TERÇA-FEIRA, 24 DE OUTUBRO DE 2017
Perto do fogo
Seriam quase oito da noite quando o Intercidades da Beira Alta ficou retido em Santa Comba, depois de deixar para trás uma coluna de fumo à saída da Guarda e de ter passado na zona de Seia, onde apesar da escuridão se podiam avistar uns dez focos de incêndio distintos. Dos restantes fogos do país sabia-se pelas notícias, com destaque para os dos distritos de Leiria, Aveiro e Porto. Cerca de quinhentas ignições num só dia, um dia de outono.
Saindo do comboio, do lado direito, viam-se agora três a quatro clarões, aparentemente situados por detrás da cidade. À frente outros dois, mais distantes, sugerindo que o fogo andaria também perto de Mortágua. Do lado esquerdo da estação, a uma distância maior, via-se o clarão do incêndio que - saber-se-ia mais tarde - lavrava na zona de Penacova. O cheiro a fumo era ainda relativamente ténue e difuso, permitindo supor que bastaria esperar duas ou três horas para que o comboio retomasse o seu curso. Apesar da hora, o ar era quente e, de quando em quando, chegava em golfadas. As pessoas foram saindo das composições, preferindo vaguear na plataforma ou aproveitar para avisar alguém do atraso certo que o comboio iria ter, apesar de uma das três redes de telemóvel estar inoperacional e outra funcionar de modo intermitente.
Com o passar do tempo a informação tornou-se cada vez mais escassa, avolumando as dúvidas sobre o momento em que seria possível prosseguir viagem e se a mesma se faria de comboio ou por ligação de autocarro a outra estação mais à frente. Embora preocupadas e perplexas com os vários focos de incêndio (em particular com a linha contínua de fogo que agora se desenhava por detrás de uma Santa Comba às escuras) e a situação absolutamente anómala do país naquele 15 de outubro (inúmeros incêndios ativos, numa noite que parecia de agosto), as pessoas estavam calmas. Quando falha a iluminação pública, afetando a estação e o aglomerado de casas em redor, os clarões aumentam de intensidade, tornando agora mais fácil imaginar a «cegueira» provocada pelas chamas a quem delas estivesse próximo, em combate noturno. Seriam já dez da noite quando se ouve um motor no céu e surgem as luzes de um avião a afastar-se, assinalando que a partir daqui o combate aéreo deixava de ser possível.
O ar foi ficando progressivamente mais denso, com o fumo já bem visível e a chegar por vezes em baforadas, impulsionadas por um vento que mudava constantemente de direção e intensidade. Com esta oscilação errática de um vento quente e seco, alguns dos focos de incêndio pareciam esmorecer por momentos, para depois recrudescer com redobrada força. Apesar da distância, ouvia-se de quando em quando o crepitar do fogo, intercalado por explosões, com uma intensidade maior do que à partida se poderia supor. O ar foi-se tornando cada vez menos respirável, não só pelo aumento do fumo, mas também pelo efeito de saturação. E é então que se tem melhor noção de uma segunda dificuldade do combate direto em circunstâncias como esta: para além das chamas e do calor, impulsionados pelo vento, também o fumo pode tornar impossível a aproximação a um fogo, limitando as possibilidades de o conter. Isso era cada vez mais claro: estava-se perante incêndios praticamente indomáveis, ninguém se surpreendendo no fundo que os bombeiros, distribuídos pelas múltiplas frentes de fogo e insaciavelmente escassos face a estas condições, não tivessem ainda acorrido àquele lugar.
Seriam já duas da manhã quando um dos focos de incêndio se aproxima, após atravessar o IP3 e galgar a vertente arborizada entre o rio e a estação. Muito mais perto, o fogo tornava-se agora verdadeiramente avassalador, ameaçando as primeiras casas. Perante o perigo iminente, verificou-se se ainda estaria alguém dentro delas, tendo sido possível convencer as pessoas (algumas a dormir, não se tendo apercebido do evoluir da situação), a abandoná-las. Passou tudo a desenvolver-se de uma forma demasiado rápida e cada vez mais violenta e incontrolável, tornando inútil qualquer esforço para deter as chamas. Com a aproximação do fogo, começam a cair partículas incandescentes, como se de flocos de neve se tratasse, atiradas pelo vento em todas as direções. Impressionava sobretudo o facto de estas partículas (cascas de árvore, paus e folhas) não se apagarem durante o seu voo incerto, caindo ainda a arder a centenas de metros. A partir daí, a génese de novos focos de incêndio era apenas uma questão de sorte, percebendo-se melhor como surgiram cerca de quinhentas ignições desse dia e porque razão havia tantos focos de incêndio em redor. Pelas três da manhã, chega um autocarro para evacuar as pessoas, já muito assustadas, para o Centro Cultural de Santa Comba, num percurso corajosamente repetido por entre o fumo, bermas a arder e troços de estrada por vezes demasiado estreitos e sinuosos.
Assisti e participei no combate a vários incêndios que deflagravam nas proximidades da minha aldeia, com pontualidade estival (na maior parte dos casos em agosto), há muitos anos atrás. Lembrava-me ainda do calor que se sente quando nos aproximamos das chamas, da irritação causada pelo fumo inalado e da sensação de pisar chão quente. Mas nada, nada se assemelha a estes incêndios e à atmosfera que os alimenta. De facto, sugerir que «nada mudou» (Assunção Cristas), ou que «calor e vento sempre houve» (Hugo Soares), significa não ter ainda percebido nada sobre as alterações que estão a ocorrer (ou, tendo percebido, significa algo bem pior que isso).
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