segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Nuno Pacheco - Anónimos de Abril, a história cantada de desconhecidos que ajudaram à revolução



Rogério Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso são os rostos deste espectáculo que resgata da sombra figuras da resistência e do 25 de Abril. A estreia é esta segunda-feira.

Nuno Pacheco

28 de Janeiro de 2024, 20:05

 

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Rogério Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso: os rostos não anónimos dos Anónimos de Abril LUÍS FILIPE CATARINO

Sabem quem foi Aurora Rodrigues? Belmira Gonçalves? Francisco Miguel Duarte? Albina Fernandes? Jorge Alves? Luís e Herculana Carvalho? João Arruda? As suas vidas estão ligadas à resistência contra o Estado Novo e ao 25 de Abril, mas os seus nomes permanecem desconhecidos para a quase totalidade dos portugueses. É deles, e de outros como eles, que nos fala (e canta) Anónimos de Abril, em estreia esta segunda-feira no Tivoli BBVA (21h), em Lisboa. O espectáculo, inserido nas comemorações dos 100 anos do Teatro Tivoli, vai ser gravado pela RTP, para posterior transmissão.

O projecto de Rogério Charraz e José Fialho Gouveia, com as participações de Joana Alegre e João Afonso (vozes) e dos músicos Alexandre Frazão (bateria), Carlos Garcia (piano), Marco Reis (guitarra) e Nuno Oliveira (baixo), surgiu quando o cantor e compositor viu num texto de uma rede social a história de Celeste Caeiro, recorda ao PÚBLICO. "Já conhecia o nome, sabia que começou por dar um cravo a um militar, mas a maior parte dos portugueses está convencida de que era florista, quando de facto ela trabalhava num restaurante que fazia um ano no dia 25 de Abril [de 1974].”

Ele próprio não conhecia a história e isso aguçou-lhe ainda mais a curiosidade. “Quando dei por mim a deliciar-me com ela, pensei que deve haver muitas pessoas que tiveram um papel simbólico ou até fundamental na resistência ou na revolução e que não são muito faladas de cada vez que se celebra o 25 de Abril. Foi esse o ponto de partida para este Anónimos de Abril: ir à procura de histórias enterradas ou guardadas na gaveta.”

O passo seguinte foi falar com José Fialho Gouveia, que já havia colaborado com Rogério Charraz, como letrista, nos discos O Coreto (2021) e Reunião de Condomínio (2023), para combinar uma ida aos arquivos, tarefa que começou a ser feita a dois.

“Fomos encontrando histórias”, diz José Fialho Gouveia. “Falámos com pessoas que nos passaram figuras que podiam encaixar neste projecto e fomos construindo uma lista que depois tivemos de ir encurtando. Quisemos diversidade: não queríamos quatro ou cinco exemplos cujo aspecto central fosse a vida na clandestinidade; quisemos equilíbrio entre homens e mulheres, porque o 25 de Abril também foi feito por muitas mulheres, embora os nomes mais conhecidos sejam de homens; e quisemos regiões diferentes do país.”

O compositor acrescenta: “No caso das mulheres, tivemos também a preocupação de não ir buscar apenas as que eram de facto apoio de homens, como a Arajarir Campos [secretária de Humberto Delgado, morta pela PIDE na mesma emboscada em que ele foi assassinado, em Fevereiro de 1965], mas mostrar os vários papéis que tiveram.”

Arajarir está entre os “anónimos” aqui cantados. Tal como, entre vários outros, Belmira Gonçalves, morta a tiro durante a “Revolta das Águas” na Madeira, em 1962; o Padre Alberto Neto, fundamental na vigília da Capela do Rato; Jorge Alves, o militar da GNR que ajudou na célebre fuga dos presos do Forte de Peniche; Francisco Sousa Mendes, neto do cônsul Aristides Sousa Mendes, que integrou a coluna de Salgueiro Maia; Aurora Rodrigues, estudante presa em 1973 e torturada durante três meses; ou o casal Luís e Herculana Carvalho. De uma família abastada do Porto, estes pais de um destacado militante do PCP, Guilherme da Costa Carvalho, conseguiram autorização para visitar o filho na colónia penal do Tarrafal. Ali tiraram fotografias às campas dos prisioneiros mortos e no regresso percorreram o país a entregar as imagens aos familiares dos detidos.

Recolhidas as histórias, foi a vez das canções. “O processo foi o mesmo que usámos nos dois discos anteriores”, conta Rogério Charraz. “Partir da história, da personagem, fazer a letra – um trabalho do Zé, depois de aprofundar a pesquisa inicial, ao ler os livros, conhecer as histórias a fundo, os pormenores –; em cima das letras, eu construí as canções e os arranjos, para depois meter as vozes, minha, do João e da Joana.”

Os cantores foram já escolha de ambos. “Na minha cabeça, há um lado colectivo no canto de intervenção”, explica o compositor. “Os cantautores cantavam muitas vezes juntos, com as suas guitarras e as suas vozes, e isso está muito presente no nosso imaginário. Fazia sentido ir buscar outras vozes, [aliás] com ligações familiares a figuras da resistência: a Joana é filha de Manuel Alegre e o João é sobrinho do José Afonso.”

Depois dos palcos, um disco

Joana Alegre aceitou o convite antes de ouvir as canções, mas o que leu e ouviu deixou-a tranquila: “Agradou-me muito a perspectiva literária, transversal, não panfletária, igualitária, de contar a história de pessoas anónimas que também construíram a liberdade”, diz.

“Esta narrativa corrige um bocadinho aquela de que as mulheres ficaram reféns, e que menorizava o seu papel na resistência e na construção da liberdade", sublinha a cantora. "Há aqui histórias muito sensíveis, porque estamos a entrar no plano dos traumas individuais, do sofrimento pessoal, mas as letras foram feitas pelo Zé Fialho com muito cuidado.”

João Afonso corrobora: “Também aceitei o desafio sem conhecer os poemas, mas a ideia em si atraiu-me logo – porque é muito interessante a abordagem. O 25 de Abril que conhecemos foi feito por oficiais, homens, mas estas histórias vão mais além, falam do trabalho de resistência escondido, de personagens que não vêm nos livros escolares.”

Após a estreia do espectáculo em Lisboa, há já mais oito datas marcadas, além de outras ainda à espera de confirmação: Portimão (16 de Março), Montijo (6 de Abril), Fafe (19 de Abril), Vila do Conde (20 de Abril), Santa Maria da Feira (24 de Abril, com a Orquestra Sinfónica de Jovens), Barcelos (27 de Abril), Grândola (21 de Setembro) e Loulé (26 de Outubro). Anónimos de Abril deverá ainda dar lugar a um CD, a lançar em 2025.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

https://www.publico.pt/2024/01/28/culturaipsilon/noticia/anonimos-abril-historia-cantada-desconhecidos-ajudaram-revolucao-2078040

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