18 de Dezembro de 2015, 11:20
Por Francisco Louçã
Um senhor de meia idade nos estremecimentos do mundo
Há um senhor que há anos que faz a rádio mais enérgica e mais culta, a mais inventiva e não raro a mais brincalhona. Chama-se Fernando Alves e ocupa a TSF com os seus “Sinais”. Atrevido, leva agora a um teatro, o D. Maria II em Lisboa, um flash destas suas crónicas que todos os dias percorrem “os mapas do estremecimento do mundo”. Acompanhado ao piano e às imagens, ele conta-nos as suas prosas, só para nós (e termina amanhã). É arte efémera e suponho que ele não quereria nem diferente nem mais.
Uma vez, ele chamou-me “senhor de meia idade”, ao apresentar um livro sobre aventuras e desventuras em que participei. Confesso que então me surpreendeu o termo, não por não ser obviamente verdade, mas porque ignorei sempre o assunto e me disfarço para mim próprio, porventura como tantos, fingindo que o passar dos dias só promete somar mais dias. Matreiramente, suspeito que o Fernando será igualmente um fintador dos anos, sempre desejando beneficiar deles com mais leituras, mais gente, mais momentos ternos, mesmo aceitando o cortejo de mais desilusões.
Mas, com o passar do tempo, fui percebendo o carinho e a indefinição que esse “senhor de meia idade” queria chamar, e só lhe posso retribuir agora. Muitas crónicas, muitos dias, muitas madrugadas, muitos jornais em cima da mesa, muita mineração de “palavras tácteis”, muito gosto pelas frases angulosas, muitas surpresas nos contos, nas personagens, muito tempo depois, esta “meia idade” é um atrevimento. Para o Fernando, é mesmo um atrevimento.
As suas crónicas são luzinhas nas manhãs, tão poluídos que andam os dias com guerras na Síria e metralhadoras no Bataclan, mas também anónimos nevoeiros, trânsito compacto, publicidades estrepitosas, tristezas avulsas, as barcas do amor a naufragarem sem destino na praia. Os Sinais, essas luzinhas, descobrem o imprevisto porque sabem que o previsto não devia existir. Descobrem uma nota manuscrita na montra de uma livraria fechada para férias, descobrem um namoro em Garcia Márquez, uma figura de Virgílio Ferreira, uma frase de Clarice Lispector, um ouvido montanheiro de quem suspeita de um insulto vulgar, rejeitam a pilhagem das palavras, lembram-se de Agostinho da Silva, rei da ambiguidade mágica, notam a “verdade” ou o “compromisso” esvaídos na boca da banalização, detestam a “implementação” e os políticos e treinadores de futebol “focados” na sua missão. Afirmar um gosto e um gosto crítico, irredutível, é, em tempos de superficialidade, um acto simplesmente revolucionário.
Só um senhor de meia idade nos havia de mostrar estes cromos de colecção privada, este défice de significados a que nos acostumamos, esta língua assaltada, esta galeria de livros, estes sons que gostavam de ser artesanais e vindos da manufactura do gosto.
A rádio, porque é a palavra dita, é o melhor lugar para dizer estes sinais. E a voz deste senhor de meia idade, que todos os dias inventa o seu dia nestas prosas, é o lugar para a rádio se sentar e se fazer ouvir.
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