domingo, 27 de dezembro de 2015

Reinaldo Serrano - Dickens, obviamente



Dickens, obviamente

REINALDO SERRANO  

7 de fevereiro de 1812, 9 de junho de 1870; as duas datas assinalam o princípio e o fim da vida que foi a vida de Charles John Huffam Dickens, considerado por muitos, a par do inevitável Shakespeare, o maior autor de sempre de língua inglesa. Quem assina esta crónica igualmente o subscreve, fascinado que foi, que é e será pela obra extraordinária de alguém que contribuiu de forma decisiva para a nobre arte da narrativa literária.

Querem exemplos? Ok: “The Pickwic Papers” (“Os Cadernos de Pickwick”), “Oliver Twist”, “Nicholas Nickleby”, “David Copperfield”, “Hard Times” (“Tempos Difíceis”), “Great Expectations” (“Grandes Esperanças”), “The Old Curiosity Shop” (“A Loja de Antiguidades”). A lista seria ainda mais exaustiva mas não menos nobre numa obra essencialmente publicada “a prestações”, ou seja, em folhetins de periodicidade semanal ou mensal, sobretudo jornais, numa Londres emergente da Revolução Industrial. Não por acaso, os romances de Dickens refletem inúmeros retratos da condição social (ou da falta dela) da época, explorando e criticando a dura estratificação de uma sociedade que trata os pobres como infra-humanos e reverencia os ricos como se estes proviessem do próprio Céu. Claro que nos dias de hoje é fácil classificar o universo dickensiano como excessivamente melodramático mas, à luz da sua época, não será mais que um retrato fiel (ainda que algo poético) de um tempo complexo, duro e difícil.

Fora da lista acima elencada deixei propositadamente “A Christmas Carol” (“Um Conto de Natal” ou “Cântico de Natal”), eventualmente o mais conhecido romance de Charles Dickens, e seguramente o mais adaptado para diversas plataformas: cinema, televisão, teatro, banda desenhada e cinema de animação. Detenhamo-nos neste último por alguns instantes para lembrar (ou dar a conhecer) uma versão particularmente feliz do mais célebre dos contos; data de 2009 e foi realizada pelo experiente e mui popular Robert Zemeckis. Feita para a Disney, a versão em desenho animado computorizado conta com um elenco de luxo: Jim Carrey (que dá voz a múltiplas personagens), Gary Oldman, Colin Firth, Cary Elwes e Bob Hoskins, entre outros, “ilustram” de maneira mais que cabal as personagens saídas da pena de Charles Dickens no distante ano de 1843.

A animação é fabulosa, a bonecada retrata a fisionomia dos próprios atores que lhes dão vida, e a realização (auxiliada pela eficácia da tecnologia ao seu serviço) garante cerca de hora e meia de entretenimento ao mais alto nível. Além do mais, aqui se saúda a notável fidelização ao texto original, seja na narrativa, seja nos diálogos, seja até na caracterização das personagens (sobretudo os fantamas dos diferentes natais), bastante fiéis às descrições e ilustrações da obra original. Transversal à odiosa mas útil expressão de “miúdos e graúdos”, esta versão animada de “A Christmas Carol” promete e assegura um ótimo serão familiar.

Para os mais conservadores e para os eventualmente mais curiosos de objetos cinéfilos, cumpro o dever de informar que há uma outra versão deste Conto de Natal que, vá lá perceber-se porquê, não tem o merecido destaque de entre as muitas versões disponíveis. Realizada em 1951 pelo norte-irlandês Brian Desmond Hurst, a longa-metragem tem nos desempenhos sóbrios e seguros de Sir Alastair Sim (no papel de Ebenezer Scrooge) e demais elenco um dos seus grandes trunfos. A reconstituição de época, a cenografia e a fotografia são outros valores a merecer destaque, além da proximidade pura ao texto original de Dickens. O facto de ser a preto e branco beneficia em muito a atmosfera, real e fantasmagórica, desta obra de redenção, a que o próprio Charles Dickens classificava como romance sentimental.

Por nele falar, nada como lê-lo de fio a pavio e mergulhar com gosto no universo de um ator que criou uma escrita muito própria e apropriada a todos os tipos de público. Inerente à época que atravessamos, “Um Conto de Natal” é, muito apropriadamente, uma excelente porta de entrada para o mundo londrino de Dickens, recheado de personagens adoráveis e odiosas, de histórias em que o acaso ou as circunstâncias da vida têm muito mais força que quaisquer teorias sobre lutas de classes ou paradoxos resultantes da praxis política.

Uma última palavra para referir a muito recente edição (já deste mês de dezembro) de um outro importante romance de Dickens: “O Amigo Comum” (“Our Mutual Friend”) é o último romance do autor (1865) e um dos mais complexos deste mestre do realismo inglês, nele se refletindo a perfídia do materialismo em detrimento dos valores morais, que o autor ressalva em cada uma das suas obras. Estreado há pouco nos escaparates é, quem sabe?, uma excelente sugestão para um presente de Natal. Feliz, como se querem os dias...

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-12-27-Dickens-obviamente

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