sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Carla Romualdo - Equívocos

Equívocos

No degrau onde um homem costuma dormir estava uma embalagem de donuts de morango. Não havia sinal do homem, mas estavam lá os cartões que lhe servem de colchão, agora ao alto, encostados à parede. No chão, a embalagem de plástico, fechada, com três donuts de um estridente cor-de-rosa E128, intactos. Faltava pouco para as nove da manhã. Os donuts eram de uma marca estranha, talvez saídos da loja de oportunidades da esquina, que vende produtos “de fora do nosso mercado”, como diz a gerente, e que vêm com rótulos em servo-croata e prazos de validade indecifráveis.
Quem os deixara ali? Podia ter sido uma compra disparatada, um desses impulsos de que é difícil não acabar arrependido. Podiam estar fora de prazo ou perto disso. Ou podiam ter sido comprados de propósito para oferecer ao homem que nunca pede esmola mas aceita o que lhe oferecem.
Apareceu, rua abaixo, uma mulher que conheço de vista e de quem me disseram que ajuda numa mercearia do bairro, acarreta caixas, sacos de batatas, e em troca dão-lhe arroz, latas de conservas, leite. É alta, sólida, com um andar masculino, ancas muito direitas e as pernas um tanto arqueadas. Vê os donuts e detém-se. Do outro lado da rua, vou subindo eu, vagarosa. A mulher vai apanhar os donuts, já sei que é isso que vai acontecer, mas estupidamente não afasto o olhar e ela sente-o, pelo canto do olho, vira o rosto para mim, envergonha-se e segue caminho, quase a correr, e de mãos vazias. Arrependo-me, mas de quê? De ter olhado.
À hora de almoço, quando desço a rua ensolarada, os donuts estão no mesmo sítio, uma massa pegajenta, ainda dentro do plástico.

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