São duas narrativas de formação de
Georges Simenon. Uma é autobiográfica. A outra é magnífica.
Os Três Crimes dos
Meus Amigos
4 estrelas
MÁRIO SANTOS
20 de Março
de 2018, 18:03
Foto
Simenon nunca terá conseguido
inteiramente (nem com a ajuda de André Gide) que o resgatassem ao nicho do
subgénero policial KEYSTONE/GETTY IMAGES
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Georges Simenon (1903-1989) foi um dos mais prolíficos escritores do século
XX. Só é comparável, sob esse aspecto, a Isaac Asimov, igualmente popular,
embora em outro subgénero narrativo. Contabilizados romances, novelas, contos e
outros escritos (mais ou menos autobiográficos ou jornalísticos), o belga
escreveu e fez publicar mais de meio milhar de textos. Diante de tão grande
produtividade, o recenseador — por mais imprudente e mais educado que seja no
gosto moderno pelos rankings — hesita, sentindo-se
desencorajado de emitir um daqueles juízos (por assim dizer) que tão úteis são
em badanas e contracapas: “o melhor romance…”, “a mais bela novela…”, etc. Eis,
portanto, a primeira virtude do escritor de Liège: desaconselha venais (e
banais) entusiasmos.
Autoria:Georges
Simenon
(Trad. Ângelo Ferreira de Sousa)
RelógioD’Água
(Trad. Ângelo Ferreira de Sousa)
RelógioD’Água
Autoria:Georges
Simenon
(Trad. Catarina Ferreira de Almeida)
Relógio D’Água
(Trad. Catarina Ferreira de Almeida)
Relógio D’Água
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Simenon foi também um dos escritores mais populares do século. Melhor:
Simenon foi também um dos escritores policiais mais populares do século, neste
particular sendo só comparável a Agatha Christie (que, aliás, terá lucrado
bastante mais escrevendo bastante menos). Embora os romances ou novelas e os
contos protagonizados por Maigret representem “apenas” cerca de um quinto da
produção escrita pelo autor, Simenon popularizou-se enquanto criador do
comissário. A glória poderá ter sido comercialmente proveitosa, mas acabou por
sobrepor-se equivocamente a toda a restante e imensa produção narrativa do
escritor, que nunca terá conseguido inteiramente (nem com a ajuda de André
Gide) que o resgatassem ao nicho do subgénero policial e o colocassem na
estante dos escritores tout court. E dos bons. Por alturas do
centenário do seu nascimento, houve quem, apontando dois ou três romances, o
emparelhasse retrospectivamente a Camus, dando-o, aliás, como mais merecedor do
Nobel do que o autor de O Estrangeiro. Mas é sabido que os
centenários são ocasiões propícias a reavaliações maximalistas. Como quer que
seja, Georges Simenon foi entretanto canonizado pela Pléiade, sendo oportuno
assinalar que, da trintena de romances e novelas reunidos nos três volumes até
agora publicados, apenas cinco têm Maigret como protagonista.
A editora Relógio D’Água tem vindo a publicar algumas obras de Simenon. As
mais recentes — e que estavam até agora inéditas em português, creio —
são Os Três Crimes dos Meus Amigos (1938) e O Santinho (1965).
Nenhuma delas é integrável no qualificativo ‘policial’, sendo que a primeira é,
no mínimo, de discutível filiação genológica. Embora originalmente tenha sido
publicado como se de uma obra de ficção romanesca se tratasse, o livro Os
Três Crimes dos Meus Amigos é, substancialmente, uma memória
descritiva dos anos de formação do autor em Liège, até à sua ida para Paris em
1922, e da década subsequente na capital francesa, até à condenação dos amigos
criminosos. Trata-se de uma crónica declaradamente autobiográfica, narrada por
Simenon-ele-mesmo. É claro que sempre poderemos questionar a exacta veracidade
deste episódio ou daquela circunstância, pois as fantasias da memória costumam
atraiçoar as mais bem intencionadas autobiografias, mas, no geral, personagens
e acontecimentos serão historicamente comprováveis. Assim, e por exemplo, a
marginal fauna romântico-decadente (prometidos artistas e poetas, “poseurs”,
jornalistas e outros arrivistas) que na segunda década do século XX fez a
glória do “Caque”, um antro boémio da provinciana Liège. Foi aí que o então
ainda adolescente Simenon conviveu com o jovem pintor suicida que nesta
narrativa identifica pudicamente como “o pequeno K…”, e foi aí que conheceu,
aliás, uma jovem artista que viria a ser a sua primeira mulher. Não se julgue,
porém, que o tom maior deste memorial é melancólico, ou trágico ou, sequer,
dramático. Pelo contrário, e não obstante o suicídio, o aburguesamento e a
confirmação posterior dos crimes anunciados no título, a digressão chega a ser
alegre, em boa medida por causa de dois trota-jornais aventureiros (um deles
também amante de livros e de impudicícias), retratados em tamanho e acções tão
consubstanciais ao meio jornalístico que, se não tivessem existido de verdade,
Simenon bem poderia tê-los inventado. Outros tempos, enfim. Felizmente, nos
jornais de hoje só entram pessoas sérias.
O Santinho é a biografia de um pintor
imaginário, cuja existência decorre inteiramente em Paris desde o final do
século XIX até ao início dos anos 60 do século seguinte. O livro está dividido
em duas partes, intituladas O Rapazinho da Rue Mouffetard e O
Rapazinho da Rue de l’Abbé-de-l’Épée. A primeira, na reconhecível moldura
do “romance de formação”, conta a infância do protagonista no seio de uma feliz
família disfuncional e pobre, capitaneada por uma mãe-coragem algo promíscua
que vende legumes e frutas na rua Mouffetard, cujo entorno pertencia então às
classes obreiras e populares de Paris e a alguns pequeno-burgueses (hoje
pertence, como se sabe, ao turismo de massas). Na segunda parte, concluída a
escola primária, o rapazinho vai trabalhar para o então grande mercado
abastecedor de Paris (Les Halles) e tornar-se-á um (famoso) pintor autodidacta.
A repetição, no título de ambas as partes (tratando a segunda, em boa medida,
da vida adulta do artista, até à sua velhice), da palavra “rapazinho” é uma boa
chave para a leitura do romance. O pessimismo existencial de Simenon cede,
aqui, sem grandiloquência, à banalidade do bem. A educação sentimental do nosso
herói foi violenta — viu a irmã ser estuprada por um irmão mais velho, foi
vítima de bullying na escola, etc. — mas, à violência íntima e
pessoal do mundo, ele opôs sempre uma espécie de alteridade indiferente. Alheio
a si mesmo, nem a posterior felicidade da pintura o corrompeu. Estrangeiro ao
bem e ao mal, o rapaz a quem na infância chamavam “santinho” parece ter vivido
toda a sua existência na graça de uma espécie de ímpia santidade: “’Qual é ao
certo o seu objectivo?’/‘Não sei.’ / Era a frase que ele pronunciara mais vezes
ao longo da sua vida e que continuava a repetir.”
Em ambos os livros, a acção é contada linearmente, sem enredos. Mas se, no
primeiro livro, a narração na primeira pessoa e o assunto autorizam o autor a
produzir uma ou outra inflexão retórica, no caso do segundo livro tudo é
narrado com objectividade e frieza. Sem contrabando de emoções. Um romance puro
e duro. Ou o inverso.
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