segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Jaime Nogueira Pinto - Valores europeus? Que valores europeus?

* Jaime Nogueira Pinto
 Colunista do Observador

Quem propõe estes novos valores europeus? Que grau de adesão têm? Quem mandatou os responsáveis por uma UE que é essencialmente económica para os irem acrescentando à Carta dos Direitos Fundamentais?

14 mai 2022, 00:1796

A ideia dos pais-fundadores da Europa, ou melhor, da União Europeia – já que a Europa, como Cristandade, Respublica Christiana, ou concerto das “nações civilizadas”, de Vestefália a Viena, começou muito mais cedo – resultou da quebra que representaram as duas “guerras civis” europeias do século XX: a Grande Guerra e a Segunda Guerra Mundial. Com elas acabou o mundo eurocêntrico e o “Direito Público Europeu”. Por isso, no pós-guerra, num tempo de reconstrução política e económica, franceses, alemães, italianos, traumatizados pelo que tinham vivido e contemplado, quiseram juntar esforços para que não se repetisse a tragédia.

A grande maioria destes “pais fundadores” – Robert Schumann, Jean Monnet, Konrad Adenauer, Alcide de Gasperi – eram católicos de convicção e prática e queriam a paz pelo comércio e pela prosperidade. O eixo franco-alemão foi também decisivo para unir a Europa Ocidental nos valores da liberdade económica e política, de expressão, de credo e de ideologia, já que, depois da guerra, a Cortina de Ferro, trazida pelas tropas soviéticas na sua marcha sobre Berlim, descera sobre o Centro-Leste do Continente, com os países e os povos que ficavam para lá do Elba submetidos a Moscovo e ao comunismo por partidos e ditadores interpostos.

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Hoje, por razões diferentes, muitos europeus – à semelhança dos fundadores da Europa e dos povos e dirigentes dos países do Leste Europeu que, depois do fim da União Soviética e da libertação, entre 1989-1991, recuperaram a sua independência – estão longe, muito longe, da deriva pós-moderna dos “novos direitos humanos” que algumas instituições e dirigentes políticos da União Europeia querem apresentar como “valores europeus”.

Quem propõe estes novos valores e “direitos”? Que grau de adesão têm? Quem mandatou os deputados e os burocratas de uma União que é essencialmente económica para acrescentarem à Carta novos “direitos fundamentais”, muitas vezes contrários a outros direitos verdadeiramente fundamentais e à Ciência, ao senso comum e às crenças de grande parte dos europeus? Quem os indigitou para lavrarem recomendações de bom e correcto comportamento político e ideológico e fazer depender do seu cumprimento a atribuição de subsídios ou a aplicação de sanções? Que “valores europeus” são estes, que agora nos propõem – ou, até, que nos impõem –, geralmente ao sabor da influência dos grupos e dos lobbies mais “activistas”?

Os valores pré-cristãos

Há valores europeus com muitos séculos ou, mais precisamente, com cerca de três milénios. Uma leitura dos poemas homéricos, do teatro grego, da Eneida de Virgílio, das Histórias e dos Anaisde Tácito, traz a dimensão desses valores no tempo pré-cristão: são valores e ideais ligados à liberdade dos heróis, condicionada pela ética do grupo, da comunidade, do respeito pela cidade, pela tribo, pela família – e pelos deuses, enquanto símbolos, mediadores ou intérpretes de uma vontade ou de um poder superior.

Ulisses, homem de muitos ofícios e talentos, é um modelo desses valores. A começar pela liberdade: Calipso oferece-lhe a imortalidade e a “perfeição”, e Ulisses recusa-as, pois quer voltar para Penélope e para Ítaca, para a sua mulher, para a sua família, para a sua terra, para o seu reino. Ulisses é astuto, mas também é corajoso; tem senso comum, mas nunca treme; é generoso, mas castiga impiedosamente os pretendentes de Penélope; é, enfim, um homem em cuja natureza coexistem e lutam o bem e o mal.

Onde estão os valores dos poemas homéricos? Estão nessa liberdade dos heróis e dos deuses, na relação com a Terra e com o Céu – com homens, mulheres, deuses e deusas na ancestralidade e na intermediação. A beleza e a força física também são importantes, tal como o realismo, a aceitação da imperfeição e a astúcia para a ir navegando e superando. A fidelidade, a fidelidade engenhosa, simbolizada por Penélope na sua interminável teia, é outro dos grandes valores do texto clássico. Há liberdade e criatividade dentro da lealdade, do sacrifício na defesa da pátria e da família.

Heitor, bem mais que o leviano Paris, é, com Aquiles, o herói da Ilíada. Herói temerário que, ousadamente, enfrenta um Aquiles ofendido por Agamémnon e destroçado com a morte de Pátroclo.

A tragédia não está longe destes valores. Para von Wilamowitz-Möllendorff, um filólogo alemão da transição do século XIX para o século XX, a “tragédia ática” é uma emanação da “lenda heróica”, em volta de dois elementos-chave – a escolha e o sofrimento. A viagem através do sofrimento, que precede o mistério cristão do sofrimento de Cristo-Deus e se opõe às correntes epicuristas e às evasões platónicas, descreve, problematiza e detalha o dilema trágico e o sofrimento que uma escolha coerente pode implicar.

Há uma interrogação sobre a natureza humana no heroísmo épico da “escolha de Aquiles”, na luta que o levará a uma morte nobre e certa; e há também uma interrogação sobre o mistério do sofrimento humano perante o mundo poderoso e impiedoso a que os protagonistas se submetem.

hybris pode levar um homem, um herói, um semideus, a desafiar os outros homens, e a desafiar o mundo, os deuses e as circunstâncias, no limite da razão. Heitor agiu assim quando, contra o conselho de Polidamos, decidiu enfrentar em campo aberto um Aquiles furioso. Acabou mal o filho de Príamo, e o seu cadáver foi arrastado pelo carro de cavalos do vencedor, perante a viúva, Andrómaca, que tudo vê de cima das muralhas de Troia, sofrendo a dor extrema da humilhação e da derrota do amado.

O teatro, toda a tragédia grega, da Antígona de Sófocles às Tebanas de Eurípedes, vai contar os dilemas e as alternativas diabólicas de todas estas histórias que, em Homero, nos são dadas pelo lado mais épico, mais solar. No teatro, é mais o sofrimento que Nietzsche censuraria em Eurípedes como sinal pré-cristão, nas “origens da Tragédia”; um sofrimento que é, no entanto, parte integrante dos valores da Europa, no risco assumido de pagar o preço dos princípios, mesmo quando a causa parece perdida.

Há também medida, sentido de equilíbrio, sentido de justiça nestas narrativas e nas que se vão seguir em Roma e no Império Romano. A Eneida sofre a influência dos poemas homéricos, mas inverte-lhes a ordem: os seis cantos da Primeira Parte inspiram-se na Odisseia e narram a viagem de Eneias pelo Mediterrâneo na fuga de Troia: o encontro com Dido, rainha de Cartago, a paixão incurável e o suicídio da rainha, inconsolável perante o abandono do troiano. A segunda parte segue a Ilíada, ao contar os combates dos troianos no Lácio.

No canto IV, Virgílio, pela boca de Anquises, pai de Eneias, dirige um conselho a Augusto, o príncipe da Paz que trouxe a Roma o fim das guerras civis: Tu regere imperio populos, Romane, memento (Hae tibi erunt artes), pacique imponere morem, Parcere subjectis et debellare superbos (“E tu, Romano, cuida de reger os povos sob o teu Império/ As tuas artes serão impôr a paz, poupar os submissos e abaixar os soberbos”)

Cristãos e europeus

Alguns destes conselhos sobre o bom governo vão ser absorvidos pelo Cristianismo que, a partir de Constantino, se impõe. Neste primeiro Cristianismo, dominam os ensinamentos paulinos da Epístola aos Romanos, que, salvaguardando a autoridade suprema de Deus, de quem procede todo o poder sobre os reis e príncipes deste mundo, exorta os cristãos a respeitar e a obedecer às autoridades instituídas. Mas se a autoridade política é necessária, a resistência às leis e ordens iníquas é também imperativa – pelo preço do martírio, se preciso for. Há, pois, a aceitação do Estado, da sua necessidade, da sua legitimidade, mas dentro de um espírito crítico e combativo de fidelidade a mais altos valores.

Vai ser esta a dualidade dos valores cristãos europeus, numa unidade espiritual e territorial depois interrompida, no século XVI, pela Reforma luterana e pelos seus seguidores na Inglaterra dos Tudor e entre os reis escandinavos.

A partir de Vestefália, estes valores terão uma expressão laica – o concerto europeu das “nações civilizadas”, com regras na paz e na guerra, regras de reconhecimento mútuo das nações como parceiras legítimas no concerto das potências, de onde resultarão convenções escritas e consuetudinárias. Tudo isto formará, no seu conjunto, aquilo a que Carl Schmitt chamará o Jus Publicum Europaeum, um direito que teve a sua maior glória na regulação da guerra, pondo em questão o conceito de “guerra justa” a partir da “causa”, ao considerar que a legitimidade estava na legitimidade do sujeito protagonista, que era o sistema interestatal que seleccionava os protagonistas da guerra: os Estados soberanos assim reconhecidos pelos outros Estados,  actuando em nome dos seus interesses nacionais e geopolíticos. A introdução de uma medida realista das causas e das condições da guerra, impondo regras à inimizade radical dos combatentes, foi uma importante conquista da civilização europeia.

A ruptura

A Grande Guerra e a preocupação de a transformar numa “boa guerra” ou numa “guerra justa” acabou com este equilíbrio. Os nascentes serviços de informação e propaganda dos Aliados, para cativarem e mobilizarem combatentes e povos, pintaram os alemães como “criminosos de guerra”, os únicos “criminosos de guerra”, os “hunos maus”, que decepavam as mãos das crianças belgas. Uma lenda negra, como se provou no fim das hostilidades. Com a Grande Guerra de 14-18 e o seu segundo episódio em 39-45, acabou o Direito Público Europeu e os valores comuns, alguns dos quais a Europa Unida iria querer depois recuperar por via comercial ou económica.

No entanto, a acreditar na retórica do Conselho Europeu sobre os “novos direitos humanos”, esses milenares valores, perdidos e resgatados – o heroísmo, o realismo, o respeito pela transcendência, pela vida e pela morte, pelo corpo e pelo espírito, a liberdade, a defesa da pátria e da família, o sentido de justiça e de fidelidade aos princípios e aos compromissos –, estão em vias de ser substituídos por uma nova ordem de valores; valores como que decorrentes dos primeiros mas que, na realidade, se lhes opõem frontalmente; valores inspirados no hedonismo e epicurismo pós-modernos, no experimentalismo temerário e voluntarista e na cultura do cancelamento.

Ou é, pelo menos, este o espírito com que muitas instituições europeias acolhem com atenta e respeitosa veneração as mais obtusas inovações, como a “linguagem epicena”, destinada a anular o “binarismo de género”, ou seja, a fazer com que a linguagem reflicta a “natural indiferenciação sexual” dos seres humanos e induza a sua libertação da “tirania da biologia”.

A socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí, especialista em Desigualdade de Género e Crítica Feminista Pós-colonial, veio recentemente defender que os Iorubás, da Nigéria, só tinham passado a distinguir os homens das mulheres, como grupos diferenciados, com a colonização ocidental. E o que deveria então o Ocidente fazer? Mostrar arrependimento e devolver os Iorubás aos tempos pré-coloniais, confirmando-os na sua sabedoria e nas suas crenças iniciais? Evangelizar depois o resto do mundo, em jeito de penitência, na nova fé da indiferenciação de que os Iorubás tinham sido pioneiros? Talvez. De resto, a agenda de alguns grupos de activistas com franco acesso às instituições europeias não parece andar muito longe de semelhantes programas expiatórios ou de acção e legislação avançada.

A civilização do mal-estar

No século XVIII, alguns iluminados europeus, como Montesquieu, Voltaire e Rousseau, procuraram criticar a civilização europeia e os seus valores, contrastando-os com os valores dos persas, dos chineses e dos “bons selvagens” ameríndios. Freud chamou depois a este olhar depreciativo sobre si mesmo e admirativo sobre o outro longínquo “o mal-estar na civilização”. E perante semelhante olhar míope tudo ou quase tudo tendia a tornar-se invisível ou irrelevante – como o facto de, na Pérsia, os cristãos serem perseguidos e massacrados, ou de, na China do século XVIII, reinar um muito pouco paradisíaco despotismo imperial, ou de os “bons selvagens” rousseauneanos serem antropófagos.

Mais tarde, os pós-marxistas do Maio de 68, na senda de Sade, e depois os desconstruccionistas franceses, colonizaram o campus americano. Um campus que os vem repetindo à exaustão e com fanáticas e puritanas diferenças, herdando a sanha de todas as cegas fés, agora em versão anticristã e “anticivilizacional”. O resultado é o neo-marxismo reformado que hoje substituiu as causas da justiça, da igualdade, do trabalho, por uma utopia ultra liberal, hedonista, decadentista que serve e se serve do hipercapitalismo global e que, perante a inconsciência e a inércia de muitos europeus, vai inscrevendo nos anais da União Europeia pseudo-direitos cada vez mais distantes dos valores pagãos, cristãos, universais e nacionais que fizeram a grandeza da Europa.


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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Diana Johnstone - O ESPECTRO DA ALEMANHA ESTÁ CRESCENDO

segunda-feira, 12 de setembro de 2022 - O ESPECTRO DA ALEMANHA ESTÁ CRESCENDO, por Diana Johnstone, em Paris | Especial para o Consortium News

Para enfrentar a imaginária ameaça russa à Europa Ocidental, a Alemanha liderará uma UE expandida e militarizada.

A União Europeia está se preparando para uma longa guerra contra a Rússia que parece claramente contrária aos interesses econômicos europeus e à estabilidade social.  Uma guerra aparentemente irracional – como muitas – tem raízes emocionais profundas e reivindica justificativa ideológica.  Essas guerras são difíceis de terminar porque se estendem para fora do alcance da racionalidade.

Por décadas depois que a União Soviética entrou em Berlim e derrotou decisivamente o Terceiro Reich, os líderes soviéticos se preocuparam com a ameaça do “revanchismo alemão”. Uma vez que a Segunda Guerra Mundial pode ser vista como uma vingança alemã por ter sido privada da vitória na Primeira Guerra Mundial, o agressivo alemão Drang nach Osten não poderia ser revivido, especialmente se contasse com o apoio anglo-americano? Sempre houve uma minoria nos círculos de poder dos EUA e do Reino Unido que gostaria de completar a guerra de Hitler contra a União Soviética.

Não foi o desejo de espalhar o comunismo, mas a necessidade de uma zona tampão para impedir tais perigos que foi a principal motivação para a repressão política e militar soviética em curso na camada de países da Polônia à Bulgária que o Exército Vermelho tinha arrancado da ocupação nazista.

Essa preocupação diminuiu consideravelmente no início da década de 1980, quando uma jovem geração alemã saiu às ruas em manifestações de paz contra o estacionamento de “euromísseis” nucleares que poderiam aumentar o risco de uma guerra nuclear em solo alemão. O movimento criou a imagem de uma nova Alemanha pacífica. Acredito que Mikhail Gorbachev levou a sério essa transformação.

Em 15 de junho de 1989, Gorbachev veio para Bonn, que era então a modesta capital de uma Alemanha Ocidental enganosamente modesta. Aparentemente encantado com a recepção calorosa e amigável, Gorbachev parou para apertar a mão de pessoas ao longo do caminho naquela cidade universitária pacífica que havia sido palco de grandes manifestações pela paz.

Eu estava lá e experimentei seu aperto de mão incomumente quente e firme e seu sorriso ansioso. Não tenho dúvidas de que Gorbachev acreditava sinceramente em um “lar europeu comum” onde a Europa Oriental e Ocidental pudessem viver felizes lado a lado, unidas por algum tipo de socialismo democrático.

Gorbachev morreu aos 91 anos há duas semanas, em 30 de agosto. Seu sonho de Rússia e Alemanha vivendo felizes em seu “lar europeu comum” logo foi fatalmente minado pelo aval do governo Clinton para a expansão da Otan para o leste. Mas um dia antes da morte de Gorbachev, importantes políticos alemães em Praga acabaram com qualquer esperança de um final tão feliz ao proclamar sua liderança de uma Europa dedicada a combater o inimigo russo.

Eram políticos dos próprios partidos – SPD (Partido Social Democrata) e Verdes – que lideraram o movimento pela paz dos anos 1980.

Europa alemã deve se expandir para o leste

O chanceler alemão Olaf Scholz é um político incolor do SPD, mas seu discurso de 29 de agosto em Praga foi inflamatório em suas implicações. Scholz pediu uma União Europeia expandida e militarizada sob a liderança alemã. Ele afirmou que a operação russa na Ucrânia levantou a questão de “onde estará a linha divisória no futuro entre esta Europa livre e uma autocracia neo-imperial”. Não podemos simplesmente assistir, disse ele, “à medida que países livres são varridos do mapa e desaparecem atrás de paredes ou cortinas de ferro”.

(Nota: o conflito na Ucrânia é claramente o assunto inacabado do colapso da União Soviética, agravado por provocações externas maliciosas. Como na Guerra Fria, as reações defensivas de Moscou são interpretadas como precursoras da invasão russa da Europa e, portanto, um pretexto para acúmulos de braços.)

Para enfrentar essa ameaça imaginária, a Alemanha liderará uma UE expandida e militarizada. Em primeiro lugar, Scholz disse à sua audiência europeia na capital checa: “Estou empenhado no alargamento da União Europeia aos Estados dos Balcãs Ocidentais, Ucrânia, Moldávia e, a longo prazo, Geórgia”. Preocupar-se com a Rússia movendo a linha divisória para o oeste é um pouco estranho ao planejar a incorporação de três ex-Estados soviéticos, um dos quais (Geórgia) é geograficamente e culturalmente muito distante da Europa, mas às portas da Rússia.

Nos “Bálcãs Ocidentais”, a Albânia e quatro estados extremamente fracos deixados pela ex-Iugoslávia (Macedônia do Norte, Montenegro, Bósnia-Herzegovina e Kosovo amplamente não reconhecido) produzem principalmente emigrantes e estão longe dos padrões econômicos e sociais da UE. Kosovo e Bósnia são protetorados de fato da OTAN ocupados militarmente. A Sérvia, mais sólida que as outras, não mostra sinais de renunciar às suas relações benéficas com a Rússia e a China, e o entusiasmo popular pela “Europa” entre os sérvios diminuiu.

A adição desses estados membros alcançará “uma União Europeia geopolítica mais forte, mais soberana”, disse Scholz. Uma “Alemanha mais geopolítica” é mais parecida com isso. À medida que a UE cresce para o leste, a Alemanha está “no centro” e fará de tudo para uni-los. Assim, além do alargamento, Scholz pede “uma mudança gradual para as decisões da maioria na política externa comum” para substituir a unanimidade exigida hoje.

O que isso significa deve ser óbvio para os franceses. Historicamente, os franceses têm defendido a regra do consenso para não serem arrastados para uma política externa que não querem. Os líderes franceses exaltaram o mítico “casal franco-alemão” como garantidor da harmonia europeia, principalmente para manter sob controle as ambições alemãs.

Mas Scholz diz que não quer “uma UE de estados ou diretorias exclusivas”, o que implica o divórcio final desse “casal”. Com uma UE de 30 ou 36 estados, ele observa, “é necessária uma ação rápida e pragmática”. E ele pode ter certeza de que a influência alemã sobre a maioria desses novos Estados-Membros pobres, endividados e muitas vezes corruptos produzirá a maioria necessária.

A França sempre desejou uma força de segurança da UE separada da OTAN, na qual os militares franceses desempenhassem um papel de liderança. Mas a Alemanha tem outras ideias. “ A OTAN continua sendo a garantia de nossa segurança”, disse Scholz, regozijando-se com o fato de o presidente Biden ser “um transatlanticista convicto”.

“Toda melhoria, toda unificação das estruturas de defesa europeias dentro da estrutura da UE fortalece a OTAN”, disse Scholz. “Juntamente com outros parceiros da UE, a Alemanha garantirá, portanto, que a força de reação rápida planejada da UE esteja operacional em 2025 e também fornecerá seu núcleo.

Isso requer uma estrutura de comando clara. A Alemanha enfrentará essa responsabilidade “quando liderarmos a força de reação rápida em 2025”, disse Scholz. Já foi decidido que a Alemanha apoiará a Lituânia com uma brigada rapidamente desdobrável e a OTAN com mais forças em alto estado de prontidão.

Servindo para liderar... Onde?

Em suma, o crescimento militar da Alemanha dará substância à notória declaração de Robert Habeck em Washington em março passado de que: “Quanto mais forte a Alemanha servir, maior será seu papel”. O Green's Habeck é o ministro da Economia da Alemanha e a segunda figura mais poderosa do atual governo da Alemanha.

A observação foi bem compreendida em Washington: ao servir o império ocidental liderado pelos EUA, a Alemanha está fortalecendo seu papel como líder europeu. Assim como os EUA armam, treinam e ocupam a Alemanha, a Alemanha fornecerá os mesmos serviços para os estados menores da UE, principalmente a leste.

Desde o início da operação russa na Ucrânia, a política alemã Ursula von der Leyen usou sua posição como chefe da Comissão Europeia para impor sanções cada vez mais drásticas à Rússia, levando à ameaça de uma grave crise energética europeia neste inverno. Sua hostilidade à Rússia parece ilimitada. Em Kiev, em abril passado, ela pediu a rápida adesão à UE para a Ucrânia, notoriamente o país mais corrupto da Europa e longe de atender aos padrões da UE. Ela proclamou que “a Rússia entrará em decadência econômica, financeira e tecnológica, enquanto a Ucrânia está marchando em direção a um futuro europeu”. Para von der Leyen, a Ucrânia está “combatendo nossa guerra”. Tudo isso vai muito além de sua autoridade para falar em nome dos 27 membros da UE, mas ninguém a detém.

A ministra das Relações Exteriores do Partido Verde da Alemanha, Annalena Baerbock, tem a mesma intenção de “arruinar a Rússia”. Proponente de uma “política externa feminista”, Baerbock expressa a política em termos pessoais. “Se eu fizer a promessa às pessoas na Ucrânia, estaremos com vocês enquanto vocês precisarem de nós”, disse ela ao Fórum 2000 patrocinado pelo National Endowment for Democracy (NED) dos EUA em Praga em 31 de agosto, falando em inglês. “Então eu quero entregar, não importa o que meus eleitores alemães pensem, mas quero entregar ao povo da Ucrânia.”

“As pessoas vão para a rua e dizem que não podemos pagar nossos preços de energia, e eu digo: 'Sim, eu sei, então vamos ajudá-lo com medidas sociais. […] Vamos ficar com a Ucrânia e isso significa que as sanções vão ficar também até o inverno, mesmo que fique muito difícil para os políticos.'”

Certamente, o apoio à Ucrânia é forte na Alemanha, mas talvez por causa da iminente escassez de energia, uma pesquisa recente da Forsa indica que cerca de 77% dos alemães seriam a favor dos esforços diplomáticos para acabar com a guerra – o que deveria ser da responsabilidade do ministro das Relações Exteriores. Mas Baerbock não mostra interesse em diplomacia, apenas em “fracasso estratégico” para a Rússia – não importa quanto tempo leve.

No movimento pela paz dos anos 1980, uma geração de alemães estava se distanciando da de seus pais e prometeu superar as “imagens inimigas” herdadas de guerras passadas. Curiosamente, Baerbock, nascida em 1980, referiu-se ao seu avô que lutou na Wehrmacht como tendo contribuído de alguma forma para a unidade europeia. Este é o pêndulo geracional?

Os Pequenos Revanchistas

Há razões para supor que a atual russofobia alemã extrai muito de sua legitimação da russofobia de ex-aliados nazistas em países europeus menores.

Embora o revanchismo anti-russo alemão possa ter levado algumas gerações para se afirmar, houve vários revanchismos menores e mais obscuros que floresceram no final da guerra europeia e foram incorporados às operações da Guerra Fria dos Estados Unidos. Esses pequenos revanchismos não foram submetidos aos gestos de desnazificação ou culpa do Holocausto impostos à Alemanha. Em vez disso, eles foram recebidos pela CIA, Radio Free Europe e comitês do Congresso por seu fervoroso anticomunismo. Eles foram fortalecidos politicamente nos Estados Unidos por diásporas anticomunistas da Europa Oriental.

Destas, a diáspora ucraniana foi certamente a maior, a mais intensamente política e a mais influente, tanto no Canadá quanto no Meio-Oeste americano. Os fascistas ucranianos que haviam colaborado anteriormente com invasores nazistas eram os mais numerosos e ativos, liderando o Bloco de Nações Anti-Bolcheviques com ligações à inteligência alemã, britânica e americana.

A Galiza da Europa Oriental, que não deve ser confundida com a Galiza espanhola, faz parte da Rússia e da Polônia há séculos. Após a Segunda Guerra Mundial, foi dividido entre a Polônia e a Ucrânia. A Galiza ucraniana é o centro de uma virulenta marca de nacionalismo ucraniano, cujo principal herói da Segunda Guerra Mundial foi Stepan Bandera. Esse nacionalismo pode ser chamado de “fascista” não apenas por causa de sinais superficiais – seus símbolos, saudações ou tatuagens – mas porque sempre foi fundamentalmente racista e violento.

Incitado pelas potências ocidentais, Polônia, Lituânia e o Império Habsburgo, a chave para o nacionalismo ucraniano era que ele era ocidental e, portanto, superior. Como ucranianos e russos provêm da mesma população, o ultranacionalismo ucraniano pró-ocidental foi construído sobre mitos imaginários de diferenças raciais: os ucranianos eram o verdadeiro ocidental, o que quer que fosse, enquanto os russos eram misturados com “mongóis” e, portanto, uma raça inferior. Os nacionalistas ucranianos banderistas pediram abertamente a eliminação dos russos como tais , como seres inferiores.

Enquanto a União Soviética existisse, o ódio racial ucraniano aos russos tinha o anticomunismo como cobertura, e as agências de inteligência ocidentais podiam apoiá-los nos fundamentos ideológicos “puros” da luta contra o bolchevismo e o comunismo. Mas agora que a Rússia não é mais governada por comunistas, a máscara caiu e a natureza racista do ultranacionalismo ucraniano é visível – para todos que querem vê-lo.

No entanto, os líderes ocidentais e a mídia estão determinados a não notar.

A Ucrânia não é como qualquer país ocidental. É profunda e dramaticamente dividida entre Donbass no leste, territórios russos dados à Ucrânia pela União Soviética e o oeste anti-russo, onde a Galácia está localizada. A defesa russa do Donbass, sábia ou imprudente, de forma alguma indica a intenção russa de invadir outros países. Este falso alarme é o pretexto para a remilitarização da Alemanha em aliança com as potências anglo-saxônicas contra a Rússia.

O Prelúdio Iugoslavo

Esse processo começou na década de 1990, com o desmembramento da Iugoslávia.

A Iugoslávia não era membro do bloco soviético. Precisamente por isso, o país conseguiu empréstimos do Ocidente que nos anos 1970 levaram a uma crise da dívida em que os líderes de cada uma das seis repúblicas federadas queriam empurrar a dívida para outras. Isso favoreceu tendências separatistas nas relativamente ricas repúblicas eslovena e croata, tendências impostas pelo chauvinismo étnico e incentivo de potências externas, especialmente a Alemanha.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a ocupação alemã dividiu o país. A Sérvia, aliada da França e da Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial, foi submetida a uma ocupação punitiva. A idílica Eslovênia foi absorvida pelo Terceiro Reich, enquanto a Alemanha apoiou uma Croácia independente, governada pelo partido fascista Ustasha, que incluía a maior parte da Bósnia, cenário dos mais sangrentos combates internos. Quando a guerra terminou, muitos Ustasha croatas emigraram para a Alemanha, Estados Unidos e Canadá, nunca perdendo a esperança de reviver o nacionalismo croata secessionista.

Em Washington, na década de 1990, membros do Congresso obtiveram suas impressões sobre a Iugoslávia de um único especialista: a croata-americana Mira Baratta, de 35 anos, assistente do senador Bob Dole (candidato presidencial republicano em 1996). O avô de Baratta tinha sido um importante oficial Ustasha na Bósnia e seu pai era ativo na diáspora croata na Califórnia. Baratta conquistou não apenas Dole, mas praticamente todo o Congresso para a versão croata dos conflitos iugoslavos, culpando os sérvios por tudo.

Na Europa, alemães e austríacos, com destaque para Otto von Habsburg, herdeiro do extinto Império Austro-Húngaro e membro do Parlamento Europeu da Baviera, conseguiram retratar os sérvios como os vilões, conseguindo assim uma vingança efetiva contra seu histórico inimigo da Primeira Guerra Mundial. , Sérvia. No Ocidente, tornou-se comum identificar a Sérvia como “aliada histórica da Rússia”, esquecendo-se que na história recente os aliados mais próximos da Sérvia eram a Grã-Bretanha e especialmente a França.

Em setembro de 1991, um importante político democrata-cristão alemão e advogado constitucional explicou por que a Alemanha deveria promover o desmembramento da Iugoslávia reconhecendo as repúblicas iugoslavas secessionistas eslovena e croata. (O ex-ministro da Defesa da CDU, Rupert Scholz, no 6º Simpósio Fürstenfeldbrucker para a Liderança das Forças Armadas e Empresariais Alemãs, realizado de 23 a 24 de setembro de 1991.)

Ao acabar com a divisão da Alemanha, Rupert Scholz disse: “Nós, por assim dizer, superamos e dominamos as consequências mais importantes da Segunda Guerra Mundial… mas em outras áreas ainda estamos lidando com as consequências da Primeira Guerra Mundial” – que, ele observou, “começou na Sérvia”.

“ A Iugoslávia, como consequência da Primeira Guerra Mundial, é uma construção muito artificial, nunca compatível com a ideia de autodeterminação”, disse Rupert Scholz. Ele concluiu: “Na minha opinião, a Eslovênia e a Croácia devem ser imediatamente reconhecidas internacionalmente. (…) Quando esse reconhecimento tiver ocorrido, o conflito iugoslavo não será mais um problema doméstico iugoslavo, onde nenhuma intervenção internacional pode ser permitida.”

E, de fato, o reconhecimento foi seguido por uma maciça intervenção ocidental que continua até hoje. Ao tomar partido, a Alemanha, os Estados Unidos e a OTAN acabaram por produzir um resultado desastroso, meia dúzia de estados, com muitas questões não resolvidas e fortemente dependentes das potências ocidentais. A Bósnia-Herzegovina está sob ocupação militar, bem como sob os ditames de um “Alto Representante” que por acaso é alemão. Perdeu cerca de metade da sua população para a emigração.

Apenas a Sérvia mostra sinais de independência, recusando-se a aderir às sanções ocidentais contra a Rússia, apesar da forte pressão. Para os estrategistas de Washington, o desmembramento da Iugoslávia foi um exercício de usar as divisões étnicas para desmembrar entidades maiores, a URSS e depois a Rússia.

Bombardeio Humanitário

Políticos e meios de comunicação ocidentais persuadiram o público de que o bombardeio da OTAN à Sérvia em 1999 foi uma guerra “humanitária”, generosamente travada para “proteger os kosovares” (após vários assassinatos por secessionistas armados provocaram as autoridades sérvias na inevitável repressão usada como pretexto para o bombardeio) .

Mas o verdadeiro ponto da guerra do Kosovo foi que ela transformou a OTAN de uma aliança defensiva em uma aliança agressiva, pronta para travar guerra em qualquer lugar, sem mandato da ONU, sob qualquer pretexto que escolhesse.

Esta lição era clara para os russos. Após a guerra do Kosovo, a OTAN já não podia afirmar com credibilidade que era uma aliança puramente “defensiva”.

Assim que o presidente sérvio Milosevic, para salvar a infraestrutura de seu país da destruição da OTAN, concordou em permitir que as tropas da OTAN entrassem em Kosovo, os EUA sem cerimônia tomaram uma enorme faixa de território para construir sua primeira grande base militar dos EUA nos Bálcãs. As tropas da OTAN ainda estão lá.

Assim como os Estados Unidos correram para construir essa base em Kosovo, ficou claro o que esperar dos EUA depois que conseguiram em 2014 instalar um governo em Kiev ansioso para se juntar à OTAN. Esta seria a oportunidade para os EUA assumirem a base naval russa na Crimeia. Como se sabia que a maioria da população da Crimeia queria retornar à Rússia (como havia feito de 1783 a 1954), Putin conseguiu evitar essa ameaça realizando um referendo popular confirmando seu retorno.

Revanchismo do Leste Europeu captura a UE

O apelo do chanceler alemão Scholz para ampliar a União Europeia em até nove novos membros lembra os alargamentos de 2004 e 2007 que trouxeram doze novos membros, nove deles do antigo bloco soviético, incluindo os três Estados Bálticos que faziam parte da União Soviética. União.

Esse alargamento já deslocou o equilíbrio para o leste e aumentou a influência alemã. Em particular, as elites políticas da Polônia e especialmente os três Estados Bálticos, estavam fortemente sob a influência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, onde muitos viveram no exílio durante o domínio soviético. Eles trouxeram para as instituições da UE uma nova onda de anticomunismo fanático, nem sempre distinguível da russofobia.

O Parlamento Europeu, obcecado pela sinalização da virtude em relação aos direitos humanos, foi particularmente receptivo ao zeloso antitotalitarismo de seus novos membros do Leste Europeu.

Revanchismo e a arma da memória

Como um aspecto da lustração anticomunista, ou expurgos, os Estados do Leste Europeu patrocinaram “Institutos de Memória” dedicados a denunciar os crimes do comunismo. É claro que essas campanhas foram usadas por políticos de extrema-direita para lançar suspeitas sobre a esquerda em geral. Conforme explicado pelo estudioso europeu Zoltan Dujisin, “empresários da memória anticomunista” à frente desses institutos conseguiram elevar suas atividades de informação pública do nível nacional para o nível da União Européia, usando as proibições ocidentais de negação do Holocausto para reclamar que, embora os crimes nazistas tivessem foram condenados e punidos em Nuremberg, os crimes comunistas não.

A tática dos empresários anticomunistas era exigir que as referências ao Holocausto fossem acompanhadas de denúncias ao Gulag. Essa campanha teve que lidar com uma delicada contradição, pois tendia a desafiar a singularidade do Holocausto, um dogma essencial para obter apoio financeiro e político dos institutos de memória da Europa Ocidental.

Em 2008, o PE adotou uma resolução estabelecendo o dia 23 de agosto como “Dia Europeu em Memória das Vítimas do Stalinismo e do Nazismo” – pela primeira vez adotando o que havia sido uma equação de extrema direita bastante isolada. Uma resolução do PE de 2009 sobre “Consciência Europeia e Totalitarismo” apelava ao apoio de institutos nacionais especializados em história totalitária.

Dujisin explica: “A Europa agora é assombrada pelo espectro de uma nova memória. A posição singular do Holocausto como uma fórmula fundadora negativa da integração europeia, o culminar de esforços de longa data de líderes ocidentais proeminentes...

Os institutos de memória do Leste Europeu formaram a “Plataforma da Memória e Consciência Europeia”, que entre 2012 e 2016 organizou uma série de exposições sobre “Totalitarismo na Europa: Fascismo—Nazismo—Comunismo”, viajando para museus, memoriais, fundações, prefeituras, parlamentos, centros culturais e universidades em 15 países europeus, supostamente para “melhorar a conscientização e a educação pública sobre os crimes mais graves cometidos pelas ditaduras totalitárias”.

Sob essa influência, o Parlamento Europeu em 19 de setembro de 2019 adotou uma resolução “sobre a importância da Memória Europeia para o Futuro da Europa” que foi muito além de equiparar crimes políticos ao proclamar uma interpretação distintamente polonesa da história como política da União Europeia. Chega ao ponto de proclamar que o pacto Molotov-Ribbentrop é responsável pela Segunda Guerra Mundial – e, portanto, a Rússia soviética é tão culpada pela guerra quanto a Alemanha nazista.

A resolução,

“Acentua que a Segunda Guerra Mundial, a guerra mais devastadora da história da Europa, foi iniciada como resultado imediato do notório Tratado de Não Agressão Nazi-Soviético de 23 de agosto de 1939, também conhecido como Pacto Molotov-Ribbentrop, e o seu segredo protocolos, por meio dos quais dois regimes totalitários que compartilhavam o objetivo de conquista do mundo dividiram a Europa em duas zonas de influência; ”

Ele ainda:

“Lembra que os regimes nazista e comunista realizaram assassinatos em massa, genocídios e deportações e causaram uma perda de vidas e liberdade no século 20 em uma escala nunca vista na história da humanidade, e lembra o terrível crime do Holocausto perpetrado pelo regime nazista; condena com veemência os atos de agressão, crimes contra a humanidade e violações em massa dos direitos humanos perpetrados pelos regimes nazista, comunista e outros totalitários ;”

É claro que isso não apenas contradiz diretamente a celebração russa da “Grande Guerra Patriótica” para derrotar a invasão nazista, mas também questionou os recentes esforços do presidente russo Vladimir Putin para colocar o acordo Molotov-Ribbentrop no contexto de recusas anteriores de Estados da Europa Oriental, notadamente a Polônia, para se aliar a Moscou contra Hitler.

Mas a resolução do PE:

“Está profundamente preocupado com os esforços da atual liderança russa para distorcer fatos históricos e crimes de branqueamento cometidos pelo regime totalitário soviético e os considera um componente perigoso da guerra de informação travada contra a Europa democrática que visa dividir a Europa e, portanto, apela à Comissão para neutralizar decisivamente esses esforços ;”

Assim, a importância da Memória para o futuro acaba por ser uma declaração ideológica de guerra contra a Rússia a partir de interpretações da Segunda Guerra Mundial, especialmente porque os empresários da memória sugerem implicitamente que os crimes do comunismo do passado merecem punição – como os crimes do nazismo. Não é impossível que esta linha de pensamento desperte alguma satisfação tácita em certos indivíduos na Alemanha.

Quando os líderes ocidentais falam de “guerra econômica contra a Rússia” ou “arruinar a Rússia” armando e apoiando a Ucrânia, alguém se pergunta se eles estão preparando conscientemente a Terceira Guerra Mundial ou tentando fornecer um novo final para a Segunda Guerra Mundial. Ou os dois vão se fundir?

À medida que toma forma, com a OTAN tentando abertamente “exceder” e assim derrotar a Rússia com uma guerra de atrito na Ucrânia, é como se a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, cerca de 80 anos depois, trocassem de lado e se unissem à Europa dominada pelos alemães para travar guerra contra a Rússia, ao lado dos herdeiros do anticomunismo do Leste Europeu, alguns dos quais eram aliados da Alemanha nazista.

A história pode ajudar a entender os acontecimentos, mas o culto da memória facilmente se torna o culto da vingança. A vingança é um círculo sem fim. Ele usa o passado para matar o futuro. A Europa precisa de cabeças claras olhando para o futuro, capazes de compreender o presente.

*Diana Johnstone foi secretária de imprensa do Grupo Verde no Parlamento Europeu de 1989 a 1996. Em seu último livro,  Circle in the Darkness: Memoirs of a World Watcher  (Clarity Press, 2020), ela relata episódios-chave na transformação da Alemanha Partido Verde de um partido de paz para um partido de guerra. Seus outros livros incluem  Fools' Crusade: Yugoslavia, NATO and Western Delusions  (Pluto/Monthly Review) e em co-autoria com seu pai, Paul H. Johnstone,  From MAD to Madness: Inside Pentagon Nuclear War Planning  (Clarity Press). Ela pode ser contatada em  diana johnstone  @wanadoo.fr

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Imagens: 1 - Olaf Scholz, Chanceler Federal da Alemanha, encontra Volodymyr Zelenskyy, Presidente da Ucrânia, em Kiev, 14 de fevereiro de 2022. (Presidente da Ucrânia); 2 - Desfile de tochas de Stepan Bandera em Kiev, 1º de janeiro de 2020. (A1/Wikimedia Commons)

à(s) setembro 12, 2022


quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Jaime Nogueira Pinto - Quatro autores em tempo de Páscoa

 

* Jaime Nogueira Pinto 

- Colunista do Observador


Ainda que não consigamos ouvir a voz subtil de Deus Pai, sabemos que só irmanados no Horto a Cristo e aos que sofrem, fazendo o que depende de nós e dando a Deus o que Dele depende, seremos resgatados

16 abr 2022, 00:202

Para o cristão, que tem o privilégio e a inquietação de acreditar, o tempo da Páscoa, o tempo da paixão, morte e ressurreição de Cristo, é o tempo da intensa consumação de todos os mistérios. Mistérios com dois mil anos e mistérios de sempre.

A ideia de um Deus que se faz Homem e que, como nós e connosco, caminha pela humilhação, pela dor e pela morte, de um Deus que se entrega à Terra para ser semente de vida e redenção e para que, como Ele e com Ele, possamos também ser semente de vida, não encontra senão frívolos paralelos nas incursões terrenas dos deuses pagãos, contadas por Homero, na Ilíada e na Odisseia, por Hesíodo, na Teogonia, ou por Virgílio, na Eneida.

Aí, dir-se-ia, também deuses e deusas coabitam com os mortais e com eles concebem semideuses e heróis: Zeus seduz Alcmena que dá à luz Herácles, ou Hércules, o dos Doze Trabalhos; Afrodite (a Vénus romana) gera, com Anquises, Eneias, príncipe troiano e proto-fundador de Roma; Aquiles é filho de uma ninfa do mar, Tétis, e de Peleu, rei dos Mirmidões. Mas todos esses semideuses e heróis são fruto das imaginárias excursões de um panteão de divindades quase lúdicas e com especialidades mirabolantes pelas terras dos homens e das mulheres. A semelhança com Cristo, com a irrupção de Deus na História, destes arquétipos úteis e a-históricos, destas criativas bengalas para perscrutar o enigma da contraditória natureza humana, destes lugares literários que, da Eneida aos Lusíadas, a literatura europeia também foi consagrando, é um mero exercício de hermenêutica crítica ou de semântica comparada.

Cristo e a narrativa evangélica da Sua Paixão, ou as quatro narrativas evangélicas da Sua Paixão, são outra coisa e de outra natureza: entram a fundo no Mistério, têm uma presença permanente na vida e na morte de cristãos e não-cristãos e um reflexo constante na vida icónica, literária, dramática e poética da Cristandade ao longo dos séculos.

Assim, a nossa história pessoal e colectiva, e particularmente a História da Europa, dificilmente se conta sem a meditação da Paixão de Cristo, e sem a reflexão sobre o desconcerto do Mundo, o sentido do sofrimento e da morte e a esperança numa vida plena que a meditação da Paixão traz – desde os populares mistérios medievais à Pietá de Miguel Ângelo e às muitas versões e visões do planctus Mariae e da agonia do Deus feito Homem.

“Mas porque Deus quisesse, me é oculto, a nossa redenção só deste modo”

Divina Comédia de Dante, como compêndio geral da História divina e humana mediada pelo grande poeta medieval, não podia ficar alheia ao mistério pascal da Redenção e da vitória sobre a morte. Dante concebe um homem criado à imagem de Deus (imago Dei), um homem consciente da sua liberdade de escolher entre o Bem e o Mal; e, uma vez criteriosamente arrumados os “maus” no seu Inferno, é no Paraíso que se aproxima do mistério da Redenção e do mundo dos que escolhem o Bem.

O facto de os desígnios de Deus serem um mistério e continuarem a sê-lo é ponto assente para o poeta, supremo devassador do oculto e sublime perscrutador de mistérios. Talvez por isso, depois de confessar a sua ignorância sobre a razão pela qual Deus, para resgatar os homens, decide sacrificar o Seu próprio filho, Dante entregue a Beatriz a explicação da Redenção – e do caminho de Deus-Filho pela vida e pela morte adentro. A imaginária amada do Poeta explica-a como um acto de amor e compaixão de Deus pelo Homem, a “mais nobre das suas criaturas”. Para isso, recorda a história da Criação e da Queda do Homem, enganado pelo seu Inimigo, e lembra que o ser humano, por si só, não podia já reabilitar-se das suas más escolhas para aceder à “vida em abundância”, à vida plena, à “intera vita”, para a qual Deus o criara. Assim, a reparação do pecado, a Salvação, tinha de vir do próprio Criador, “pelos Seus caminhos”, pela Sua “bontá” (bondade) e “larghezza” (generosidade).

Na visão dantesca do ciclo Paraíso-Queda-Redenção, só com o sacrifício do Seu Filho poderia Deus-Pai salvar o Homem da perdição com que o pecado original o carregara. Criado bom (“buono e a bene”), o Homem perdera-se, ao querer igualar-se a Deus, de forma vã e apressada; mas poderia salvar-se pelo sacrifício de um Deus encarnado, de um Deus feito próximo, feito Homem, capaz de carregar sobre os ombros os pecados da Humanidade, revelando a Sua verdadeira face. Tal como o pecado de Adão caíra sobre todos os seus descendentes, também, em Cristo, o Novo Adão, todos podiam ser salvos, ou devolvidos “a sua intera vita”.

Quanto aos danados que, à guarda de Satanás, habitavam os círculos das trevas que Dante imaginara e descrevera tão pormenorizada e eloquentemente, ali estavam e ali estariam por terem escolhido o mal em liberdade, ou por terem escolhido, em liberdade, a distância em relação ao Criador onde, para todo o sempre, crepitariam.

A Paixão, segundo Shakespeare

Shakespeare também não poderia ter sido indiferente ao mistério da Paixão de Cristo, tão presente nos enganos, desconcertos e calvários causados e suportados pelo Homem; e o seu teatro é o teatro de um autor cristão, instruído na cultura do cristianismo europeu dividido do tempo das guerras religiosas, numa Inglaterra marcada pela guerra das Rosas e pela reforma de Henrique Tudor.

Embora nas relativas boas graças do poder, o Bardo sabia-se sob a sua severa censura, prévia e póstuma, e ttratava de evitar quaisquer referências ou imagens que pudessem insinuar-se como manifestações de papismo – vistas com duplo horror pelas autoridades isabelinas, quer como abjecta emanação da corrupta igreja de Roma, quer como traição patriótica por conluio com os cúmplices do supremo inimigo da Inglaterra – o Áustria de Espanha. Talvez por isso, e pelas linhas tortas com que sempre se “reinventa o humano”, o tema da Paixão de Cristo, ou mais concretamente o tema da Pietá, surja inesperadamente trasvestido em Henrique VI.

Era um tempo de derrota, esse ano de 1453, o final da Guerra dos Cem Anos, com os ingleses vencidos pelos franceses. Sir John Talbot, o “Aquiles inglês”, condestável das tropas de Henrique VI em França, recebia o cadáver do filho, John Lisle, morto na batalha de Châtillon. O bravo guerreiro tomava então o cadáver do filho nos braços e chorava-o, numa reedição paternal da dor de Maria com o corpo de Jesus nos braços. E é abraçado ao filho morto que Talbot expira, em Henrique VI.

Nessa sua “peça histórica”, Shakespeare dava consideráveis voltas à História para servir os objetivos do drama. Não só reproduzia o planctus Mariae no abraço ao filho morto do terrível comandante inglês, temido pelos franceses pela sua bravura e crueldade, como punha John Talbot a enfrentar Joana d’Arc na batalha – para, no acto seguinte, matar por bruxaria a que viria a ser a santa padroeira de França. Os Talbot, pai e filho, tinham de facto morrido na batalha de Châtillon, em 1453, mas Joana d’Arc fora julgada e condenada à morte em 1431, 22 anos antes.

É, no entanto, em King Lear, a tragédia estreada em 1605-1606 (ou The True Chronicle of History of the Life and Death of King Lear and His Three Daughters na versão escrita de 1608) que Shakespeare recria com maior profundidade e subtileza a Paixão de Cristo. King Lear acaba mal, coroando com um trágico equívoco último muitos outros equívocos. Mas a peça, que pela profunda tristeza e desolação do desfecho viu a sua exibição recusada por longos anos, e que conheceu até versões alternativas com um “final feliz”, não deixa de transmitir a redenção dos que escolhem a porta estreita do Bem.

Com Lear, destronado por Regan e Goneril, as filhas más, Shakespeare torna presente, na humilhação de um rei sem reino nem poder, o Cristo humilhado pelo povo, coroado com uma coroa de espinhos e crucificado sob o dístico satírico “Rei dos Judeus”. O “Escárnio de Cristo”, que inspirou uma galeria de grandes artistas, de Fra Angelico a Tiziano e a Van Dick, reencena-se em Shakespeare na figura patética de Lear, o rei sem trono, traído pelos seus e enlouquecido de dor e humilhação. Mas é em Cordélia, a filha boa, que o Bardo reproduz a imagem do Cristo humilde, injustiçado e perseverante. Lear não vê a falsidade e a traição de Regan e Goneril nem o amor e devoção de Cordélia, que evoca o sal, o evangélico sal da Terra, para expressar o seu amor pelo pai. Habituado a um círculo de incondicionais veneradores, o Rei não vê nem ouve o que se passa, tomando as duas filhas intriguistas por boas e por má a filha que se recusa a entrar numa falaciosa competição pela sua aprovação e favor.

Como narrativa de terríveis maquinações e traições, de grandes torturas e sofrimentos, de grande desconcerto do mundo, de caos primitivo e selvagem, King Lear pode também ser o símbolo de um mundo pré-cristão ou de um mundo abandonado por Deus. E a Graça chega a esse mundo através do amor silencioso e incondicional de Cordélia, um amor inalterado perante a ingratidão e a loucura do pai, um amor capaz de ser “sal da terra” e “luz do mundo” numa terra que, mergulhada nas trevas, perdeu o sabor, um amor que, tal como o de Cristo, se mostra capaz de “redimir a natureza” (“Thou hast one daughter / Who redeems nature from the general curse”).

A peça acaba com a morte de Cordélia e a consequente morte de Lear, finalmente consciente de todos os seus loucos enganos. Shakespeare não ressuscita Cordélia, mas deixa-a como alegoria do Bem paciente e obediente que faz o seu caminho indiferente à incompreensão, à ingratidão e à traição. Cordélia atravessa todos os calvários por obediência e entrega ao pai, à verdade e à justiça; e de olhos postos num tempo outro e num bem maior, parece repetir com a vida as palavras que Jesus dirige a Pedro na última ceia: “O que Eu faço, não o entendes agora, mas hás-de compreendê-lo depois.”

O Cristo de Charles Péguy

Dante é um mestre visionário e profético, um cristão incendiário e colérico que não hesita em encerrar no Inferno os seus inimigos vivos, e até alguns Papas; Shakespeare é um reinventor da condição humana, um tratadista dos grandes limites da Terra e do Céu; Peguy, o terceiro autor cristão que me acompanha nesta Páscoa, é menos ilustre, mas não deixa de ser um grande poeta e um grande exemplo de católico empenhado no testemunho da Fé, e no amor a Deus, aos homens e à Pátria.

É um cristão e católico singular, que parece estar nos antípodas dos católicos conservadores da sua geração: um socialista cristão, alinhado, no caso Dreyfus, pelo lado que, para a Direita, era o lado do “traidor”. Isto no tempo de Maurice Barrès, de Édouard Drumont, de Charles Maurras. Péguy funda a Amitié Judéo-Chrétienne e vai morrer, voluntário, nas primeiras semanas da Grande Guerra. É Tenente de reserva e é dos primeiros a morrer em combate, a 5 de Setembro de 1914, em Villeroy.

Órfão de pai, educado na fé e nos “valores da velha França” (da decência, da disciplina e do trabalho bem feito) numa família modesta e na escola primária, Péguy vai ser depois aluno de Romain Rolland e de Henri Bergson. Tem o seu baptismo de fogo político no caso Dreyfus, num tempo de “beatitude revolucionária”. Milita em causas humanitárias, como a defesa dos arménios, funda uma revista e um grupo de reflexão e discute ideias com amigos e inimigos. Mas, em Setembro de 1908, escreve a Joseph Lotte, um seu amigo escritor e católico: “Je n’ai pas tout dit… J’ai retrouvé la foi… Je suis catholique”.

Era o termo de um longo caminho, em que a leitura da Paixão segundo S. Mateus e da Imitação de Cristo tinham sido determinantes.

Péguy é um construtor de catedrais, mas é também um iconoclasta de mitos antigos e modernos. É um católico que critica o clero do seu tempo, acusando-o de desconhecer a condição humana, mas é também um crítico insistente e sem medo da ideia de progresso, “a grande lei das sociedades modernas”, e da própria modernidade, que considera um tempo fútil, um “reino de bárbaros” embrutecidos e despreocupados, que não conhecem o conceito da irreversibilidade e tem por Deus o Dinheiro. A modernidade não é laica, é anticristã; e é governada por um “Partido intelectual” que controla as universidades, as revistas, os jornais, a opinião, e que, através da opinião, condiciona a política e os decisores das políticas.

Foi há 120 anos, mas parece que foi ontem…

Péguy era um socialista cristão, um patriota francês da Terceira República que, pela leitura mística e a peregrinação interior, evoluiu para o nacionalismo e para o catolicismo.

A Paixão de Cristo é para ele, o ponto-chave da grande História de Deus e dos Homens, e a chama da fé nova parece abri-lo a fecundos atrevimentos interpretativos. Cristo é, para ele, a suprema comunhão com a miséria e o desconcerto do mundo; e o cristão está ligado ao corpo de Jesus, de um modo físico, místico, misterioso, que faz com que o sofrimento, a humilhação, a doença e a morte, o projectem para junto Dele na noite do monte das oliveiras.

Embora o tema perpasse em toda a obra poética de Péguy, é no volume Clio 1 – Dialogue de l’histoire et de l’âme païenne, (um texto póstumo publicado pela primeira vez em 1955), que encontra a sua expressão mais acabada. Recém-convertido (o texto original é de 1909), Péguy mergulha aí no “mistério central do cristianismo, na encarnação redentora”; e com o à-vontade que só a Graça da fé profunda explica, avança por cima de quase vinte séculos de teologia e exegese polémica de Doutores da Igreja e filósofos agnósticos para, como Inácio de Loyola, se meter na pele de Cristo nas horas terríveis de Getsemani. Depois, melhor que muitos teólogos, chega à razão da terrível agonia e tristeza do Deus feito Homem nas Suas horas finais, da “Tristis, tristes usque ad mortem” do Evangelho de Mateus. Diz Péguy que Cristo estava assim porque sabia que o seu sofrimento salvaria muitos, mas que não salvaria todos; e que muitas almas se perderiam, apesar daqueles últimos momentos em que, aparentemente, “o Pai o abandonara”.

Quando li Péguy pela primeira vez, há cerca de sessenta anos, foi esta a ideia que mais me tocou e impressionou. Até hoje.

Papini e a última esperança

Escreveu recentemente o Papa Francisco que o profeta Elias foi talvez o primeiro a descobrir que o nosso Deus era sempre “um Deus das surpresas, até mesmo na forma como passava e se fazia sentir” – não no vento impetuoso, não no terramoto, não no fogo, mas na brisa suave –, e que era para essa “voz subtil do silêncio” que devíamos “preparar os nossos ouvidos”.

Mas estaria a ouvir bem Giovanni Papini – um outro teólogo improvisado e também de conversão tardia, como Péguy – quando, contrariando dois mil anos de Teologia, apresentou uma possibilidade final para a História humana e divina capaz de responder à tristeza de morte do Cristo do poeta francês e de pôr fim aos suplícios dos habitantes dos infernos de Dante?

Em 1953, Papini, autor da Storia di Cristo e escritor católico consagrado, propunha, como possibilidade, o perdão ou a amnistia geral de todos os condenados ao Inferno, incluindo do próprio Lúcifer, por um acto de infinita misericórdia de Deus. O livro, Il Diavolo, foi um êxito editorial, com edições sucessivas (doze em dois meses), e levantou grande polémica, com as autoridades eclesiásticas a hesitar entre a surpresa e o choque perante a heresia do escritor católico. Papini, que nascera em Florença em 1881, “autodidata, pobre, malvestido, solitário, esquecido”, e que estava então quase cego e paralisado, aguardou disciplinadamente o veredicto eclesial, argumentando que não queria fazer doutrina ou substituir-se à doutrina da Igreja e aos seus ensinamentos, mas acrescentando que aquilo que “não era lícito ensinar como verdade certa e segura”, podia e devia ser “admitido como esperança humana e cristã”.

Um Inferno vazio e um Céu cheio? Quem sabe, talvez o aviso no início da peregrinação dantesca para que os que ali entravam abandonassem toda a esperança pudesse ser revogado e ficasse a misericórdia última, a misericórdia do “Deus das Surpresas”, movido pela infinita tristeza do seu Filho na noite de Getsemani.

Seja como for, e ainda que, por vezes, não consigamos ouvir a voz subtil de Deus Pai ou a oiçamos mal, sabemos que só irmanados no Horto a Cristo e à humanidade que sofre, só fazendo o que depende de nós e entregando a Deus o que Dele depende, podemos ser resgatados.

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