Revisitar Torga entre um ano e o seguinte
Até hoje, a humanidade ainda não criou nenhuma associação de angustiados. Nem podia.
Porque, no fundo, a angústia é íntima percepção da radical incomunicabilidade.
(Miguel Torga, 1907–1995)
Hoje, no que resta de 2015, volto a Miguel Torga. Num regresso à sua pena apurada nos anos oitenta. Nestas vésperas de Ano Novo, submergido na primazia da puerilidade e dos desejos por atacado, prefiro deixar-me envolver pela limpidez da razão e pela translucidez do olhar sobre o mundo de Torga. E, em jeito de paradoxo epistemológico, sossego o meu espírito através do seu desassossego. O autor dos “Diários” era uma alma poliédrica, simultaneamente rejubilante e amarga. De um pungente e inquietante sentido da terra, ora a descarnar a alma, reflectida e demoradamente, ora em itinerário de implacável e amargurada questionação através do seu cinzel granítico.
Torga sempre fez da autenticidade — esse bem notoriamente escasso e em vias de desaparecer — o seu fundamento para comunicar e para valorizar a eticidade da sua inegociável liberdade ontológica. Com sofrimento: “Sim, fui infeliz porque tive a sina de ser autêntico”. Ou, através de um aparente paradoxismo, “infelizmente sou uma desconsolação humana. Só presto para ser livre”.
Retiro do Diário XIV (1982–1986) o transbordante actualismo da sua palavra. Citando-o e deixando a quem ler este texto espaço para uma reflexão sobre a excelência, intemporalidade e profundidade do nosso escritor mais Nobel do que muitos laureados.
Sobre o tempo da vida (e a vida no tempo), escreve que “o futuro é concebido como uma síntese dialéctica da tradição e da invenção” para se definir como “sim, sou um nó de contradições: mas que seria de mim se o desatasse? Se, em vez de uma unidade na diversidade, fosse uma diversidade sem unidade?”.
A propósito do património da memória, sobre que reflecte com sadia obsessão, escreve que “ter memória é construir imediatamente um celeiro” para, de seguida, afirmar que “a memória é a faculdade mais precária que temos. E, no entanto, é só nela que o pretérito joga o seu futuro”. Com fundamentada ironia fala-nos, também, da falência memorial — hoje tão presente — para nos dizer que“o esquecimento é o único espaço onde os sucessos se eternizam”.
À questão do envelhecimento, hoje glosado com a adjectivação tecnocrática de “activo”, Torga prefere a seriedade da lucidez: “a velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez” ou, ainda,“ficamos velhos e na boca o gosto de ser mudos”. Lucidez que ele alia permanentemente à ideia construtiva e regeneradora da dúvida porque “o meu drama foi viver a vida a duvidar sempre de mim”, com “medo do abismo aberto pela nossa própria lucidez”.
Sobre o questionamento iluminado por uma incorruptível seriedade intelectual, lega-nos o seu pensamento sobre o labirinto misterioso da transcendência:“Deus: o pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer”, para concluir que “no fundo, é do meu velho problema religioso que se trata. Nunca lhe dei uma solução capaz. Em vez de ser um crente adulto confiado, sou um temente infantil desconfiado”. E deixa-nos (deixa-me, enquanto crente) um aviso: “também no mundo do sagrado há rotina e cansaço”. Por isso, Francisco é hoje um protagonista da esperança renovadora.
Neste breve percurso torguiano, ao mesmo tempo que deparamos com as agora omnipresentes técnicas de “marketing” na profusão de autores, livros e livrinhos, não resisto a citar algumas asserções sobre o próprio acto criador da escrita (“escrevo para que me leiam; não gosto, porém, de me ver lido”). Reflecte ele, em dois dos seus mais expressivos e belos pensamentos: “Um escritor, se é autêntico, se é fiel ao temperamento, varia de caneta mas não varia de tinta. Em novo ou em velho escreve com o próprio sangue. E resigno-me à ideia de ver o meu hemograma em cada página que me sai das mãos.” Ou de uma forma ainda mais teluriana, “eu sou um homem de impressões digitais, das mãos aos pés. O sulco do arado é tão impressivo para mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro”. Por outro lado, a sua frontalidade, não isenta de acidez, reflecte-se ao dizer que “A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor”.
Seja-me permitido terminar este post com uma outra confissão de Miguel Torga: “Quando não trabalho sinto-me em pecado mortal”. Como eu o compreendo!
http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/12/30/revisitar-torga-entre-um-ano-e-o-seguinte/
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