Segundo as Nações Unidas, cerca de três mil civis morreram no conflito que dura há oito anos.

Trehizbenka, sob controlo da Ucrânia desde 2014, passou para as mãos das autoridades separatistas de Lugansk. À entrada desta localidade de cerca de três mil habitantes, vários militares aceitam mostrar as trincheiras e as casas de civis usadas pelo exército ucraniano para proteger as suas posições.

Em frente à primeira casa, pé ante pé, pedem que não toquemos em nada porque há lugares que não foram devidamente verificados e pode haver minas por desactivar. São spetnaz, jovens soldados das forças especiais de Lugansk, e afirmam que este lugar estava ocupado por combatentes do movimento neonazi Pravii Sektor.

Há livros espalhados pelo chão, comida podre na cozinha ao lado de uma garrafa vazia de Jagermeister, cartazes nas paredes e um autocolante de uma emissora militar ucraniana. Numa divisão, junto ao corredor, uma caixa militar com explosivos. O episódio repete-se num pequeno barracão no exterior com centenas de granadas de morteiro, detonadores, um blusão do exército ucraniano e uma bandeira vermelha e preta do Exército Insurgente Ucraniano, liderado por Stepan Bandera, que colaborou com as forças nazis na Segunda Guerra Mundial.

Durante a visita, aparece uma idosa que prefere não responder a perguntas. Os soldados alegam que tem medo que regressem “os fascistas” e fica gorada a primeira entrevista a um civil na localidade.

De súbito, soam ao longe explosões de granadas de morteiro numa cadência que iria durar praticamente toda a visita enquanto um militar revela que foi descoberto ali perto o cadáver de um soldado ucraniano. Junto a uma trincheira, pouco resta de um corpo putrefacto com várias semanas dentro de um uniforme ucraniano desfeito. Vítima do esquecimento, é provável que tenha sido também vítima da matilha de cães esfaimados que povoam Trehizbenka. Quem seria este soldado? Ninguém sabe dizer.

É só na saída da aldeia que encontramos duas civis dispostas a falar sem terem sido escolhidas pelos soldados desta região separatista. Vera Alekseevna, uma das moradoras, acusa militares ucranianos de a terem sequestrado e ameaçado. “Foi o Batalhão Aidar. Diziam que me queriam cortar em pedaços e eu não sabia porquê. Ocuparam casas e terrenos da população. Há meses que não temos gás e electricidade. Imagine o que significa isso no Inverno”, denuncia. Por sua vez, Alexandra Fedorovna mostra alívio pela chegada das forças separatistas. Questionadas sobre as vítimas civis das bombas russas fora de Donbass, lamentam “a morte de qualquer civil”, mas aplaudem a intervenção de Moscovo.

Refugiado em Lugansk
Pela noite, o recolher obrigatório marca o compasso e são poucos os candeeiros acesos. É uma cidade fantasma. Quando amanhece, caem os primeiros mísseis Tochka-U nos arredores de Lugansk. Mesmo assim, as principais avenidas respiram vida e os comércios abrem na capital da autoproclamada República Popular de Lugansk. É uma cidade habituada à guerra desde 2014. Foi nesse ano que Alexei Albu abandonou Odessa rumo a esta região mineira.

Membro do partido da esquerda ucraniana Borotba, estava dentro da Casa dos Sindicatos em Odessa, em 2014, no dia em que centenas de apoiantes dos protestos que levaram à queda do governo de Viktor Yanukovich cercaram a improvisada sede dos que consideravam ser um golpe de Estado e pegaram fogo ao edifício com pelo menos uma centena de pessoas dentro. Alexei Albu escapou das chamas, mas não do ódio. Sentado num café de Lugansk, descreve como o espancaram e aponta para uma cicatriz na cabeça. Nesse dia, morreram 48 pessoas, muitas delas queimadas.

“Poucos dias depois, recebi a informação de uma fonte dentro dos corpos policiais de que o meu nome estava numa lista de pessoas a serem presas”, recorda. Deputado regional no Conselho Regional de Odessa como Alexei, Viacheslav Markin acabou assassinado pouco depois dos acontecimentos na cidade costeira no Mar Negro. Foi então que decidiu fugir para a zona controlada pelos rebeldes em Lugansk.

Hoje, com 36 anos, e apesar das divisões internas no Borotba, mantém-se no partido e apoia a intervenção russa. Quando vê a morte de civis, vítimas de ataques russos, afirma que sente dor, mas ele diz que sabe “quem é o culpado”. Acusa os batalhões de extrema-direita, como o Aidar ou Azov. Na óptica de Alexei, estes grupos “não querem combater em campo aberto” e “escondem-se entre a população em zonas residenciais”.

Oito anos de bombas
A poucos quilómetros da linha da frente, em Donbass, a presidente do município de Kirovsk, Viktoria Ivanovna Sergueeva, mostra uma das casas bombardeadas pelas forças ucranianas numa aldeia dos arredores na última semana. Depois de alguns quilómetros de tanques, carros blindados e camiões, um caminho de terra batida conduz a uma pequena povoação com habitações térreas. É diante desta casa destruída que denuncia o que diz ter sido um ataque das forças ucranianas.

“O bombardeamento aconteceu ao fim do dia quando a família que aqui vivia se preparava para dormir. Felizmente, não morreu ninguém”, afirma. Ao mesmo tempo que responde à pergunta com a ajuda de um intérprete, ouvem-se disparos de morteiros e rockets seguidos de rajadas de metralhadora. Imperturbável, não interrompe a resposta e prossegue o raciocínio como se a guerra fosse parte da sua vida desde sempre.

Numa aldeia com tanto campo à volta, o que mais nos perturba é a ausência de pássaros. Como se a sua falta na paisagem nos alertasse para a ameaça da guerra como os canários mostravam pela sua prostração o perigo das minas.

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https://www.publico.pt/2022/03/31/mundo/reportagem/passaros-nao-cantam-lugansk-2000819

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