quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Domingos Lobo O vidro das palavras rebeldes Viagem breve pela poesia e prosa de Maria Eugénia Cunhal

  • Domingos Lobo 

O vidro das palavras rebeldes
Viagem breve pela poesia e prosa
de Maria Eugénia Cunhal

A arte narrativa de Maria Eugénia Cunhal, tal como a sua poesia, entronca num dado que nos parece fundamental: o de ser uma escrita que assumidamente se constrói a partir de um olhar solidário e inquieto, partindo do eu individual para onós colectivo. Há na escrita da autora, sobretudo no livro de contos Relva Verde para Cláudio, um atentíssimo olhar sobre o mundo que nos rodeia; sobre as casas, os lugares, os objectos, as condições sociais das gentes que habitam esse universo referencial. Elementos discursivos, modos, forma, conteúdos, que poderíamos acantonar, por comodidade teórica, no mais conseguido do nosso neo-realismo, aquele que conjuga, segundo a teorização de Mando Martins, a Arte literária com o compromisso social, mas que a inventiva de Eugénia Cunhal arrisca por caminhos nem sempre moldados aos códigos fenomenológicos do movimento, mas passíveis de integração nas suas coordenadas fundamentais.

Lenine nos textos Sobre Literatura e Arte refere e defende a ideia da função elevada que a literatura deve ter nas sociedades progressistas. Para tanto, além do valor estético das obras, necessário se torna que o objecto literário se assuma como «protesto contra a injustiça social», nela transparecendo, com clareza, «uma imagem exacta das relações sociais»1.

Logo nos primeiros dois contos do livro Relva Verde Para Cláudio, a autora encena as determinantes que constituem o corpo orgânico da sua escrita: a denúncia das injustiças sociais, a análise arguta e dialéctica das relações entre os humilhados e aqueles que detêm o poder e a fortuna sem, no entanto, reduzir o fulcro central da diegese a um discurso moralista ou de panfletária assunção. Antes se constrói, conto a conto, através de um sereno labor de contar, com a agilidade lexical que lhe descobrimos nos poemas de As Mãos e os Gestos, com pleno domínio dos tempos e da construção metafórica, com parcimónia de processos no poético que percorre os sensíveis interiores desta fala.

A clarividente preocupação pelo social está patente nesse olhar em plongé, trespassado de ternura, em redor dos rostos que pontuam Relva Verde para Cláudio: no rosto do menino que desenha casas, tectos com chaminés e tudo; na senhora que chupa rebuçados até não sobrar nada de doce nos papéis que os envolvem, alheia ao desejo espelhado nos olhos do menino sujo; na menina que salta para o outro lado sem saber que afinal existe um fosso invisível, feito de preconceitos e convencimentos, a impedir-lhe brincar com o «menino de olhos verdes». O olhar dúctil e atento do poeta a viajar pelo microcosmo que habitamos, mesmo que esse universo se circunscreva ao espaço de um cacilheiro em viagem breve entre as duas margens do Tejo.

A escrita de Maria Eugénia Cunhal penetra os territórios das nossas inquietações: descobre rostos, sentimentos, situações, subterrâneos dramas e transmite-nos esse mundo com a simplicidade e a perspicácia de quem fixa a vida no momento exacto e nos dá a ver o oculto, o obscuro coração das sombras para que, colectivamente, nos sintamos socialmente responsáveis; para que nos possamos indignar com as injustiças que esse olhar denuncia.

No conto Ladeira, a autora debruça-se sobre a vida de uma operária que regressa a casa ao fim do seu ciclo de préstimo, quando a mais-valia do seu labor deixou de compensar o patrão. Foi substituída na função por outra operária mais nova e ágil, mais rentável. É o ciclo rapace e desumano do capitalismo a inscrever-se nos sulcos fundos da pele gasta de uma mulher que um dia, como todos nós, teve sonhos, risos e sol a entrar pela janela estreita da casa onde, derrotada e vazia de vida e do sentido dela, regressa para o nada, o vazio, ou para gastar, sem saber como, o tempo que agora lhe vai sobrar.

A escrita em Relva Verde para Cláudio é, na sua aparente simplificação oficinal, inovadora, participando dos modos estruturais do discurso neo-realista. Escrita de uma singular beleza, contida e unívoca no plano político, que neste livro é a um tempo posição ética, estética e moral. Maria Eugénia Cunhal atinge, nestes textos, a plena maturidade de escrita, a conjunção dos seus signos envolventes, capacidade de ligação afectiva com o leitor, de o tornar cúmplice desse profético olhar sobre o real: expressão de inquietude e contestação. O que, salvaguardando diferenças temporais e realidades sociais e geográficas, Lénine entendia dever ser a função social, útil, da Literatura. 

Dar um Sentido ao Dia 
O que é de imediato percepcionável na escrita de Maria Eugénia Cunhal, é a alegria de viver, de sentir, de sentidos, que nela transparece; uma alegria tocante e solar, carregada de vontade de futuro, plenamente inscrita nos versos de Silêncio de Vidro.

Na poesia de Eugénia Cunhal (Silêncio de Vidro, de 1962, reeditado em 2005, e As Mãos e os Gestos, de 2000) há, sobretudo, o ímpeto da fala, a urgência de dizer o amor e a alegria de o dizer: a solidariedade com os outros, um modo, quase no limite do pulsar do verbo, de sair dos ossos, emergir do nosso próprio, estreito espaço para chegar ao outro, mesmo quando o poeta intui, como Philip Roth, que ninguém sabe nada de si mesmo, que a escrita é o espelho poliédrico em que permanentemente nos buscamos.

A poética da autora de Escrita de Esferográfica (2008), é feliz porque o amor, apesar dos pesares, acontece (existe em entrega, em absoluta e em recusa, também), mas é igualmente empenhada, crítica, inventariando o real quotidiano. Se existem diferentes modos de dizer entre Silêncio de Vidro e As Mãos e Os Gestos, é apenas de maturidade, dado que a iniciática e circular abordagem dos afectos, se mantém e é comum a ambos. Há nestes dois livros uma visão do mundo e da essência existencial que os torna referenciáveis de um tempo e de um jeito de entender a vida, os amigos, os perigos de estar vivo. Em ambos a poesia flui sem enigmas, é límpida ressonância das palavras, entrecortada por uma musicalidade quase cantável, mesmo nas modulações inquietas e nos estremecimentos das injustiças que denuncia.

A poesia de Maria Eugénia Cunhal situa-se, no discurso interior e na ossatura vocabular, perto de associações semânticas e formais da geração de Poesia 61, embora na raiz matricial lhe descubramos poemas herdeiros do nosso melhor neo-realismo: Capitão, aqui estou.// Comigo a bagagem:/No saco de marujo trago um naco de pão/Dentro do peito a ânsia da viagem.

Uma escrita original e fecunda, assumindo vertentes que humanizam a palavra e colocam o homem, de novo, no cerne do discurso poético, dando «um sentido ao dia». Ou seja, à Vida. 

Nota: Esta evocação da obra literária de Maria Eugénia Cunhal, não deve ser entendida como um gesto circunstancial, que sempre recusei, mas como acto de linear justiça, dado o singular espaço que essa obra, pelo seu rigor formal, o humano que reflecte, a expressiva sensibilidade que a constrói deverá, de pleno direito, ocupar na literatura portuguesa.

Para que o silêncio não amordace, uma vez mais, as palavras rebeldes. 

1 Literatura, política, ideologia, de Claude Prévost – Moraes Editores

http://avante.pt/pt/2196/argumentos/138460/


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