quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

sonetos de antero de quental

 * Antero de Quental

Metempsicose

Ardentes filhas do prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
do que fostes, em vós se agita e freme?

Noutra vida e outra esfera, onde geme
outro vento, e se acende um outro dia,
que corpo tinheis? Que matéria fria  
vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
arrastando, leoas ou panteras,
de dentadas d'amor um corpo exangue...

Mordei pois esta carne palpitante,
feras feitas de gaze flutuante...
Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue!



Na Mão de Deus

Na mão de Deus, na sua mão direita,
descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da ilusão
desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
a ignorância infantil, despojo vão,
depus do ideal e da paixão
a forma transitória e imperfeita.

Como criança em lôbrega jornada,
que a mãe leva ao colo agasalhada
e atravessa, sorrindo vagamente,

selvas, mares, areias do deserto,
– Dorme teu sono, coração liberto.
Dorme na mão de Deus eternamente!



O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante
por desertos, por sóis, por noite escura.
paladino do amor, busco anelante,
o palácio encantado da Ventura.

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que de súbito o avisto, fulgurante
na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
- Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
silêncio e escuridão - nada mais!



À Virgem Santíssima

Num sonho todo feito de incerteza,
de noturna e indizível ansiedade,
é que eu vi teu olhar de piedade
e (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho de beleza,
nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
feita só de perdão, só de ternura
e da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

 http://www.mauxhomepage.net/desenterrandoversos/desenterrandoversos/anterodequental.htm

Sem comentários: