* Jaime Nogueira Pinto
- Colunista do Observador
Ainda que não consigamos ouvir a voz subtil de Deus Pai,
sabemos que só irmanados no Horto a Cristo e aos que sofrem, fazendo o que
depende de nós e dando a Deus o que Dele depende, seremos resgatados
16 abr 2022, 00:202
Para o cristão, que tem o privilégio e a inquietação de
acreditar, o tempo da Páscoa, o tempo da paixão, morte e ressurreição de
Cristo, é o tempo da intensa consumação de todos os mistérios. Mistérios com
dois mil anos e mistérios de sempre.
A ideia de um Deus que se faz Homem e que, como nós e
connosco, caminha pela humilhação, pela dor e pela morte, de um Deus que se
entrega à Terra para ser semente de vida e redenção e para que, como Ele e com
Ele, possamos também ser semente de vida, não encontra senão frívolos paralelos
nas incursões terrenas dos deuses pagãos, contadas por Homero, na Ilíada e
na Odisseia, por Hesíodo, na Teogonia, ou por
Virgílio, na Eneida.
Aí, dir-se-ia, também deuses e deusas coabitam com os
mortais e com eles concebem semideuses e heróis: Zeus seduz Alcmena que dá à
luz Herácles, ou Hércules, o dos Doze Trabalhos; Afrodite (a Vénus romana)
gera, com Anquises, Eneias, príncipe troiano e proto-fundador de Roma; Aquiles
é filho de uma ninfa do mar, Tétis, e de Peleu, rei dos Mirmidões. Mas todos
esses semideuses e heróis são fruto das imaginárias excursões de um panteão de
divindades quase lúdicas e com especialidades mirabolantes pelas terras dos
homens e das mulheres. A semelhança com Cristo, com a irrupção de Deus na
História, destes arquétipos úteis e a-históricos, destas criativas bengalas
para perscrutar o enigma da contraditória natureza humana, destes lugares
literários que, da Eneida aos Lusíadas, a
literatura europeia também foi consagrando, é um mero exercício de hermenêutica
crítica ou de semântica comparada.
Cristo e a narrativa evangélica da Sua Paixão, ou as quatro
narrativas evangélicas da Sua Paixão, são outra coisa e de outra natureza:
entram a fundo no Mistério, têm uma presença permanente na vida e na morte de
cristãos e não-cristãos e um reflexo constante na vida icónica, literária,
dramática e poética da Cristandade ao longo dos séculos.
Assim, a nossa história pessoal e colectiva, e
particularmente a História da Europa, dificilmente se conta sem a meditação da
Paixão de Cristo, e sem a reflexão sobre o desconcerto do Mundo, o sentido do
sofrimento e da morte e a esperança numa vida plena que a meditação da Paixão
traz – desde os populares mistérios medievais à Pietá de
Miguel Ângelo e às muitas versões e visões do planctus Mariae e
da agonia do Deus feito Homem.
“Mas porque Deus quisesse, me é oculto, a nossa
redenção só deste modo”
A Divina Comédia de Dante, como compêndio
geral da História divina e humana mediada pelo grande poeta medieval, não podia
ficar alheia ao mistério pascal da Redenção e da vitória sobre a morte. Dante
concebe um homem criado à imagem de Deus (imago Dei), um homem
consciente da sua liberdade de escolher entre o Bem e o Mal; e, uma vez
criteriosamente arrumados os “maus” no seu Inferno, é no Paraíso que se
aproxima do mistério da Redenção e do mundo dos que escolhem o Bem.
O facto de os desígnios de Deus serem um mistério e
continuarem a sê-lo é ponto assente para o poeta, supremo devassador do oculto
e sublime perscrutador de mistérios. Talvez por isso, depois de confessar a sua
ignorância sobre a razão pela qual Deus, para resgatar os homens, decide
sacrificar o Seu próprio filho, Dante entregue a Beatriz a explicação da
Redenção – e do caminho de Deus-Filho pela vida e pela morte adentro. A imaginária
amada do Poeta explica-a como um acto de amor e compaixão de Deus pelo Homem, a
“mais nobre das suas criaturas”. Para isso, recorda a história da Criação e da
Queda do Homem, enganado pelo seu Inimigo, e lembra que o ser humano, por si
só, não podia já reabilitar-se das suas más escolhas para aceder à “vida em
abundância”, à vida plena, à “intera vita”, para a qual Deus o criara.
Assim, a reparação do pecado, a Salvação, tinha de vir do próprio Criador,
“pelos Seus caminhos”, pela Sua “bontá” (bondade) e “larghezza”
(generosidade).
Na visão dantesca do ciclo Paraíso-Queda-Redenção, só com o
sacrifício do Seu Filho poderia Deus-Pai salvar o Homem da perdição com que o
pecado original o carregara. Criado bom (“buono e a bene”), o Homem
perdera-se, ao querer igualar-se a Deus, de forma vã e apressada; mas poderia
salvar-se pelo sacrifício de um Deus encarnado, de um Deus feito próximo, feito
Homem, capaz de carregar sobre os ombros os pecados da Humanidade, revelando a
Sua verdadeira face. Tal como o pecado de Adão caíra sobre todos os seus
descendentes, também, em Cristo, o Novo Adão, todos podiam ser salvos, ou
devolvidos “a sua intera vita”.
Quanto aos danados que, à guarda de Satanás, habitavam os
círculos das trevas que Dante imaginara e descrevera tão pormenorizada e
eloquentemente, ali estavam e ali estariam por terem escolhido o mal em
liberdade, ou por terem escolhido, em liberdade, a distância em relação ao
Criador onde, para todo o sempre, crepitariam.
A Paixão, segundo Shakespeare
Shakespeare também não poderia ter sido indiferente ao
mistério da Paixão de Cristo, tão presente nos enganos, desconcertos e
calvários causados e suportados pelo Homem; e o seu teatro é o teatro de um
autor cristão, instruído na cultura do cristianismo europeu dividido do tempo
das guerras religiosas, numa Inglaterra marcada pela guerra das Rosas e pela
reforma de Henrique Tudor.
Embora nas relativas boas graças do poder, o Bardo sabia-se
sob a sua severa censura, prévia e póstuma, e ttratava de evitar quaisquer
referências ou imagens que pudessem insinuar-se como manifestações de papismo –
vistas com duplo horror pelas autoridades isabelinas, quer como abjecta
emanação da corrupta igreja de Roma, quer como traição patriótica por conluio
com os cúmplices do supremo inimigo da Inglaterra – o Áustria de Espanha.
Talvez por isso, e pelas linhas tortas com que sempre se “reinventa o humano”,
o tema da Paixão de Cristo, ou mais concretamente o tema da Pietá,
surja inesperadamente trasvestido em Henrique VI.
Era um tempo de derrota, esse ano de 1453, o final da Guerra
dos Cem Anos, com os ingleses vencidos pelos franceses. Sir John Talbot, o
“Aquiles inglês”, condestável das tropas de Henrique VI em França, recebia o
cadáver do filho, John Lisle, morto na batalha de Châtillon. O bravo guerreiro
tomava então o cadáver do filho nos braços e chorava-o, numa reedição paternal
da dor de Maria com o corpo de Jesus nos braços. E é abraçado ao filho morto
que Talbot expira, em Henrique VI.
Nessa sua “peça histórica”, Shakespeare dava consideráveis
voltas à História para servir os objetivos do drama. Não só reproduzia o planctus
Mariae no abraço ao filho morto do terrível comandante inglês, temido
pelos franceses pela sua bravura e crueldade, como punha John Talbot a enfrentar
Joana d’Arc na batalha – para, no acto seguinte, matar por bruxaria a que viria
a ser a santa padroeira de França. Os Talbot, pai e filho, tinham de facto
morrido na batalha de Châtillon, em 1453, mas Joana d’Arc fora julgada e
condenada à morte em 1431, 22 anos antes.
É, no entanto, em King Lear, a tragédia estreada
em 1605-1606 (ou The True Chronicle of History of the Life and Death of
King Lear and His Three Daughters na versão escrita de 1608) que
Shakespeare recria com maior profundidade e subtileza a Paixão de Cristo. King
Lear acaba mal, coroando com um trágico equívoco último muitos outros
equívocos. Mas a peça, que pela profunda tristeza e desolação do desfecho viu a
sua exibição recusada por longos anos, e que conheceu até versões alternativas
com um “final feliz”, não deixa de transmitir a redenção dos que escolhem a
porta estreita do Bem.
Com Lear, destronado por Regan e Goneril, as filhas más,
Shakespeare torna presente, na humilhação de um rei sem reino nem poder, o
Cristo humilhado pelo povo, coroado com uma coroa de espinhos e crucificado sob
o dístico satírico “Rei dos Judeus”. O “Escárnio de Cristo”, que inspirou uma
galeria de grandes artistas, de Fra Angelico a Tiziano e a Van Dick,
reencena-se em Shakespeare na figura patética de Lear, o rei sem trono, traído
pelos seus e enlouquecido de dor e humilhação. Mas é em Cordélia, a filha boa,
que o Bardo reproduz a imagem do Cristo humilde, injustiçado e perseverante.
Lear não vê a falsidade e a traição de Regan e Goneril nem o amor e devoção de
Cordélia, que evoca o sal, o evangélico sal da Terra, para expressar o seu amor
pelo pai. Habituado a um círculo de incondicionais veneradores, o Rei não vê
nem ouve o que se passa, tomando as duas filhas intriguistas por boas e por má
a filha que se recusa a entrar numa falaciosa competição pela sua aprovação e
favor.
Como narrativa de terríveis maquinações e traições, de
grandes torturas e sofrimentos, de grande desconcerto do mundo, de caos
primitivo e selvagem, King Lear pode também ser o símbolo de um
mundo pré-cristão ou de um mundo abandonado por Deus. E a Graça chega a esse
mundo através do amor silencioso e incondicional de Cordélia, um amor
inalterado perante a ingratidão e a loucura do pai, um amor capaz de ser “sal
da terra” e “luz do mundo” numa terra que, mergulhada nas trevas, perdeu o
sabor, um amor que, tal como o de Cristo, se mostra capaz de “redimir a
natureza” (“Thou hast one daughter / Who redeems nature from the
general curse”).
A peça acaba com a morte de Cordélia e a consequente morte
de Lear, finalmente consciente de todos os seus loucos enganos. Shakespeare não
ressuscita Cordélia, mas deixa-a como alegoria do Bem paciente e obediente que
faz o seu caminho indiferente à incompreensão, à ingratidão e à traição.
Cordélia atravessa todos os calvários por obediência e entrega ao pai, à
verdade e à justiça; e de olhos postos num tempo outro e num bem maior, parece
repetir com a vida as palavras que Jesus dirige a Pedro na última ceia: “O que
Eu faço, não o entendes agora, mas hás-de compreendê-lo depois.”
O Cristo de Charles Péguy
Dante é um mestre visionário e profético, um cristão
incendiário e colérico que não hesita em encerrar no Inferno os seus inimigos
vivos, e até alguns Papas; Shakespeare é um reinventor da condição humana, um
tratadista dos grandes limites da Terra e do Céu; Peguy, o terceiro autor
cristão que me acompanha nesta Páscoa, é menos ilustre, mas não deixa de ser um
grande poeta e um grande exemplo de católico empenhado no testemunho da Fé, e
no amor a Deus, aos homens e à Pátria.
É um cristão e católico singular, que parece estar nos
antípodas dos católicos conservadores da sua geração: um socialista cristão,
alinhado, no caso Dreyfus, pelo lado que, para a Direita, era o lado do
“traidor”. Isto no tempo de Maurice Barrès, de Édouard Drumont, de Charles
Maurras. Péguy funda a Amitié Judéo-Chrétienne e vai morrer, voluntário, nas
primeiras semanas da Grande Guerra. É Tenente de reserva e é dos primeiros a
morrer em combate, a 5 de Setembro de 1914, em Villeroy.
Órfão de pai, educado na fé e nos “valores da velha França”
(da decência, da disciplina e do trabalho bem feito) numa família modesta e na
escola primária, Péguy vai ser depois aluno de Romain Rolland e de Henri
Bergson. Tem o seu baptismo de fogo político no caso Dreyfus, num tempo de
“beatitude revolucionária”. Milita em causas humanitárias, como a defesa dos
arménios, funda uma revista e um grupo de reflexão e discute ideias com amigos
e inimigos. Mas, em Setembro de 1908, escreve a Joseph Lotte, um seu amigo escritor
e católico: “Je n’ai pas tout dit… J’ai retrouvé la foi… Je suis
catholique”.
Era o termo de um longo caminho, em que a leitura da Paixão
segundo S. Mateus e da Imitação de Cristo tinham sido
determinantes.
Péguy é um construtor de catedrais, mas é também um
iconoclasta de mitos antigos e modernos. É um católico que critica o clero do
seu tempo, acusando-o de desconhecer a condição humana, mas é também um crítico
insistente e sem medo da ideia de progresso, “a grande lei das sociedades
modernas”, e da própria modernidade, que considera um tempo fútil, um “reino de
bárbaros” embrutecidos e despreocupados, que não conhecem o conceito da
irreversibilidade e tem por Deus o Dinheiro. A modernidade não é laica, é anticristã;
e é governada por um “Partido intelectual” que controla as universidades, as
revistas, os jornais, a opinião, e que, através da opinião, condiciona a
política e os decisores das políticas.
Foi há 120 anos, mas parece que foi ontem…
Péguy era um socialista cristão, um patriota francês da
Terceira República que, pela leitura mística e a peregrinação interior, evoluiu
para o nacionalismo e para o catolicismo.
A Paixão de Cristo é para ele, o ponto-chave da grande
História de Deus e dos Homens, e a chama da fé nova parece abri-lo a fecundos
atrevimentos interpretativos. Cristo é, para ele, a suprema comunhão com a
miséria e o desconcerto do mundo; e o cristão está ligado ao corpo de Jesus, de
um modo físico, místico, misterioso, que faz com que o sofrimento, a
humilhação, a doença e a morte, o projectem para junto Dele na noite do monte
das oliveiras.
Embora o tema perpasse em toda a obra poética de Péguy, é no
volume Clio 1 – Dialogue de l’histoire et de l’âme païenne, (um
texto póstumo publicado pela primeira vez em 1955), que encontra a sua
expressão mais acabada. Recém-convertido (o texto original é de 1909), Péguy
mergulha aí no “mistério central do cristianismo, na encarnação redentora”; e
com o à-vontade que só a Graça da fé profunda explica, avança por cima de quase
vinte séculos de teologia e exegese polémica de Doutores da Igreja e filósofos
agnósticos para, como Inácio de Loyola, se meter na pele de Cristo nas horas
terríveis de Getsemani. Depois, melhor que muitos teólogos, chega à razão da terrível
agonia e tristeza do Deus feito Homem nas Suas horas finais, da “Tristis,
tristes usque ad mortem” do Evangelho de Mateus. Diz Péguy que Cristo
estava assim porque sabia que o seu sofrimento salvaria muitos, mas que não
salvaria todos; e que muitas almas se perderiam, apesar daqueles últimos
momentos em que, aparentemente, “o Pai o abandonara”.
Quando li Péguy pela primeira vez, há cerca de sessenta
anos, foi esta a ideia que mais me tocou e impressionou. Até hoje.
Papini e a última esperança
Escreveu recentemente o Papa Francisco que o profeta Elias
foi talvez o primeiro a descobrir que o nosso Deus era sempre “um Deus das
surpresas, até mesmo na forma como passava e se fazia sentir” – não no vento
impetuoso, não no terramoto, não no fogo, mas na brisa suave –, e que era para
essa “voz subtil do silêncio” que devíamos “preparar os nossos ouvidos”.
Mas estaria a ouvir bem Giovanni Papini – um outro teólogo
improvisado e também de conversão tardia, como Péguy – quando, contrariando
dois mil anos de Teologia, apresentou uma possibilidade final para a História
humana e divina capaz de responder à tristeza de morte do Cristo do poeta
francês e de pôr fim aos suplícios dos habitantes dos infernos de Dante?
Em 1953, Papini, autor da Storia di Cristo e
escritor católico consagrado, propunha, como possibilidade, o perdão ou a
amnistia geral de todos os condenados ao Inferno, incluindo do próprio Lúcifer,
por um acto de infinita misericórdia de Deus. O livro, Il Diavolo,
foi um êxito editorial, com edições sucessivas (doze em dois meses), e levantou
grande polémica, com as autoridades eclesiásticas a hesitar entre a surpresa e
o choque perante a heresia do escritor católico. Papini, que nascera em
Florença em 1881, “autodidata, pobre, malvestido, solitário, esquecido”, e que
estava então quase cego e paralisado, aguardou disciplinadamente o veredicto
eclesial, argumentando que não queria fazer doutrina ou substituir-se à
doutrina da Igreja e aos seus ensinamentos, mas acrescentando que aquilo que
“não era lícito ensinar como verdade certa e segura”, podia e devia ser
“admitido como esperança humana e cristã”.
Um Inferno vazio e um Céu cheio? Quem sabe, talvez o aviso
no início da peregrinação dantesca para que os que ali entravam abandonassem
toda a esperança pudesse ser revogado e ficasse a misericórdia última, a
misericórdia do “Deus das Surpresas”, movido pela infinita tristeza do seu
Filho na noite de Getsemani.
Seja como for, e ainda que, por vezes, não consigamos ouvir a voz subtil de Deus Pai ou a oiçamos mal, sabemos que só irmanados no Horto a Cristo e à humanidade que sofre, só fazendo o que depende de nós e entregando a Deus o que Dele depende, podemos ser resgatados.
https://observador.pt/opiniao/quatro-autores-em-tempo-de-pascoa/
Sem comentários:
Enviar um comentário