José Falcão, para além de ter sido das raras vozes que se
ergueram a favor dos revoltosos da Comuna de Paris, foi também um dos mais
obstinados divulgadores da ideia republicana. Este propósito de tornar
acessível ao povo a nova mensagem política sofria o obstáculo da elevadíssima
taxa de analfabetismo. No início do último quartel do século XIX mais de quatro
quintos da população portuguesa não sabia ler, escrever e contar. Os livros,
brochuras e jornais eram apenas lidos por uma minoria da burguesia culta,
concentrada sobretudo em Lisboa, no Porto e em Coimbra. O problema da instrução
pública esteve sempre presente nas preocupações dos evangelizadores
republicanos. Era necessário encontrar uma fórmula susceptível de levar às
massas populares os valores do republicanismo, apesar da calamitosa ignorância
que grassava em todo o país. Urgia proceder à elaboração de textos de
doutrinação política que fossem redigidos em linguagem muito simples e que
pudessem ser escutados por aqueles a quem a monarquia não tinha infundido os
benefícios do conhecimento.
Foi esse o objectivo de José Falcão, quando elaborou e fez imprimir a sua
memorável Cartilha do Povo. Foi uma obra que surgiu em 1884, uma vez mais
anónima, ilustrada com desenhos saídos da mão artística de António Augusto
Gonçalves. Impressa em papel modesto, para que os custos pudessem ser
facilmente suportados, esta Cartilha obedeceu também à directriz de ser
facilmente entendida por gente humilde, caldeada em trabalhos de invulgar
dureza e, até então, desprezada pelas regiões da governação. Para isso, o autor
praticará nela o método do diálogo. Os assuntos de interesse colectivo, aí
versados, são debatidos entre duas figuras, as quais encetam, com amena
bonomia, uma participada conversação. À figura mais douta, mais ciente dos
reais problemas da Grei, deu José Falcão o nome de João Portugal; à outra,
disposta a quebrar a escuridão da sua falta de informação e de cultura e que,
por isso, coloca questões e pede esclarecimentos, foi dado o nome de José
Povinho. Esta designação traz-nos imediatamente ao espírito o Zé Povinho das
famosas caricaturas de Rafael Bordalo Pinheiro, tais como elas haviam aparecido
em jornais de boa tiragem, como O António Maria, Pontos nos ii e A Paródia.
Essas abordagens eram, ao tempo, a mais perfeita síntese, em registo satírico,
da tipologia do português aldeão, bom mas boçal, submetido pacientemente às
cargas e derrotas com que os poderosos o albardavam. Pelo contrário, o José
Povinho da Cartilha do Povo, de José Falcão, é o ser humano humilde mas atento,
que deseja promover-se, que quer aprender e que aspira à construção de um
Portugal melhor e mais justo.
A Cartilha do Povo teve uma consagração clamorosa junto dos estratos mais
humildes da população. Dela se fizeram várias edições e teriam sido muitos os
republicanos que a quiseram divulgar junto dos menos esclarecidos. Aliás, o
modelo aqui adoptado teve similitudes com o Catecismo Republicano para uso do
Povo, redigido por Carrilho Videira e por Teixeira Bastos. Tanto José Falcão como
os responsáveis pelo Catecismo sabiam que os destinatários das suas mensagens
careciam da explicação circunstanciada de um conjunto de noções muito
elementares, similares à que os sacerdotes transmitiam aos seus pequenos
catecúmenos. Também os elementos do povo português eram encarados, com inteiro
realismo – mas também com evidente carinho – como crianças a quem tivessem de
ser ensinados os rudimentos de uma cidadania interiorizada e consciente. É isto
que explica as designações destes livrinhos: cartilha e catecismo, meio de
sublinhar, a partir do próprio título, a missão iniciática e patriótica a que
se davam estes propagandistas da “nova ideia”. Foi também por este caminho de
simplicidade expositiva que enveredou um outro republicano distinto, Consiglieri
Pedroso, quando organizou e deu aos prelos a sua Biblioteca Democrática.
É quase comovente a dádiva destes homens às camadas sociais mais desvalidas do
seu país. E é também isto que explica que o Partido Republicano tenha sido
referido como “o Partido do Povo”, enquanto principal factor da dignificação e
de evolução mental dos que lhe escutaram as directrizes doutrinais.
page revision: 8, last edited: 8 Feb 2010, 11:54 (2973 days ago)
FONTE:
http://triplov.com/Venda_das_Raparigas/Cartilha/index.htm
CARTILHA DO POVO: JOSÉ FALCÃO
Edição popular promovida pelos estudantes republicanos de Coimbra
Tipografia Minerva, Vila Nova de Famalicão, 1896
www.triplov.org . 12-10-2006
Agradecemos a Luis M. Mateus, presidente da associação República & Laicidade (http://www.laicidade.org/), a simpatia com que nos ofereceu as imagens.
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