quarta-feira, 6 de agosto de 2025

John Hersey - “Hiroshima” (excertos)

 

Alfredo Barroso
2 d
 ·
No dia 6 de Agosto de 1945, às 8 horas e 15 minutos (locais) da manhã

BOMBA ATÓMICA DE URÂNIO LANÇADA SOBRE HIROSHIMA, DE UM AVIÃO DA FORÇA AÉREA DOS EUA, FAZ MAIS DE 100 MIL MORTOS!
- recorda Alfredo Barroso com a ajuda do jornalista John Hersey

Aconteceu há 80 anos, seis meses depois de eu ter nascido em Roma. Foi exactamente às oito horas e quinze minutos da manhã do dia 6 de Agosto de 1945, hora japonesa, que uma bomba atómica de urânio - alcunhada “Little Boy” e lançada do avião “Enola Gay” da USA Air Force - deflagrou a cerca de 600 metros de altura sobre a cidade japonesa de Hiroshima, matando imediatamente mais de cem mil (100.000) pessoas, infligindo sofrimentos brutais aos sobreviventes e causando uma devastação terrível na cidade e arredores.

Como escreveu o jornalista e escritor John Hersey, no seu famoso livro intitulado “Hiroshima”, citando um dos sobreviventes, o reverendo Kiioshi Tanimoto, pastor da Igreja Metodista de Hiroshima

* John Hersey

«Foi então que um tremendo clarão rasgou o céu. O reverendo Kiioshi Tanimoto lembra-se perfeitamente que o clarão percorreu o firmamento de nascente para poente da cidade em direcção às colinas. Parecia uma lâmina de luz»...

«(Quase ninguém em Hiroshima se lembra de ter ouvido qualquer barulho provocado pela bomba. Porém, um pescador a bordo da sua sampana, no mar interior perto de Tsuzu, o homem em cuja casa viviam a sogra e a cunhada do reverendo Tanimoto, viu o clarão e ouviu uma tremenda explosão; separavam-no de Hiroshima mais de 30 quilómetros, mas o barulho foi maior do que quando os B-29 atingiram Iuakuni, situada apenas a oito quilómetros)»…

«(…) De cima de uma pequena elevação, o reverendo Tanimoto ficou perplexo com o que viu. Não só uma parte de Koi [nos subúrbios], como pensara, mas tudo o que conseguia vislumbrar de Hiroshima através da atmosfera nublada, exalava um miasma espesso e profundamente desagradável. Nuvens de fumo começavam a elevar-se por entre a poeira um pouco por todo o lado. O reverendo Tanimoto tentou perceber como fora possível que tamanha destruição tivesse saído de um céu silencioso; mesmo poucos aviões, voando a grande altitude, teriam sido audíveis. As casas ali perto estavam a arder, e quando enormes gotas de água do tamanho de berlindes começaram a cair, chegou a pensar que eram provenientes das agulhetas dos bombeiros que combatiam as chamas. (De facto, tratava-se de gotas de humidade condensada provenientes da turbulenta coluna de poeira, de calor e fragmentos de fissão que já se elevara quilómetros no céu por cima de Hiroshima.)»…

«(…) O dr. Masakasu Fujii, médico, que só tinha vestida a roupa interior, via-se agora sujo e encharcado. A camisola interior estava toda rasgada, cheia do sangue que lhe saía de feridas profundas no queixo e nas costas. Nesse estado de confusão e desalinho caminhou até à ponte Kio, ao lado da qual se situara o seu hospital. A ponte continuava de pé. Via tudo baço sem os óculos, mas enxergava o suficiente para se espantar com o número de casas destruídas por todo o lado. Na ponte encontrou um amigo, um médico chamado Machii, e ainda estupefacto perguntou-lhe: “O que achas que foi isto?”. O dr. Machii respondeu-lhe: “Deve ter sido um ‘Molotoffano hanacago’”, um cesto de flores Molotov, o delicado nome japonês para “bread basket” ou cacho de bombas de dispersão automática.

«No início, o dr. Fujii conseguia ver apenas dois fogos, um que se estendia para o outro lado do rio a partir do sítio onde estivera o seu hospital, e outro bastante mais para sul. Contudo, ele e o amigo observavam algo que os intrigava e que, na qualidade de médicos, discutiam entre si: apesar de até ao momento haver poucos fogos, via-se gente ferida a atravessar a ponte num passo apressado, numa fila infindável de sofrimento, exibindo muitas pessoas queimaduras horríveis na cara e nos braços. “Como explicas isto?”, perguntou o dr Fujii. Até uma teoria era uma coisa reconfortante nesse dia e o dr. Machii agarrou-se à dele: “Talvez fosse um cesto de flores Molotov”»…

«(…) Nas vésperas do 1º aniversário do bombardeamento, o reverendo Kiioshi Tanimoto escreveu, numa carta a um americano, palavras a exprimir o sentimento com que os sobreviventes tinham enfrentado uma provação terrível: "Que cena dilacerante a da primeira noite! Cerca da meia-noite atraquei na margem do rio. Havia tanta gente ferida deitada no chão que abri caminho saltando por cima deles. Repetindo 'desculpem', fui avançando com uma vasilha de água na mão, distribuindo-a por cada um deles. Erguiam lentamente o corpo e aceitavam a caneca com uma vénia, bebendo silenciosamente; depois, despejando qualquer sobra, devolviam a caneca exprimindo calorosamente o seu agradecimento, e um até disse: 'Não pude socorrer a minha irmã, que ficou soterrada nos escombros da casa, porque tive de acorrer à minha mãe, que tinha uma ferida profunda num olho; a nossa casa pegou fogo e mal conseguimos escapar. Ouça, perdi a minha casa, a minha família, e acabei por ficar gravemente ferido. Mas agora vou a dedicar o tempo que me resta para acabar a guerra a bem do nosso país'. Era esta a promessa que formulavam, inclusive mulheres e crianças. Esgotado como estava, deitei-me junto deles, mas não consegui dormir. Na manhã seguinte reparei que estavam mortos muitos dos homens e mulheres a quem dera água na noite anterior. Mas, para grande espanto meu, nunca ouvi ninguém gritar com dores, apesar de se encontrarem em profundo sofrimento. Morreram em silêncio, sem rancor, cerrando os dentes para poderem aguentar. Tudo pelo país!"»…

«(…) Logo que puderam, os cientistas chegaram à cidade aos magotes. Alguns calcularam a força que fora necessária para deslocar pedras tumulares de mármore nos cemitérios, para virar 22 das 47 carruagens estacionadas nos cais da estação ferroviária de Hiroshima, para levantar e mover o pavimento de betão numa das pontes e para provocar outros feitos dignos de registo, concluindo que a pressão exercida pela explosão variou ente 5,3 e 8 toneladas por quilómetro quadrado. Outros descobriram que a mica, cujo ponto de fusão é de 900 graus Celsius, derretera nas pedras tumulares de granito a uma distância de 345 metros do centro; que os postes de telefone feitos de ‘Cryptomeria japonica’, cuja temperatura de carbonização é de 240 graus Celsius, ficaram carbonizados a quatro quilómetros do centro e que a superfície das telhas de barro cinzento do tipo usado em Hiroshima, cujo ponto de fusão é de 1300 graus Celsius, se dissolvera a 550 metros do centro. Depois de terem examinado outras cinzas e fragmentos fundidos relevantes, concluíram que o calor libertado pela bomba no centro junto ao solo devia ter atingido os 6000 graus Celsius. E a partir de ulteriores medições de radiação, que implicaram, além de outros passos, a raspagem de fragmentos de fissão em caleiras e em algerozes tão longe quanto o subúrbio de Takasu, a três quilómetros do centro, ficaram a conhecer factos muito mais importantes acerca da natureza da bomba. O Quartel-General do general MacArthur censurava sistematicamente qualquer referência à bomba nas publicações científicas japonesas, mas não foi preciso muito tempo para que o resultado dos cálculos dos cientistas fosse do conhecimento comum entre físicos, médicos, químicos, professores e jornalistas japoneses e, sem dúvida, entre os políticos e militares ainda em circulação. Muito antes da divulgação pública aos norte-americanos, já a maioria dos cientistas e de muitos não cientistas do Japão sabia – a partir dos cálculos dos físicos nucleares japoneses – que uma bomba de urânio explodira em Hiroshima e outra mais potente, de plutónio, em Nagasaki. Sabiam ainda que em teoria era possível desenvolver uma bomba dez ou vinte vezes mais potente»…

(Todas as citações e excertos tirados do livro «HIROSHIMA», do jornalista e escritor JOHN HERSEY (1914-1993), publicado em Portugal pela ANTÍGONA, em 1997, com tradução de Fernando Gonçalves, revisão e anexos de Júlio Henriques) 

Eça de Queirós - O Conde e os pobres

 * Eça de Queirós

«Já então revelava o seu gosto pelo luxo, pelas largas habitações tapetadas, pelo serviço harmonico de lacaios disciplinados. A pobreza e os seus aspectos era-lhe odiosa. Quanta vez, mais tarde, quando elle subia o Chiado pelo meu braço, eu me vi forçado a afastar com dureza os pobres, que á porta do Baltresqui, ou da Casa Havaneza, vinham, sob o pretexto de filhos com fome ou de membros aleijados, reclamar esmola; o Conde, se os via muito perto, «ficava todo o dia enjoado». Todavia a sua caridade é bem conhecida, e o Asylo de S.Christovam, a que em parte deveu o seu titulo, ahi está como um attestado glorioso da sua magnanimidade.

Além d'isso, elle reconhecia que a caridade era a melhor instituição do Estado. Quanto ao pauperismo, tinha-o como uma fatalidade social: fôssem quaes fôssem as reformas sociais, dizia, haveria sempre pobres e ricos: a fortuna pública devia estar naturalmente toda nas mãos d'uma classe, da classe illustrada, educada, bem nascida. Só d'este modo se podem manter os Estados, formar as grandes industrias, ter uma classe dirigente forte, por possuir o ouro e ser a base da ordem social.

Isto fazia necessariamente que parte da população «tiritasse de frio e rabeasse de fome». Era certamente lamentavel, e elle, com o seu grande e vasto coração que palpitava a todo o soffrimento, lamentava-o. Mas a essa classe devia ser dada a esmola com methodo e discernimento: e ao Estado pertencia organizar a esmola. Porque o Conde censurava muito a caridade privada, sentimental, toda de expontaneidade. A caridade devia ser disciplinada, e, por amor dos desprotegidos, regulamentada: por isso queria o Asylo, o Recolhimento dos Desvalidos, onde os pobres, tendo provado com bons documentos a sua miseria, tendo apresentado bons attestados de moralidade, recebessem do Estado, sob a superintendência de homens praticos e despidos de vãs piedades, um tecto contra a chuva e um caldo contra a fome. O pobre devia viver alli, separado, isolado da sociedade, e não ser admittido a vir perturbar, com a expressão da sua face magra e com a narração exagerada das suas necessidades, as ruas da cidade. «Isole-se o pobre!» dizia elle um dia na Camara dos Deputados, synthetizando o seu magnífico projecto para a creação dos Recolhimentos do Trabalho. O Estado forneceria grandes casarões, com cellas providas d'uma enxerga, onde seriam acolhidos os miseraveis. Para conseguir a admissão, deveriam provar serem de maior edade, haverem cumprido os seus deveres religiosos, não terem sido condemnados pelos tribunaes (isto para evitar que operarios d'ideias subversivas que, pela grève e pelo deboche, tramam a destruição do Estado, viessem, em dias de miseria, pedir a esse mesmo Estado que os recolhesse). Deveriam ainda provar a sobriedade dos seus costumes, nunca terem vivido amancebados nem possuírem o hábito de praguejar e blasphemar. Reconhecidas estas qualidades elevadas com documentos dos parochos, dos regedores, etc., seria dada a cada miserável uma cella e uma ração de caldo igual á que têm os presos.

Mas, dir-se-ha, o Estado, então sustenta-os de graça? Não, — poderia exclamar triunphantemente o Conde, mostrando as paginas admiraveis do seu regulamento, em que se estabelecia, com um profundo sentimento dos deveres do cidadão para com a cidade, que todo o pobre admittido seria forçado a uma considerável somma de trabalho, segundo as suas aptidões. O mais útil paragrapho, a meu ver, é aquele que determina que grupos de pobres sejam forçados a calçar as ruas, collocar as canalizações de gaz, trabalhar em monumentos publicos, etc. Taes serviços, todos em favor da Camara Municipal, obrigá-la-ia a concorrer para a despesa d'esta instituição, alliviando assim o Estado d'uma grande parte dos gastos.

Uma vez admittidos, os recolhidos perderiam o direito de sahir — a não ser que provassem que iriam d'alli ser empregados, de tal sorte que não lhes fôsse possivel recahir nos acasos da miseria.»


O Conde d’Abranhos – Notas Biográficas de Z. Zagalo_Eça de Queiroz_1925 (póstumo)