quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Bagão Felix - Silêncio entre silêncios (e um aniversário)

18 de Maio de 2016, 12:29
Por António Bagão Félix



F
requentemente acontece guardar-se um minuto de silêncio pela morte de alguém com algum significado ou representação. Nos recintos desportivos, essa forma de homenagem exprime-se, em geral, perante muitos espectadores. Sobretudo nos estádios de futebol, o silêncio é, não raro, substituído pelo ruído de muita gente que se está nas tintas para o momento de respeito, como também por palmas e palminhas miméticas para quem 60 segundos de silêncio são quase uma eternidade impossível de cumprir. Como isto é exasperante diante de quem não é capaz de ter a sensibilidade e o respeito de guardar silêncio, como se um minuto cronológico fosse uma “prisão perpétua”!
Ainda recentemente, assim foi na homenagem a um ex-árbitro internacional falecido, Paulo Paraty de 53 anos. Num dos estádios – não importa qual, pois o que aconteceu não é exclusivo deste ou daquele clube – não tivemos silêncio, não tivemos palmas, mas antes assobios. Tratava-se de um árbitro, logo inimigo mesmo na morte. Onde chega a ignomínia moral!
Este é um dos lados mais soezes e indigentes do horror ao silêncio. O horror ao vácuo do som (mesmo que não o possamos traduzir por silêncio, coisa bem distinta) vive todos os dias entre nós. É que o silêncio incomoda a mente de quem só vê o seu contrário como vantajoso, numa abordagem cretinamente utilitarista. O silêncio não é a moda. O que hoje mais parece contar não é a magnanimidade do silêncio respeitado, mas antes a sua ostensiva violação, mesmo que através da fronteira acústica de sons ocos, de interjeições vazias e de palavras perdidas no vazio de ideias.
O silêncio não é apenas a ausência do som, como a sombra não se esgota no recato da luz. O silêncio existe para além da não existência do seu oposto. Não foi o silêncio que veio perturbar a necessidade do ruído, mas o inverso. Por isso, este é dependente daquele. E, afinal, o que mais conta: o silêncio entre palavras ou as palavras entre silêncios? Ou, como escreveu Mia Couto, será que o silêncio não é a ausência da fala porque é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra?
Não há apenas o silêncio, há os silêncios. O bom e o mau. O genuíno e o cretino. O sem medida e o calculista. O de cada um para si e o de cada um para o outro. O que brota da dignidade e o que espezinha a respeitabilidade. O da alegria e o da tristeza. O do amor e o do desamor. O da concordância e o da discordância. O da liberdade e o da opressão. O da eloquência e o da ignorância. O da serenidade e o do desassossego. O da esperança e o do desespero. O da convicção e o da responsabilidade. O da verdade e o da mentira. O da persuasão e o da omissão. O da generosidade e o da indiferença. O da autenticidade e o do fingimento. O da coragem e o do medo. O da purificação e o da contaminação. O da solidão procurada e o do abandono perverso. O da paz e o da guerra. O da argumentação e o da decantação. O da chegada e o da partida. O da presença e o da ausência. O do alfa e o do ómega. O
A Natureza gosta do silêncio sem adereços. Porque o silêncio é a forma serena de se adormecer e o modo suave de se acordar. A neve cai no silêncio. A alvura é o silêncio majestoso das cores na sua plena união. O nascer e o pôr-do-sol convidam à serenidade do silêncio. O silêncio é o dia cedo, como contraponto da noite tarde.
O olhar pode ser muito mais do que o silêncio de uma palavra não dita. O silêncio da oração pode ser dito por palavras. E o silêncio sem palavras repetidas mecanicamente pode ser a plenitude da oração. O silêncio do reencontro é a forma perfeita do amplexo fraterno. O silêncio diante da morte diz tudo no respeito de nada falar.
A sociedade incomoda-se, cada vez mais, com o silêncio. O silêncio não é um bem transaccionável que se compre ou venda, não é objecto de transmissões televisivas que, aliás, o abominam, seria um absurdo na rádio, não substitui as palavras dos jornais, é um paradoxo no activismo das redes sociais, não se associa ao sucesso, quase se lega às gerações futuras como um estigma lúgubre. O silêncio incomoda porque interpela, perturba porque vem de dentro, enfada porque não rende, afasta porque se crê ser a forma de não comunicar.
Numa qualquer reunião ficar em silêncio desqualifica, mesmo que nada se tenha para dizer. Num debate televisivo o perdedor é o que fala menos, mesmo que no intervalo do seu silêncio, tenha sido o que disse mais. Nos discursos, o que conta não é o valor do conteúdo mas o tempo em que se agride o silêncio de ainda não se ter terminado. Na discussão, ganha quem não se cala e perde quem, às vezes sensatamente, escuta, no silêncio do seu ser, a consciência do respeito. Cito, contextualizada, a sapiência de Eurípedes: “fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”.
O silêncio é agora urbi et orbi quebrado com a autocracia do som, ainda que musical. Na espera nos telefones onde nos impingem músicas e ritmos que não pedimos e que nunca ouviríamos, a maior parte das vezes para intervalar um serviço de atendimento permanentemente entupido ou deficitário de qualidade. Um pai ou uma mãe que acabam de perder o seu filho amado são agredidos com um alegre folclore ou música pimba que àquela hora os apanhou num telemóvel. Nos elevadores, a má-criação de um silêncio de quem não tem a educação mínima de cumprimentar quem entra ou sai, é envolta numa qualquer musiqueta de pacotilha. Nos transportes ou nos táxis, o seu utilizador tem de aturar, sem dar autorização, música rasca ou anúncio aparvalhado. Nos comboios, há momentos em que as carruagens mais parecem centrais telefónicas, onde o recato é minoritário.
O silêncio é, hoje, motivo de chacota e pretexto de crítica. Já lá vai o tempo em que o silêncio era de ouro. Hoje, na época dos ruídos metalizados, nem a mais reles lata se associa ao silêncio. Fala-se, sem rodeios, do silêncio (offshore) da lei, extrema-se a linguagem quando se diz que há um silêncio sepulcral e achincalha-se um oponente quando se afirma que se reduziu o fulano ao silêncio.
Mas volto ao início. Ao silêncio desfrutado, como ao silêncio que transporta respeito. Pelo outro e por cada um. É necessário reabilitar o silêncio que nos oferece tempos de expressão lhana, cristalina, límpida de nos exprimirmos e de nos sentirmos ser. Convida-nos à profilaxia da introspecção, aproxima-nos de nós mesmos, orienta-nos na selecção do que não é silêncio.
Nunca quebres o silêncio se não for para o melhorar”, disse um dia Beethoven. Deixo estas palavras envoltas no “Silêncio de Beethoven” da autoria do notável compositor e pianista mexicano Ernesto Cortázar e convido o amável leitor a ouvi-lo. E assim o silêncio se engrandece e se acaricia através da beleza de sobre ele compor. Com uma nota intimamente pessoal: hoje a minha filha mais nova faz 40 anos. Ofereço-lhe o mais paternal e amoroso silêncio.




Uma curiosidade que muitos não conhecem: foi Portugal que inventou a hoje generalizada homenagem pública silenciosa. Em 1911, o Parlamento, em memória do ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, primeira entidade a reconhecer a República Portuguesa, observou uma hora, repito, uma hora de silêncio; e, no dia seguinte, o Senado fez o mesmo, mas já só durante dez minutos. Este costume inaugurado pelos portugueses generalizou-se depois por todos a Europa, por ocasião da vitória dos Aliados em 1918, claro que já sobre a forma breve que conhecemos hoje, a de um minuto de silêncio.


  1. Não tem nada que agradecer João Macedo. Eu também não conhecia este pormenor, mas tenho-o como verdadeiro porque quem o diz é historiador Alain Corbin, autor de «Histoire du silence de la Renaissance à nos jours», livro onde traça a história das formas tão diferentes como o Homem ocidental amou o silêncio, rejeitou-o, procurou-o ou teve-lhe uma verdadeira aversão.
    As formas de receção do silêncio seguramente variaram ao longo da História. Creio que o Homem do século XXI suporta muito mal o silêncio, o que o confunde e deixa perante o que mais teme: o tédio. Estamos numa civilização que valoriza sobretudo o lúdico e evita deixar as pessoas a sós com os seus pensamentos.
    Há poucas semanas um artigo no Público dava conta de um curioso estudo. Para os participantes era tão insuportável estarem a sós 15 minutos com os seus pensamentos que muitos eram levados a auto-administrar um choque eléctrico apesar de terem declarado previamente que estavam dispostos a pagar para o evitar. Para o Homem do século XXI não ter nada para escutar ou fazer aparentemente é o pior que lhe pode acontecer.
  2. Não conhecia, mas acho interessante sobretudo para medir o grau de (in)capacidade de suportar o tempo do silêncio!
https://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/05/18/silencio-entre-silencios/

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