sábado, 1 de novembro de 2025

Jaime Nogueira Pinto - O escudo democrático

* Jaime Nogueira Pinto

Colunista do Observador   

Liberalíssimos democratas a defender a proibição das redes sociais, esse tentacular polvo de caótica e amoral informação alternativa, a bem da Democracia e da luta contra o Fascismo?

01 nov. 2025,  

A Comissão Europeia tem comissários para tudo. Mas há um que tem um pelouro mais exigente do que os outros. Trata-se de Michael McGrath, Comissário Europeu para a Democracia, Justiça, Estado de Direito e Protecção do Consumidor.

Ora, dada a dimensão do campo de batalha e não estando o manipulado povo, o desinformado demos, de feição, parece que para proteger a Democracia, o Estado de Direito e o Consumidor, só mesmo instalando um Escudo. Um Escudo Democrático, contra o exército de desinformadores que, processo eleitoral a processo eleitoral, incessantemente trabalha na sombra para transviar o incauto povo europeu.

A fim de sensibilizar as massas para a implementação do dito Escudo, McGrath resolveu então organizar um debate na Comissão Europeia sob o título “A necessidade de um Escudo Democrático Europeu para fortalecer a Democracia, defender a UE da ingerência estrangeira e das ameaças híbridas e proteger os processos eleitorais na União Europeia”.

Assim, no dia 9 de Outubro, depois de desfiar os perigos que ameaçavam o futuro da Democracia na Europa, McGrath passou a tranquilizar as hostes para que não caíssem em desânimo, dando-lhes a boa-nova: graças à contribuição do Parlamento Europeu, dos Estados membros e até de cidadãos anónimos, o Democratic Shield estava pronto a ser “implementado”!

O Escudo Democrático vinha, assim, socorrer a Europa, respondendo ao premente desejo dos cidadãos europeus, conforme expresso em inquérito realizado entre 31 de Março e 26 de Maio deste ano. Para o comissário, as 5 mil respostas ao inquérito (num universo de 400 milhões de eleitores) eram, já de si, um sinal positivo. Uma grande riqueza, a participação entusiástica dos cidadãos da Europa. É certo que, dos 5 mil cidadãos que responderam à consulta, só 79 se mostraram favoráveis à implementação do dito Escudo, mas não seria isso mais uma prova das “ameaças híbridas” e das “ingerências estrangeiras” que andavam no ar?

Em contrapartida, das 94 organizações não-governamentais inquiridas – que, essas sim, estavam no terreno –, só 8 se tinham oposto ao Democratic Shield. Os canais de desinformação, que moram lá para os lados das “redes sociais”, apressaram-se a sugerir que a discrepância talvez se devesse ao facto de a maior parte das ONGs ser financiada pela própria Comissão Europeia… Mas não eram os cidadãos europeus também financiados, e até agraciados, pela Comissão, com comissões, debates, recomendações, subsídios e altos funcionários que permanentemente trabalhavam em sua defesa e em defesa da Democracia?

Independentemente dos inquéritos, o Escudo Democrático impunha-se; até para conter as escolhas eleitorais de povos cada vez mais manipulados e desinformados, que insistiam em ameaçar a Democracia, apesar dos inúmeros avisos da imprensa de referência e das inúmeras recomendações e sanções das inúmeras comissões.

À beira de um ataque de nervos

O Escudo do comissário do povo europeu Michael McGrath é só um exemplo da forma mais organizada e institucional que a reacção sistémica ao “voto do povo” tem vindo a tomar. A prática de recorrer a instrumentos jurídicos para, em nome da Democracia, proibir ou tornar ilegais eleições “que não correram bem” e prevenir as que poderão não correr bem, parece ter-se normalizado. A primeira volta das eleições na Roménia, por exemplo, foi anulada porque o “candidato errado” estava à frente; igualmente esclarecedora, é a tentativa de impôr a Marine Le Pen uma sentença extraordinária por ter como funcionários no Parlamento Europeu alguns dos seus quadros partidários, prática generalizada entre os partidos franceses e europeus.

Também em Portugal – e logo num momento de grandes elogios à actividade jornalística e ao papel da liberdade de pensamento e de escrita no nascimento e consolidação da Democracia – parece haver partidários dos “escudos democráticos”, nomeadamente contra as famigeradas “redes sociais” (como se “as redes sociais” fossem uma realidade unívoca e unilateral, e como se a desinformação, o discurso de ódio e os disparates só por lá andassem). A alternativa, supomos, seria ficarmos unicamente com os chamados jornais de referência e com uma aturada selecção de respeitáveis pivots e comentadores televisivos, capazes de informar democraticamente o povo, com a decência, o rigor, a objectividade, a correcção e a actualidade que a Democracia exige. (No Domingo passado, quando já se sabiam os resultados na Argentina, um dos canais de referência, atido ao wishfull thinking das sondagens e a uma suposta vitória dos peronistas em Bueno Aires, ainda dava Milei a perder as eleições parlamentares na Argentina).

Liberalíssimos democratas a defender a proibição das redes sociais, esse tentacular polvo de caótica e amoral informação alternativa, a bem da Democracia e da luta contra o Fascismo? O mesmo Fascismo instituído pelo Estado Novo, esse “bafiento regime de terror”, que censurava tudo o que era amoral e…alternativo?

Com todo este “ó tempo volta para trás”, só podem estar à beira de um ataque de nervos.

https://observador.pt/opiniao/o-escudo-democratico/ 

António Barreto - Ventura, Salazar e os ciganos



* António Barreto
1 de Novembro de 2025


Proibir cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto a utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes idiotias do tempo presente.


Saber se Ventura é ou não fascista é questão relativamente pouco interessante. Nem ele o saberá, talvez. Há hoje, à face da terra, em Portugal e no mundo, outras variedades de simpatias políticas, umas mais interessantes, outras mais perigosas. Saber se ele é racista, colonialista, adepto da supremacia branca, populista, machista, paternalista, integrista ou integralista, eis questões também pouco importantes, mas às quais já se pode prestar alguma atenção, a fim de compreender a pessoa.

Os cartazes de Ventura, tanto o dos ciganos como o do Bangladesh, são de enorme mau gosto, são tolices irremediáveis, mas de enorme eficácia: tinham como objectivo acicatar os piores sentimentos de parte da população e provocar oposição e ameaças de censura. Objectivos alcançados, pelo menos em parte. Esperemos por mais até às próximas eleições. E saibamos resistir ao impulso de algumas pessoas que consiste em censurar e proibir.
 
Uma das expressões favoritas de Ventura, “pôr isto em ordem”, é de uma absoluta infantilidade, é destituída de cultura e pensamento, trata-se de um mero desabafo próprio de quem procura o reflexo condicionado, não a razão nem sequer o sentimento. Deixemo-lo prosseguir nessa via, até cair no ridículo ou até revelar a vacuidade dessa palermice inqualificável. A expressão constitui lugar-comum ou cliché conhecido, tem muitas décadas de existência, não quer dizer nada e quer dizer tudo. Cada pessoa que a ouve percebe-a como quer, dá-lhe o conteúdo que deseja. É uma palavra de ordem que nada implica de conteúdo, nem de política, nem de objectivos, mas apenas alude à entrega do poder a um aventureiro. É retórica usada por todos os candidatos a líderes, verdadeiros ou maquilhados, que apenas pretendem que lhes seja dada confiança sem limites. Trata-se de expressão com equivalentes, igualmente destituídos de conteúdo, tais como “limpeza” e “vassourada”. Que se vêm acrescentar a outra de uso corrente e preferida por Ventura, sem qualquer conteúdo nem sentido, mas de forte capacidade de excitação, que é a “vergonha” que ele exprime e a “falta de vergonha” dos outros. A liberdade de expressão também inclui estes lugares-comuns e estes disparates.
 
Recentemente, Ventura fez nova aquisição teórica e política, para não dizer cultural: a expressão “é preciso um Salazar” ou mesmo “nem três Salazares chegavam”. A tolice é tanta que nem sequer tem graça. É apenas confrangedor, mas tem um mérito: revela as inclinações de Ventura. Veremos como os eleitores lhe pagarão esta confissão.

 
Estas expressões de Ventura, estas provocações de pequeno porte e reduzida inteligência, têm o condão de excitar os seus seguidores: é bom para eles, é alimento para as almas. Mas também têm o efeito de suscitar, junto dos seus adversários, as piores reacções imagináveis, da censura à proibição, passando pelo processo judicial. Punir Ventura porque é racista? Porque diz parvoíces? Proibir Ventura de dizer disparates? Não faz qualquer sentido. Ventura é assim. Pensa e diz coisas estranhas. Não sabemos se pensa, mas pelo menos diz.

 
Proibir e castigar fazem sentido quando se trata de actos, de factos, não de pensamentos ou palavras. Proibir intervenções ou cartazes por serem a tradução de “discurso de ódio” é acto tão condenável quanto o da utilização desse mesmo discurso. O “discurso de ódio” é uma das grandes invenções do tempo presente. Uma das grandes idiotias. O que é exactamente ninguém sabe. Ou antes: cada pessoa sabe, porque cada pessoa define o seu próprio ódio, cada um define os limites que prefere. Daí a encontrar definições gerais e abstractas, limites reais e palpáveis, é uma impossibilidade. Desabafar, criticar ou fazer ironia à custa de um povo ou de uma nacionalidade é “discurso de ódio” conforme quem denuncia e quem pratica: a avaliação do ódio será diferente conforme se trate de americano ou russo, judeu ou palestiniano, africano ou chinês. Não se trata, como é evidente, de terreno sólido para legislar.

 
Os gestos, os actos, os factos e as acções são uma coisa. As vozes, a palavra, a expressão pública de qualquer crença, o desejo, a vontade, o desprezo ou o insulto são outras coisas. Enquanto não houver acções racistas e violentas, incitamento e organização da violência, agressão a pessoas e vandalização de bens, os desabafos de Ventura e outros não passarão disso mesmo, palavras. Desde que não violem ou atentem realmente, não apenas verbalmente, contra os direitos e a integridade de imigrantes, ou seja de quem for, as palermices de Ventura e outros serão desabafos, desejos de arruaceiros e demagogia barata. Querer “correr” com os estrangeiros e os imigrantes é tão inteligente quanto “correr” com capitalistas, sindicalistas, padres ou militares.

 
Todos têm o direito de não gostar de ciganos, bengaleses, árabes, negros, russos, americanos e até portugueses. Todos têm o direito ao preconceito e a considerar inferiores, estúpidos, perigosos e ameaçadores os outros povos. Mais difícil ainda: todos têm o direito a exprimir publicamente os seus pensamentos, as suas crendices e os seus preconceitos. Tentar censurar, proibir ou controlar a expressão verbal dos seus pensamentos é tão grave quanto cometer actos de agressão ou de violência.

 
Há ainda a questão do insulto. Muitas pessoas pensam que o insulto deve ser controlado, censurado, eventualmente castigado. É uma velha questão. Sem pretender inovar ou ser exaustivo, o importante é distinguir entre insulto e calúnia. A segunda é em geral motivo de processo e condenação. Não se pode acusar alguém de ter praticado ou cometido actos que comprometem a honra, a reputação, a carreira ou a vida privada. Já o insulto é livre. Até ao ponto de prejudicar outrem. Sem isso, o insulto faz parte da liberdade de pensamento e de expressão.

  
As intenções de Ventura e de outros são ou parecem claras: quer ser perseguido, pretende ser proibido de falar, gostaria de ser ilegalizado, espera que alguém o acuse em tribunal, deseja que a polícia o procure e pensa mesmo que alguém, privado ou público, o poderia ameaçar. Anseia ter razões de queixa, com a esperança de ser uma vítima dos que são contra a liberdade de expressão. Ficará encantado se o acusarem de discurso de ódio. Será para ele glorioso o dia em que será acusado e processado por uso da liberdade.

https://www.publico.pt/2025/11/01/opiniao/opiniao/ventura-salazar-ciganos-2152978