CRÓNICA
Vasco Pulido Valente, o historiador, escritor, ensaísta e
comentador político português morreu esta sexta-feira no hospital em Lisboa
onde estava internado. O escritor morreu aos 78 anos.
21 de Fevereiro de 2020, 18:52
Diário 1
Gostava de ver a lista dos hóspedes portugueses que
Isabel dos Santos recebeu no seu apartamento de Monte Carlo. Seria com
certeza muito consolador. Claro que ela era o casamento perfeito: uma noiva
rica sem país, um país velho sem dinheiro.
18 de Janeiro
A sra. Joacine Katar Moreira e o sr. Rui
Tavares tiveram a oportunidade de discutir longamente as suas
divergências e as suas concordâncias sobre a política de um partido
inexistente chamado Livre. Claro que a discussão durou muito tempo mas talvez
as duas personagens se consolem com a ideia de que, teoricamente, podiam ter
levado uma eternidade. A origem e as condições em que foi criado não prometiam
nada de bom para o Livre. De qualquer maneira, aquele pequeno bando de lumpen proletariat conseguiu
fazer-se notado e (Deus sabe como) eleger a sra. Joacine. A estúpida classe
média portuguesa acha graça a estas fitas e para não votar vulgarmente no PS
vota no Livre. Tudo aquilo é um equívoco. O Livre não sabe o que é; e a média
burguesia que vota nele também não. Não vale a pena comentar mais o caso.
Gostava de ver a lista dos hóspedes portugueses que Isabel
dos Santos recebeu no seu apartamento de Monte Carlo. Seria com certeza muito
consolador.
Claro que ela era o casamento perfeito: uma noiva rica
sem país, um país velho sem dinheiro.
22 de Janeiro
Dizem agora muito mal de Isabel dos Santos, mas para mim ela
é um génio: conseguiu entender-se no meio das baralhadas de dinheiro em que
viveu toda a vida. O mal dela foi, como todos os parvenues, o de querer a respeitabilidade e a segurança. Investiu
muito dinheiro nessa obra. Só não percebeu que a cada passo se tornava mais
vulnerável e, portanto, mais fácil de apanhar.
Foi apanhada. Não lhe serviu de nada o apartamento em
Monte Carlo, nem as colecções de arte, nem uma pose tardia de conspícua
accionista do EuroBic e da Sonae. O centro da luta, como a origem da
fortuna dela, sempre fora Luanda. Perdida em Luanda estava perdida em toda a
parte.
23 de Janeiro
A judicialização da política americana é completa. Começou
com Nixon, continuou com Clinton e agora chegou a Trump. A Câmara dos
Representantes percebeu que pode derrubar um presidente quando ele não é a seu
gosto. Claro que o presidente tem de dar uma ajudinha. Nixon deu uma grande
ajuda com os seus grupos de assaltantes e de ladrões (ainda por cima
incompetentes). Monica Lewinsky ia derrubando Clinton com a sua
atenção à roupa que vestia para o encontrar. E agora Trump, com uns telefonemas
indiscretos para a Ucrânia dos quais se tem tirado um espantoso partido. Não é
que os presidentes americanos tenham tendência para degenerar; é que o sucesso
das tentativas anteriores de impugnação entusiasma os senhores congressistas,
mas, sobretudo, que os senhores congressistas têm um infalível aliado nos
jornalistas da imprensa e da televisão. Não é por acaso que um dos convidados
preferidos da CNN é o sr. Carl Bernstein, quando não é John Dean, o grande
herói do Watergate por ter
delatado o que se passava na Casa Branca.
Diário 2
As duas facções do PSD odeiam-se de morte e lutam até à
morte. O trágico é que nenhuma delas tem razão. E que as duas são encarnadas
por personagens particularmente desagradáveis e, pior do que isso, banais.
11 de Janeiro
Eleições no PSD: os votos legais virão de uma lista de
30 mil pessoas; e segundo a interpretação que Rio faz do militante
bem-comportado. É triste ver ao que chegou um grande partido nacional, que
outrora governou o país.
A veia autoritária e salazarista do dr. Cavaco matou a
militância. Quando ele saiu, o PSD de Sá Carneiro já era um cadáver.
12 de Janeiro
Quando, no seu discurso, António Costa chegou ao delicado
assunto dos rendimentos da classe média-alta, sentiu-se um arrepio de frio pela
espinha da audiência. É muito bem feito. Andaram anos e anos a maçar o pessoal
que queriam o dinheiro dos outros. Agora, nem o dos outros nem o deles. A
promoção é livre, mesmo para lá do Presidente e dos juízes do Supremo. Vai ser
um vê-se-te-avias.
Mas o Estado não tem dinheiro para essa tropa fandanga. De
qualquer maneira, ninguém parece muito impressionado. Os portugueses só se
impressionam com os factos consumados. Lá para Fevereiro, teremos greves do
funcionalismo para uma vida. Não lhes servirá de nada, suponho eu.
13 de Janeiro
Marcelo disse em Moçambique que Portugal precisava de estar
mais na moda do que está. Se ele insistir, não sei exactamente que espectáculos
vai o Governo inventar para o satisfazer, mas parece que vamos ter uma
nova época de louvaminhas ao antigo império colonial. Já estamos
suficientemente longe de Salazar para nos podermos permitir estas brincadeiras.
Vai haver exposições, colóquios, muitas viagens e muita “projecção nacional”. E
o presidente Marcelo vai ter muito com que se entreter. É só isso que ele quer
e esta é a única maneira como consegue pensar.
14 de Janeiro
As duas facções do PSD odeiam-se de morte e lutam até à
morte. O trágico é que nenhuma delas tem razão. E que as duas são encarnadas
por personagens particularmente desagradáveis e, pior do que isso, banais.
16 de Janeiro
Deus Nosso Senhor nos livre do partido Livre.
De resto, a situação é engraçada: a direcção política do
partido não confia na deputada Joacine, a deputada Joacine não confia no
partido. Só Rui Tavares podia ter inventado uma intriga destas.
17 de Janeiro
A quem possa interessar: a monarquia inglesa começou por ser
uma acumulação de coroas que durante séculos incluía as coroas da Irlanda e da
França, mas assentava na união da Inglaterra e da Escócia. Sendo esta a sua
natureza, o rei não podia fazer senão casamentos dinásticos e obrigar a sua
família a fazê-los também, nos pequenos reinos da Alemanha contemporânea ou na
casa real da Dinamarca.
Quando o Reino Unido foi decretado as regras não mudaram: o
Reino Unido precisava de um chefe de Estado e só podia ser um – o rei de
Inglaterra.
E mais: o príncipe Harry é utilíssimo à propaganda da casa
Windsor no Commonwealth. A rainha não faz favor nenhum em o deixar ir para o
Canadá, ainda por cima com Meghan atrás.
Diário 3
Ficámos a saber que em boa doutrina democrática se pode
encomendar a morte do inimigo. Basta ter um míssil ou dois.
4 de Janeiro
Encontrei-o, aos 20 anos, n’O Tempo e o Modo e nunca mais deixámos de nos ver. São
cinquenta anos. Durante grande parte desse tempo ele foi meu advogado e
tirou-me de vários sarilhos, com autoridade mas com brandura. Se sobrevivi até
agora devo-lhe em grande parte. Morreu hoje à tarde, com 76 anos, o meu
amigo Júlio Castro Caldas, e eu soube pela televisão, que se limitou a passar
um anúncio breve.
Júlio Castro Caldas, 19 de Novembro de 1943 – 4 de Janeiro
de 2020.
Ministro da Defesa
Bastonário da Ordem dos Advogados
Esta é uma sóbria e solene descrição de uma vida. Mas para o
Júlio terá sido o menos importante. Vi-o há pouco tempo: estava com uma barriga
esplendorosa pelo que foi geralmente criticado. Tínhamos razão.
5 de Janeiro
O espectáculo do Presidente de uma república
liberal gabando-se de ter mandado matar um general inimigo a milhares
de quilómetros de distância é um pouco inquietante. Há muito tempo que o
assassinato deixou de ser um método político corrente. Talvez que o último
verdadeiramente importante fosse o de Júlio César.
Mas aparentemente não chocou por aí além a sensibilidade
da elite americana. As objecções que se levantaram a este inaudito crime de
Trump foram de oportunidade e de carácter constitucional. Não me lembro – e
estive três dias à frente da televisão – de ouvir ninguém manifestar qualquer
espécie de repugnância pelo acto em si. Ficámos assim a saber que em boa
doutrina democrática se pode encomendar a morte do inimigo. Basta ter um míssil
ou dois.
7 de Janeiro
Foi no ano distante de 2003, no princípio da Primavera eu
fui almoçar ao Gambrinus – o doutor Mário Soares estava lá e deu-me
os parabéns pelo meu artigo do dia. Como “parabéns” vindos daquela fonte eram
raros, eu perguntei porquê. Era, obviamente, pelo artigo sobre a invasão do
Iraque que eu condenava de raiz com o máximo de brutalidade. A coisa funcionava
tanto melhor quanto era muito pequena. Soares deu-me logo dois argumentos mais
decisivos. Primeiro, que o Iraque iria ficar envolvido em todas as querelas no
Médio Oriente. Segundo, que os americanos e Israel dali em diante também se
iriam inevitavelmente envolver atrás do que sucedesse no Iraque durante um bom
par de anos.
De facto, pode-se dizer que a invasão do Iraque foi o maior
erro político do Ocidente desde a II Guerra Mundial. Ligou dezenas de
países e, sobretudo, ligou a Europa a uma política que não era a dela e, ainda
por cima, cujas justificações eram falsas: não havia armas de destruição maciça
no Iraque, nem atómicas nem outras. E, na prática, Saddam vivia nos seus
palácios sob protecção americana.
10 de Janeiro
O Orçamento foi hoje aprovado pelos votos a favor do PS
e a abstenção do PEV, do PAN, do Livre, do PC, do Bloco e de três
deputados do PSD Madeira. Mas, no meio do seu alívio, o governo devia pensar no
efeito destas baixas combinações. Aceitar o regime de Centeno talvez não faça
mal ao PS, mas pouco a pouco irá desacreditando o Bloco e o PC. Não se diz uma
coisa e se vota outra impunemente. Mais tarde talvez sejam precisos o Bloco e o PC na sua integralidade e não teremos
mais que dois grupos de mentirosos coxeando atrás de António Costa.
Diário 4
29 de Dezembro
As eleições para presidente
do PSD provocaram algumas tentativas de análise entre os
candidatos sobre o que era ou não era o partido. Todas erradas, porque por
oposição ou imitação todas tomam por modelo o PSD de 1980 ou, pior ainda, a AD.
O PSD de 1980 tinha duas partes fundamentais. Uma delas
vinha do marcelismo: os técnicos do planeamento e alguns intelectuais que a
Igreja havia pacientemente educado. Isto deu ao partido os seus dirigentes e o
seu chefe. Mas, no fundo, como dizia alegremente Carlos Macedo, o que fez
a AD de 1980 foi a outra parte, o partido dos três Rs: a
Reinstituição da PIDE, a Reconquista de Angola e a Ressurreição de Salazar. O
povo português não estava muito entusiasmado com a revolução dos capitães. E o
eleitorado que trouxe as vitórias de 1979 e de 1980 não se recomendava aos
democratas. Mesmo dentro do partido havia uma campanha feroz contra o
“adúltero” Sá Carneiro.
Agora, com a morte de Sá Carneiro, o bom
tom obriga a esquecer estas origens. Escreve-se a história desse período
como se não existisse Igreja Católica. Ora existia e tinha uma força a que
nenhuma espécie de esquerda podia resistir. Assisti a muitas missas na primeira
fila, sabendo o padre que eu era ateu, em que se tratava piedosamente de
esclarecer os fiéis de que marxista equivalia a comunista. O slogan da campanha completava este
cuidado com o caminho que seguiam os crentes: “partido socialista = partido
marxista”.
Ainda hoje convinha comparar o mapa da prática activa do
catolicismo com o mapa eleitoral do PSD. Seria talvez um bom método de evitar a
torrente de asneiras que por aí se dizem.
31 de Dezembro
O Presidente da República foi no fim do ano à ilha do
Corvo e aproveitou para discursar à pátria. E nesse discurso disse a
António Costa que queria um executivo com estabilidade e, de preferência,
orientado à esquerda. Tudo isto é muito compreensível.
Marcelo acabou o seu mandato com uma enorme popularidade que
não se deve só aos beijinhos e às selfies.
Deve-se principalmente ao sucesso do PS. O PS conseguiu fabricar a
“geringonça”, isto é, uma maioria absoluta, fingindo que estava a recuperar da
crise com uma política de esquerda. O espectro de Passos
Coelho chegou para sustentar esta mentira durante quatro anos, o que
evitou que o Presidente tivesse de intervir na vida política e, sobretudo, de
coibir qualquer excesso da esquerda: o PS estava lá para isso e com a direita
sabia ele como se arranjar. Pôde assim assistir tranquilamente em Belém à
passagem do tempo e fazer o seu número cómico sem que ninguém lhe caísse em
cima.
Mas hoje para manter esse suave arranjo precisa que o PS o
ajude. Pior: precisa do concurso do Bloco de Esquerda. Só não percebeu que o PS
nunca se aliará formalmente ao Bloco. António Costa tem de pensar na sua
retaguarda e, como não há diferença entre Pedro Nuno Santos e Catarina Martins,
ele tem de tomar cuidado com as misturas entre a esquerda do seu partido e a
esquerda bloquista. Se ele não soubesse isto, Pedro Sánchez já lhe tinha explicado.
Diário 5
14 de Dezembro
Entro suspeitoso nesta terrível quadra do Natal. Dantes, o
Natal era uma festa que se celebrava entre portas, com a família. Hoje, é um
espectáculo. Iluminações em que as autarquias gastam o que têm e o que não têm,
carrosséis, coretos, pavilhões e até pistas de gelo. Será isto o que nós
esperávamos da democracia?
15 de Dezembro
Como falta o dinheiro, há sempre o mesmo problema: ou se
aumenta o défice, ou se aumenta a carga fiscal. Não há saída. Por isso, os
políticos acabam por nos parecer todos iguais. Porque eles próprios não têm
escolha e a vida pública tende para a imobilidade e para a encenação. O PS está
a governar Portugal da única maneira como Portugal pode ser governado. E só
pode ser substituído por um partido que governe como ele.
No constitucionalismo monárquico os “rotativos” inspiravam
um ódio universal; não pelo seu radicalismo, mas pela sua parecença. Desta vez,
o “Bloco Central” não pegou, porque a elipse do PC produziu o “arco da
governação”. Mas hoje, que o CDS morreu, e ninguém se apresenta para o
ressuscitar, e que o PC reentrou firmemente nos costumes constitucionais, só
nos esperam governos do PS e da sua franja ou governos do PSD e da sua franja.
Ambos democráticos, ambos defensores do Estado Social, e ambos promotores do
mercado livre muito bem controlado; liberté,
egalité, fraternité. Apesar das dificuldades e alguns soluços pelo caminho,
os europeus parecem ter chegado ao fim da Grande Revolução.
18 de Dezembro
Ainda bem que o encontro entre Mário Centeno e Miguel
Albuquerque foi desmarcado e que eles só se encontraram uns minutos em público,
num “evento” inócuo. Afinal nem toda a gente endoideceu no PS. As negociações
com o PSD foram grotescas. Se o PS tivesse arrebanhado aqueles três deputados,
teria ficado a governar a Madeira, sem maioria na Assembleia Regional mas com
maioria na representação nacional. Felizmente, Costa, que se julga um grande
estadista, deu com a coisa a tempo.
19 de Dezembro
Trump foi destituído pela Câmara dos Representantes: todo o
partido democrático votou a favor e todo o partido republicano votou contra. De
qualquer maneira, a telenovela não acabou: os pais da Pátria não consideraram a
hipótese de haver um presidente destituído contra a vontade unânime do senado.
E, por isso, deixaram um vazio para Nancy Pelosi negociar o tipo de
julgamento a que os democratas querem que Trump seja submetido. Não sei quanto
tempo isto pode durar, mas pode durar séculos e adiar a resolução da peça até a
impopularidade de Trump ser arrasadora.
Durante a discussão no Congresso, os republicanos compararam
Trump a Jesus Cristo e os juízes dele a Pôncio Pilatos. Pior ainda, houve um
congressista que comparou os democratas aos japoneses de Pearl Harbour. O
ódio escorre. Basta ver a maneira como os locutores da CNN vão contando o caso
– com um prazer pela queda presuntiva do homem e não só pela queda do político.
Um desses senhores rebentava de gozo ao lembrar que Trump ficaria para sempre
na história como um vilão. Se alguém julga que vai resolver alguma coisa com
estes exercícios judiciais está muito enganado. O partido democrático ainda não
percebeu que Trump existe por uma razão. Como Boris Johnson existe por uma
razão. E como não serviu de nada tentar parar o “Brexit” com uma armadilha
parlamentar, não servirá de nada tentar apanhar Trump numa armadilha
constitucional. No fim dessas conversas, ele irá prevalecer, porque os
conflitos da sociedade são reais, não são retórica.
Diário 6
Só ficou o mundo digital e Meghan Markle. Todo aquele
minucioso edifício terá de se desfazer para se tornar a fazer. Não se volta
atrás a história.
7 de Dezembro
Peço aos meus colegas do jornalismo escrito e falado, mas
sobretudo falado, que não se esqueçam sistematicamente de que “melhor” não é
igual a “mais bem”.
10 de Dezembro
Qualquer pessoa gostava de ter os salários dos alemães, o
serviço de saúde dos ingleses, as reformas dos franceses e os impostos dos
suíços. Infelizmente, estas coincidências não são possíveis, mas António Costa
anda a esforçar-se por tirar uma do chapéu. É claro que nunca vai conseguir e
que a tentativa só vai assanhar os protestos e dar ao governo um
arzinho de falsário e trapalhão.
Isto é ao mesmo tempo triste e inevitável. A miséria
nacional vem em grande parte da comparação saloia que a propósito de tudo toda
a gente faz entre Portugal e a Europa. Infelizmente, como dizia Salazar, o país
é pobre e pobremente será obrigado a ir vivendo.
Quem se indigna com este diagnóstico severo vive nas nuvens
e abre a porta a muita agitação desnecessária. É extraordinário o tom com que
as “massas” falam dos seus direitos; parece que antes vieram da Ilha do Tesouro
e que uma fortuna lhes foi roubada na véspera por um tirano sanguinário. Sucede
que não há ilha nem fortuna.
11 de Dezembro
Por esta época a ministra da Cultura ou quem faz a sua vez
cai sempre numa armadilha. Se não se quer tornar um árbitro das elegâncias tem
por força de distribuir o dinheiro para o teatro por critérios de autoridade e,
lamentavelmente, deixar de fora uma boa parte dos fregueses. Costa deu este ano
mais 18 milhões para o peditório, mas não há milhões capazes de
satisfazer aquela fome.
Este ano, como de costume, apareceram
algumas pindéricas manifestações de indignação a propósito de uns
miríficos “cortes” na cultura. O problema do teatro é este: arranjado um espaço
qualquer que se denomina “o palco” ou “a cena”, tudo o que se passe lá em cima
é “arte” ou “cultura”. Quem dirá que não? Um político, acidentalmente promovido
ao governo? Era só o que faltava.
Agora, o estrondo da indignação artística até chegou ao
parlamento via BE. Não façamos caso.
12 de Dezembro
Boris Johnson ganhou. Porquê? Porque sustentou uma convicção
até ao fim e fez tudo o que era necessário para ganhar. Votou contra May. Votou
com May. Tomou o partido por cem mil votos. E, quando as “notabilidades” se
revoltaram, pôs na rua as “notabilidades”. Perdeu várias vezes no parlamento
até poder desembaraçar-se daquele parlamento e convocar eleições. E chegou
ao fim com uma direcção e um objectivo – “Brexit”. Mereceu o seu lugar na
história do Reino Unido. Daqui em diante, é preciso perceber uma coisa: o
“Reino Unido” não é uma velha tradição dos ingleses, dos galeses, dos
irlandeses ou dos escoceses. É uma entidade decretada pelo poder imperial no
princípio do século XIX. Até aí, só existia a justaposição das coroas na cabeça
de sua majestade britânica. Mas com o colapso do prestígio dessa majestade e as
mudanças do mundo, só ficou o mundo digital e Meghan Markle. Todo aquele
minucioso edifício terá de se desfazer para se tornar a fazer. Não se volta atrás a história.
Diário 7
A menina Greta veio agora à vela de Nova Iorque. E como
tinha de fazer escala em Lisboa, provocou, naturalmente, uma crise de nervos
nacional.
30 de Novembro
A menina Greta veio agora à vela de Nova Iorque, para não
sujar o planeta e para convencer os milhões de pessoas que todos os dias
atravessam o Atlântico que esse é o método mais prático e seguro de viajar. A
propósito, o destino da menina Greta é Madrid.
E como tinha de fazer escala em Lisboa, provocou,
naturalmente, uma crise de nervos nacional. O senhor Presidente da República
explicou em pormenor por que razão não tencionava recebê-la com
muitas selfies e um discurso no Cais de Alcântara. O senhor presidente
da Câmara de Lisboa já prometeu oratória e beijinhos. O senhor ministro do
Ambiente teve um espasmo de alegria e virtude. E não há quem os agarre.
1 de Dezembro
O 1.º de Dezembro é uma data curiosa. Começou por
ser o emblema da casa de Bragança: um emblema dinástico e não um emblema
nacional. Foi também, depois, o hino do constitucionalismo monárquico, escrito
por D. Pedro IV num acesso de lirismo imperial. Durante a República
tornou-se numa festa da resistência monárquica. Hoje em dia, não se sabe
porquê, o Estado democrático resolveu juntar-lhe o hino da Patuleia, que 35
bandas tocaram misteriosamente nos Restauradores.
Claro que Marcelo não se meteu nesta trapalhada:
ajuizadamente entrou mudo e saiu calado nas cerimónias oficiais. Deixou a
idiotia retórica a Siza Vieira e Fernando Medina.
2 de Dezembro
A NATO perdeu todo o sentido, desde que Trump foi eleito
para a presidência dos Estados Unidos e declarou que o seu principal interesse
estava no Pacífico. E está: a Rússia ainda tem uma máquina de guerra capaz de
intimidar qualquer um, mas tem uma economia frágil, atrasada e muito pequena –
por esse lado, não inquieta ninguém. Quando caiu o muro de Berlim, caíram também
os argumentos que justificavam uma aliança da América com a Europa. Para a
América, essa aliança era só uma despesa; para a Europa acabou por ser a
condição da sua prosperidade. Durante o império soviético a Europa viveu
tranquila sob o guarda-chuva americano e hoje nem sequer gasta 2% do PIB em sua
defesa.
Não admira que Trump ande por aí a fazer desacatos. Os
problemas que ele tem com a Ucrânia são outros. E não passa pela cabeça de
Putin arrasar o mundo pelo prazer de mandar na Bulgária ou na Letónia; nem
sequer pelo prazer de mandar num bocado da Ucrânia. A arrogância da América e
da Rússia face à Europa assenta nesta verdade primária: a Europa é uma
personagem gratuitamente acrescentada ao quadro.
4 de Dezembro
Os candidatos à “liderança” do PSD insultaram-se
entusiasticamente mostrando a mediocridade de todos eles – o que se
previa. O que não se previa é que, discutindo o partido com um ar sabedor,
nenhum deles se tivesse referido à Igreja Católica Apostólica Romana. É como se ela nunca tivesse existido, nunca se tivesse
importado com as peripécias do casamento de Sá Carneiro e não fosse, nos
primeiros anos do regime, uma força decisiva em qualquer eleição.
Diário 8
16 de Novembro
À velocidade com que fala, é impossível que Catarina
Martins pense no que diz.
17 de Novembro
Num país onde 20 por cento da população está abaixo do
limiar de pobreza, o Presidente da República preocupa-se com os
500 homeless (ómelésses, como lhes chamava uma amiga minha) de
Lisboa. Fica-lhe bem. Quando me lembro de um inverno em Washington, em que
havia criaturas congeladas pelas valetas, não tenho coração para o criticar.
Mas não consigo deixar de pensar que estes desventurados são “os pobrezinhos do
senhor Presidente”.
Não me repugna a caridade como ao militante médio do PCP.
Mas neste caso, em que se junta o pitoresco de que os media gostam ao
sentimentalismo de telenovela, não consigo evitar um ligeiro arrepio. A
mobilização das instituições da República para os sem-abrigo não me parece uma
grande causa.
18 de Novembro
A urgência de pediatria do hospital Garcia de Orta, em
Almada, fechou porque não tem pediatras. É inevitável que alguém com 20 e
poucos anos e uma especialização não queira viver em Almada e trabalhar para o
Garcia de Orta. O mercado livre da União Europeia também é um mercado livre de
trabalho.
19 de Novembro
O senhor Pinto Luz da Câmara de Cascais, que
pretende ser o próximo presidente do PSD, prometeu “ganhar”. Esta mania de
“ganhar” instalou-se no partido com o adorável Cavaco Silva em meados dos anos
80. Mas não passa de uma gabarolice. Quanto mais se diz que o PSD quer ganhar,
mais ele perde.
20 de Novembro
Lamento não acompanhar o Presidente da República e a
“esquerda” indígena na uníssona homenagem a José Mário Branco. Ainda me
lembro vividamente do PREC, de que esta personagem foi um dos rostos mais
militantes e visíveis. A gente que hoje se abriga à sombra da social-democracia
e do Estado de Direito não imagina o que lhe teria sucedido em 1975, a título
de ser “fascista” e membro da “reacção” para a qual existia “uma só solução”: o
fuzilamento. “Uma só solução, fuzilar a reacção”, uma palavra de ordem que se
ouvia incessantemente na rádio entre baladas deste benemérito.
21 de Novembro
A única resposta possível deste governo
à manifestação de hoje, em frente à Assembleia da República, é
despedir o ministro Eduardo Cabrita. O governo de António Costa é
responsável por ter dado às forças de segurança motivos plausíveis para descer
à rua. E também é responsável por ter permitido que um aventureiro político se
tivesse apropriado de um compreensível descontentamento para fins obscuros. O
PS e o PSD, ou seja, os partidos constitucionais, foram os únicos que não
estiveram no sítio onde deviam estar: cá fora, na escadaria.
21 de Novembro, à noite
Os peritos parecem concordar que o último grande
investimento nas forças de segurança foi em homenagem ao Campeonato Europeu de
futebol de 2004, que, se bem me lembro, excitou particularmente o doutor Marcelo
Rebelo de Sousa. O que isto diz sobre a saloiice portuguesa é aflitivo.
22 de Novembro
O CDS não resistiu a ir atrás do Chega, na forma do deputado
e comentador desportivo Telmo Correia. Deus Nosso Senhor os salve, que mais ninguém pode.
Diário 9
Vão ser admiráveis as discussões parlamentares sobre os
princípios teóricos da “progressão” e da “retenção”. Tenho pena de não assistir
e mais pena ainda de não participar. Ia ser muito divertido.
10 de Novembro
“Eu, Luís Montenegro, católico, português, resolvi
dedicar os próximos doze anos da minha vida a salvar a Pátria e prometo, pela
alma da minha mãezinha, ganhar as próximas eleições, o governo de Portugal, as
eleições seguintes, mais quatro anos de governo, o restabelecimento do
monopólio da pimenta, a tomada de Ormuz, a descoberta da relatividade, e a
minha entrada triunfal na lista da Forbes como a maior fortuna do mundo”.
Graças a Deus pelo PSD.
11 de Novembro
Desde o I Governo constitucional que os grandes partidos,
interpretando erroneamente a morte da I República, se preocuparam em pôr uma
rolha regimental aos pequenos. Isto foi mais visível à esquerda do que à
direita por duas razões. Primeiro, por causa das excitações revolucionárias de
Abril. E, segundo, por causa do carácter doutrinário da esquerda: lembremos que
o Partido Socialista só renunciou ao marxismo programático nos anos 80 e que
sofreu de facto uma cisão, a dos saudosos Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira;
e que também o PC teve de se haver com vários “autênticos partidos do
proletariado”.
Claro que, em boa doutrina, os pequenos partidos
parlamentares deviam ter o tempo que quisessem. Mas não se trata disso. Nem do
imaginário perigo da extrema-direita. Do que se trata é de anular dois
deputados do PS ou do PSD que amanhã resolvam constituir-se num partido. Nenhum
dos partidos do regime – e conto o Bloco entre os partidos do regime – poderia
viver sob tal ameaça.
Desta perspectiva, o que sucedeu agora foi uma aberração.
Ferro Rodrigues lá sabe.
13 de Novembro
O senhor primeiro-ministro decidiu por sua alta
recreação que não haveria “chumbos” até ao 9º ano de escolaridade. A isto
se chama, no idioma “eduquês”, evitar a “retenção”. Não me pronuncio sobre o
assunto, quanto mais não seja porque neste ponto já errei várias vezes e não há
certezas absolutas. Noto apenas que os argumentos que valem para o 9º ano
também valem para o 12º, a licenciatura, o mestrado e o doutoramento. Mas
António Costa também remeteu Rui Rio para a bibliografia. Parece que o Conselho
de Ministros, como José Sócrates, foi a Paris estudar sociologia da educação. E
quer transformar a Assembleia da República num seminário.
Vão ser admiráveis as discussões parlamentares sobre os princípios
teóricos da “progressão” e da “retenção”. Tenho pena de não assistir e mais
pena ainda de não participar. Ia ser muito divertido.
14 de Novembro
A ortodoxia política pegou com pinças no episódio
da mãe que abandonou o filho num ecoponto. Nos dias que vão correndo, toda
a gente sabe que este género de histórias só são aproveitadas pelo Correio da
Manhã e pela televisão de cabo. E que as pessoas sérias não gostam de
“explorações mediáticas”.
Mas, no meio do barulho, lembrei-me
d’Os Miseráveis e de como esse panfleto foi politicamente importante
para o movimento republicano francês. E de como depois foi copiado em
abundância por Eugène Sue (Les Mystères de Paris), por Ponson du Terrail (Les
Drames de Paris) e até pelo nosso Camilo (Os Mistérios de Lisboa). Para bem ou
para mal, o género ficou: a burguesia gostava de saber o que se passava nesse
escuro mundo que existia ao lado dela. E ainda hoje o fenómeno se replica com o
jornalismo popular. A direita percebeu isto, e a esquerda não.
Diário 10
Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer
perante a cultura identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a
ser uma entidade abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este
espectáculo me repugna e me enfurece.
2 de Novembro
O programa do governo desapareceu sob as saias do assessor
de Joacine e a política desapareceu sob a pessoa de Joacine ela própria.
Bem sei que a cultura republicana está a desaparecer perante a cultura
identitária mas, para a minha idade, um cidadão continua a ser uma entidade
abstracta, sem saias, sem cor e sem gaguez. Todo este espectáculo me repugna e
me enfurece.
Quem leu as dezenas de artigos de propaganda que Rui Tavares
escreveu tentando convencer as pessoas que o partido, absurdamente chamado Livre,
era a esquerda europeia não pode deixar de ficar embasbacado. O submundo das
querelas radicais continua a fervilhar como uma infecção, mesmo quando nós não
damos por isso.
3 de Novembro
O debate entre os chefes dos partidos espanhóis foi
surpreendentemente calmo e bem-educado. Deu muito a pensar à direita. E
muitíssimo mais à esquerda. O Podemos atacou constantemente o PSOE pela simples
razão de que quer ir para o governo com ele e o PSOE não quer (e não só por
causa das divergências a respeito da Catalunha).
Em Portugal acontece exactamente a mesma coisa: o Bloco quer
uma aliança, como eles dizem, “estável” e “a prazo” com o PS, isto é, para a
legislatura, e o PS não quer.
O que Pedro Sánchez e António Costa temem acima de tudo é
que a social-democracia europeia, vigente nos seus partidos, seja invadida e
substituída pelos radicais à sua esquerda. Não sei bem o que se passa em
Espanha. Em Portugal é óbvio que não há nenhuma diferença entre a direcção do
Bloco e a esquerda do PS. Por isso Costa promoveu a direita do partido e a
gente da sua confiança, e deixou Pedro Nuno Santos dependente da sua graça
pessoal. Infelizmente, com o tempo, suspeito que o Podemos e o Bloco vão
ganhar: o radicalismo urbano tendeu sempre a chegar às últimas consequências.
6 de Novembro
Duas técnicas da Segurança Social, seja isso o que for,
estão acusadas de tirar duas filhas à mãe. Essa mãe era vítima de violência
doméstica e fez, em protesto, vinte e seis dias de greve de fome (vinte e cinco
chegam para matar o adulto médio) e ainda hoje só pode ver as filhas duas vezes
por semana: aparentemente, o grande crime dela, que não se provou, foi ter
abandonado a criança mais velha, de quatro anos, num café.
Uma pessoa pasma que dois funcionários administrativos – é
isso que em última análise as duas “técnicas” são – possam separar uma família
ao seu arbítrio pelo simples exercício de um poder que o Estado lhes conferiu.
Mas podem. O jornalismo que por aí se esfalfa a examinar a justiça portuguesa
nunca deu por esta barbaridade, que se instalou calada e burocraticamente.
Quando a descobri, num noticiário da SIC, tremi de medo. Um dia destes
aparece-me um “técnico” em casa, com um papel na mão, declara-me incapaz e
mete-me num asilo; nenhum dos nossos políticos vai achar que se tratou de uma
violação dos direitos do homem. A Constituição que se lixe.
Colunista
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