sábado, 22 de fevereiro de 2020

10 crónicas de Vasco Pulido Valente no Observador


De Guterres a Pedrógão, de Cavaco a Marcelo. 10 crónicas de Vasco Pulido Valente no Observador
 Índice
  1. Táxis, Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out 2016)
  2. 24 de Dezembro, 2016
  3. Um destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan 2017)
  4. Mário Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan 2017)
  5. Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA (28 jan 2017)
  6. Nem às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
  7. Trumpolinices (14 maio 2017)
  8. Eles e Nós (21 maio 2017)
  9. O Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
  10. Luto nacional (25 jun 2017)

"As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal", escrevia o cronista em outubro de 2016, na primeira crónica que assinou para o Observador.
21 fev 2020, 17:34

Táxis, Guterres, Sócrates e a pobreza de Portugal (16 out 2016)
As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos fazia europeus. Não fez.
Segunda-feira
À cautela fiquei em casa. De qualquer maneira ficava, mas desta vez fiquei com convicção. Esta querela dos taxistas é um retrato da imbecilidade nacional. Primeiro, não há uma única espécie de taxistas, há três: os taxistas que trabalham por conta de outrem (desconfio que a maioria), os proprietários de um carro (e de um alvará) que são no fundo donos de um pequeno negócio de família (feito à custa de austeridade e poupança) e as empresas que têm dezenas (ou centenas) de táxis, que, naturalmente, se governam por outros interesses. A lei juntou as três espécies por uma questão de ignorância e de amadorismo. Vieram brincar aos governos, brincam aos governos. Resultado: arranjaram um sarilho sem uma saída digna.

Terça-feira
Agora que já acabou ou, pelo menos, se atenuou a campanha patriótica para a canonização de Guterres, talvez se possa olhar para ele com alguma tranquilidade e medida. Por acaso conheço a criatura. É um homem fraco, influenciável, indeciso e superficial. A crónica amnésia deste país fez desaparecer numa semana de glória o péssimo governo que ele dirigiu; um governo que estava sempre em crise porque o primeiro ministro avançava, recuava, não era capaz de resolver nada de uma vez para sempre e, como disse Medina Carreira, caía em terríveis transes de angústia quando tinha de dizer “não”. Esse é o Guterres de que me lembro e não me parece a encarnação de um grande diplomata. Quanto ao resto, o católico a roçar o beato, cheio de amor pelos pobrezinhos, também não me entusiasma: a ONU não precisa de uma nova versão de Sta. Teresa de Calcutá.

Quarta-feira
Consta por aí que o eng. Sócrates vai publicar outro livro. Por descargo de consciência li o primeiro. É um exercício escolar sem originalidade ou rigor, que, como lhe compete, exibe uma enorme incultura filosófica. Não valia a pena tornar a falar dele se Sócrates não aparecesse agora com uma nova prestação dos seus pensamentos, desta vez sobre o “carisma” (um assunto que tresanda a pretexto para o auto-elogio). Depois do que se disse sobre a autoria e as vendas da sua alegada tese, nenhum académico com vergonha se atreveria a lembrar a sua presença sobre a terra, sem o reconhecimento de uma universidade idónea. O problema de Sócrates é que está morto, intelectual e politicamente morto, e se recusa a reconhecer esse facto simples. A agitação em que anda chega a confranger. Sossegadinho na Covilhã ou no diabo ficava melhor.

Quinta-feira
O debate entre Trump e Clinton não passa de uma zaragata de bordel. A famosa civilização do Ocidente deu nisto.

Sexta-feira
Quando se puxa o cobertor para cima, ficam os pés de fora; quando se puxa o cobertor para baixo fica de fora a cabeça. Depois de se insultarem por causa deste interessante assunto, os senhores da economia recomendam muito sabiamente que se estique o cobertor. Mas, sobre a maneira de o esticar, não dizem mais que meia dúzia de lugares-comuns. As discussões sobre o Orçamento de 2017 deixaram à vista a pobreza e a fragilidade de Portugal. A choradeira e o ranger de dentes não levam a nada, nem os triunfos vicários com as façanhas de Ronaldo ou Guterres. Sempre foi assim. Agora julgávamos que “entrar” para a Europa nos fazia europeus. Não fez.

Sábado
Ando a ler uma “História do Cristianismo – Primeiro Milénio”, que tem 1 100 páginas e ajuda muito quando se tem de esperar. É um interesse antigo que os meus compatriotas não partilham. Verdade que Saldanha, o da estátua, conseguiu fazer o maior discurso do Parlamento português sobre o Concílio de Niceia, mas não era inteiramente bom da cabeça e era Presidente do Conselho e comandante-em-chefe do exército. Os católicos nunca se interessaram muito pela origem ou pela teologia da sua fé. Hoje nem sequer há uma boa tradução da Bíblia (tirando talvez a do Novo Testamento, directamente traduzida do grego por Frederico Lourenço, que saiu esta semana). O próprio Patriarca deu a entender a uma amiga minha que não estava muito satisfeito com esta situação. A Universidade Católica não se interessa e só se preocupa com as suas ninhadas de economistas, de gestores e daquelas criaturas que se auto-proclamam “cientistas” políticos. O que estará na cabeça do católico indígena, fora meia dúzia de orações e de rituais, e de uma vaga crença no Céu e no Inferno?


24 de Dezembro, 2016
Hoje o mundo mudou. A família alargada quase já não existe. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Era melhor antigamente? Não acho.
O Natal da classe média por volta de 1950
Os Correia Guedes
O meu avô Correia Guedes tinha sete filhos, 18 netos, um genro e seis noras. Na noite de 24 para 25 de Dezembro, a minha avó (já viúva) reunia esta gente toda em casa dela na Av. da Liberdade: uma casa enorme, onde não faltava espaço e a mesa de oito metros com tampo de mármore e pés dourados lembrava ainda melhores tempos. Mas valia a pena. Era aquela a ocasião de ver primos, tios, parentes, que nunca se viam, de saber da vida de cada um, de armar uma intriga ou outra e, principalmente, de sentir que fazíamos parte de uma grande família. A confusão era enorme, a comida e os vinhos não acabavam mais. Os doces, quase sempre trazidos por vagas relações de segundo ou terceiro grau, também não. Naquela família de “direita” ninguém ia à missa, nem se faziam discursos. Quanto muito, no fim de festa, o meu tio Manuel, em nome do patriarca ausente, subia para uma cadeira e bebia à saúde e prosperidade do rebanho. Não se davam presentes, talvez por causa do número de crianças (uma boa desculpa) ou mais provavelmente por causa das circunstâncias da família, que, fora quatro ou cinco privilegiados, não eram boas. A minha avó, que vivia como no fim do século XIX, com dama de companhia e três criadas, gastava com energia as sobras de uma herança longínqua e aos meus tios faltava o talento do pai para negócios. Apesar disso, do ar de palpável decadência e de uma certa melancolia, o Natal reconfortava as ruínas daquela família. Mal ou bem tinham conseguido sobreviver sem desastres de maior e até, de longe em longe, com um ocasional sucesso. Bem vestidos, bem comidos, com a descendência à volta, o Natal, para eles, era um afirmação.

Os Pulidos
O Natal dos Pulidos começava em Novembro com a compra de presentes: um trabalho difícil que exigia muita astúcia e diplomacia. Era preciso ir ao encontro do que as pessoas realmente queriam ou desejavam (o que exigia um ouvido alerta e muita dissimulada troca de informação). E era preciso “equilibrar” as coisas, ou seja, não dar a ninguém (tanto a adultos, como a crianças) presentes que revelassem uma preferência inoportuna ou fossem por si mesmos uma injustiça notória. Até ao último minuto a espionagem (o que é que A tem para B?) e os cálculos não paravam. Os Pulidos eram um clã, como não eram os Correia Guedes, com um patriarca vivo, o meu avô Francisco Pulido Valente, que – para tornar o quadro perfeito – fazia anos no dia 25 de Dezembro. A não ser pelas decorações, que evidentemente não incluíam um presépio, o Natal não se distinguia bem dessa data sagrada, numa família ateia e anticlerical.
Os festejos culminavam, de resto, num almoço em casa do meu avô, com uma certa solenidade. Toda a gente se vestia de cerimónia e toda a gente tinha um lugar à mesa. A conversa, como sempre sucedia nessa doce família, depressa degenerava em discussão, com cada um a querer mostrar inteligência e saber ao patriarca, que intervinha pouco e gozava o espectáculo com orgulho. As senhoras de maneira geral não abriam o bico, porque o meu avô não deixara ainda o século XIX. Aos genros, sendo médicos, era permitida uma ou outra palavra. Ao meu pai, engenheiro químico, ninguém concedia qualquer espécie de autoridade.
Depois do almoço e do champagne, o meu avô passava para a sala para receber as saudações de fora: antigos “discípulos”, como se dizia na época, vinham cumprimentar o “Mestre”; amigos famosos prestar a sua indispensável homenagem; e alguns revolucionários do “5 de Outubro” lamentar com o velho camarada a ditadura de Salazar. Às sete da tarde, acabava a função.
O Natal da classe média em 2016
Hoje o mundo mudou. A família alargada quase já não existe. Ninguém se atreve a ter sete ou oito filhos. Num T2, num T3 ou até num T4, o espaço não chega para uma grande festa, o Natal ou outra. Felizmente para elas, as criadas desapareceram. Era melhor antigamente? Não acho.

Um destes dias, Marcelo acaba a falar sozinho (07 jan 2017)
Marcelo não é um produto político, é um produto da RTP e da TVI. Entra dia a dia pela nossa casa adentro, sempre com a mesma fita e futilidade. Um destes dias, o homem acaba a falar sozinho.
Sempre gostava de saber quanto pagaram as Câmaras deste abençoado país, que se queixa como de costume de não ter dinheiro, pelos denominados “festejos natalícios”: iluminações, fogo de artifício, festivais, concertos, marchas, policiamento (porque certos prazeres não vão sem policiamento) e outras folias. Na Madeira parece que só o fogo de artifício custou um milhão e oitocentos mil euros e custou de certeza muito mais por Portugal inteiro. As pessoas precisam de se divertir, claro. Mas não estava ainda estabelecido que o Estado devesse fornecer felicidade e entretenimento à cidadania. Agora, ninguém escapa a essa dolorosa obrigação. Por causa do turismo? As receitas não chegam para as despesas; e nada mais melancólico do que o espectáculo de 100 ou 200 mil indivíduos no Terreiro do Paço, que precisam de se juntar para se sentirem um pouco menos tristes. Se o Estado confiscasse às Câmaras o dinheiro que gastaram nestas futilidades, não faltariam maneiras de o usar inteligentemente. O ano acabou mal.
Quando o papel se tornou mais barato, por volta de 1860, apareceram por toda a parte milhares de jornais. Em Portugal também, e isso ao princípio foi um escândalo de grandes proporções. Em Lisboa e no Porto, havia dezenas. Mas cada distrito e quase cada concelho tinha um, ou por iniciativa local ou pago pelos partidos políticos. Pior ainda, para se atrair o público da pequena imprensa da província, os jornais de grande circulação passaram a contratar correspondentes nos mais remotos cantos do país. Milhares de pessoas enchiam diariamente toneladas de papel. De longe em longe, com boa prosa e notícias fiáveis; diariamente, com calúnias, impropérios e demagogia, em prosa de taberna. Como um todo, a imprensa era a versão primitiva de uma “rede social”. Ninguém se incomodava com isso, excepto os jornalistas que se davam excessiva importância. Num regime liberal (ou democrático), a necessidade de participar era geralmente reconhecida e até certo ponto respeitada. As “redes sociais” cobrem hoje muito mais gente. Ainda bem. O mal seria um público indiferente ou apático.
Marcelo não é um produto político, é um produto da RTP e da TVI, mas não percebeu ainda uma das regras básicas da sua verdadeira profissão ou confundiu o papel de Presidente da República com o seu antigo papel de entertainer. As pessoas gostavam das conversas com Judite de Sousa porque queriam passar um bom bocado a ouvir dizer mal dos senhores que nos pastoreiam e que todos nós detestamos do fundo do coração. O dispensador de “afecto” (seja lá o que isso for), com os seus beijinhos, as suas selfies, os seus beberetes, a sua falsa naturalidade e o seu falso sorriso, também diverte e também não explica. E pior do que isso faz com que Marcelo entre dia a dia pela nossa casa adentro, sempre com a mesma fita e futilidade. Esta over-exposure, que o mais mesquinho cómico tenta evitar para não perder a graça, não incomoda Marcelo. Para ele, quanto mais melhor. Não calcula quanto tempo vai a populaça achar graça ao espectáculo, nem mede a dificuldade de mudar de pele, quando tiver de dizer à populaça: “Hoje, minhas senhoras e meus senhores, não estou aqui como o Marcelo do Afecto, estou aqui como Presidente da República”. Ninguém acredita. Mas, fora isto, o quê? E é precisa uma solução porque a cidadania resolveu ignorar, e bem, o discurso de Ano Novo de Marcelo (?), do Presidente (?), de quem ao certo? Só 637.000 pessoas o ouviram, a mais baixa audiência de sempre, tirando as de Cavaco em 2013 e 2016, e longe das dele próprio na TVI (entre um milhão e meio e dois milhões). Um destes dias, o homem acaba a falar sozinho.
O título “Diário de Notícias” é um programa. Quando o jornal foi fundado queria dizer que só daria notícias e, principalmente, que seria apolítico, ou seja, que tencionava ignorar as lutas partidárias do tempo. Mas de facto o DN acabou por se tornar no órgão oficioso do governo e das dezenas que vieram depois, durante cem anos (excepto, que me lembre, com Mário Mesquita e, a seguir, com Mário Bettencourt Resendes). Não admira que esta admirável instituição tenha resolvido despedir o meu amigo Alberto Gonçalves. O objectivo dos patrões do DN é viver em boa harmonia com o governo, de maneira a conseguir um “jeitinho” ou outro, um favorzinho ou outro. Alberto Gonçalves, um homem de convicções e com pouca paciência para aturar idiotas, e com prosa sarcástica, penetrante e clara, estragava este suave entendimento. A nossa direita continua incuravelmente estúpida.

Mário Soares, um esboço biográfico (Parte 1) (14 jan 2017)
No dia em que Mário Soares desembarcou em Lisboa, em Santa Apolónia, em Abril de 1974, não desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força sob a sua aparente fraqueza.
A carreira de Mário Soares não teve nada de particularmente notável até 1962. Como muito boa gente começou aos vinte anos pelo PC, atraído pela aventura (e os perigos dela), pelo radicalismo e pelo facto simples de não existir na oposição qualquer outra alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou no MUD e, a seguir, na candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. A “colaboração” com os comunistas, se assim se pode chamar, porque ele chegou a dirigente, não resistiu à ineficiência e à intolerância geral da seita. Em 1950, é expulso do “Partido” por “indisciplina” e “derrotismo”.
Isto, que lhe deu tempo para acabar de se formar em Histórico-Filosóficas e começar o curso de Direito, também o deixou isolado e sem destino político evidente. Fora a actividade platónica de um pequeno círculo de advogados da Baixa, não havia nesse tempo desértico nada a que ele pudesse aplicar a sua habilidade e energia política. De quando em quando, lá vinha um abaixo-assinado ou protesto de personalidades, que no fundo só serviam para actualizar os ficheiros da PIDE. A oposição foi um incómodo para a Ditadura, mas nunca foi uma verdadeira ameaça. Certamente sem grande esperança e por puro desemprego cívico, Soares funda em 1955, a Resistência Republicana com uma dezena de amigos, que não se distinguiu por coisa alguma na vida política portuguesa; e adere ao Directório Democrático Social de três figuras venerandas da democracia (António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes), que eram um símbolo mais do que uma força.
Entretanto o mundo mudava. Em 1958, aparece surpreendentemente a candidatura de Humberto Delgado (com o apoio de Soares), que revelou ao melancólico país da Ditadura a extensão e a fúria de uma boa parte da população. E, em 1962, a chamada “crise académica”, para grande estupefacção dos próceres do regime, veio provar que nem com os filhos da burguesia podiam contar. Infelizmente, as relações entre os dirigentes da “crise” e Mário Soares não foram boas. Primeiro, por culpa dos dirigentes da “crise”, que com uma ridícula arrogância desprezavam a “velha” oposição republicana (mas não o PC). Eles mobilizavam de um dia para o outro milhares de estudantes, tinham uma espécie de imprensa (em stencil), tinham instalações, tinham automóveis e tinham dinheiro. E o que tinham os democratas da Baixa, excepto 30 anos de mal empregada indignação e de conspirações falhadas? Mas, fora isso, que já não era pouco, o pessoal do movimento académico, quando não militava no Partido Comunista, exibia – por competição e para defesa própria – um radicalismo que Soares já várias vezes rejeitara. A geração de 1962 ficou por isso longe da social-democracia europeia e do futuro PS até muito depois do “25 de Abril”.
De qualquer maneira estas pequenas questões domésticas interessavam pouco perante a guerra de África, que em 1961 começou em Angola. Dos políticos portugueses com uma certa notoriedade só Soares percebeu que a Ditadura deixara de ser um pequeno problema de um país pequeno e sem influência para se tornar um problema internacional, em que tarde ou cedo as grandes potências se envolveriam. A oposição já não se fazia, ou devia fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na América e na Europa, principalmente na Europa. Em 1962, Soares transformou a Resistência Republicana em Resistência Republicana Socialista e, em 1964, criou na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, uma maneira hábil de se ir ligando aos grandes partidos europeus.
Estabelecer a credibilidade da oposição portuguesa num Ocidente anticomunista e desconfiado era uma extraordinária tarefa para um extraordinário homem. Sem a sobre-humana simpatia e a sobre-humana confiança de Mário Soares talvez fosse impossível. Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; e Salazar percebeu. O regime não se inquietava excessivamente com a agitação da Baixa ou com um ou outro protesto de estudantes, nem sequer com as raras greves que o PC ia promovendo. Mas Soares falando à solta na América, na Alemanha ou em Inglaterra, era um risco real, ainda por cima com uma guerra em curso e sendo ele advogado do general Humberto Delgado, que a PIDE matara. Salazar não hesitou em o desterrar para S. Tomé.
Quando ascendeu a Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, provavelmente para mostrar o seu duvidoso liberalismo, arranjou uma tranquibérnia jurídica para permitir que Soares voltasse a Portugal. Voltou e imediatamente concorreu à eleição para a Assembleia Nacional (como na altura se chamava o “parlamento”) com uma lista de gente socialista ou próxima do socialismo, rompendo com a tradição de “unidade” anti-salazarista sob a qual o Partido Comunista se disfarçava sempre. Mais do que isso. Marcelo prometera eleições “honestas” (que evidentemente o não seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal um grupo de inspectores da Internacional Socialista, que as declararam falsas. Dali em diante, a presença em Portugal do homem que o denunciara em público como mentiroso e que lhe retirara qualquer espécie de legitimidade era intolerável para Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com a prisão e o desterro, Marcelo conseguiu que ele ficasse num exílio forçado até 1974. Mas perdeu mais com esta manobra do que ganhou. Por uma vez relativamente livre, Soares tinha tempo e meios para expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 a Internacional Socialista admitiu como membro pleno; e para escrever um livro, o “Portugal Amordaçado”, publicado em francês. Mas nem nestes anos de solidão se aproximou dos novos “resistentes”, que haviam fugido à PIDE, à guerra e a Penamacor (uma unidade penal), e que em Paris se deixaram absorver pelo “renascimento marxista”, conduzido por um louco, Louis Althusser, que acabou por se proclamar um profeta e matar a mulher. De revista para revista, esta gente discutia com ódio teológico as miudezas da sua fé, enquanto Soares tratava do que era importante e consequente.
Por essa altura, já o império soviético se começava a desfazer. A Europa de Leste e a própria URSS estavam endividadas ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em particular, não queria pagar uma segunda Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo depois do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crítica da política “revolucionária”. A Europa ocidental, pelo contrário, ainda não sentia a gravidade da sua decadência e abria a porta a um (ainda modesto) alargamento. Soares já se tornara parte dessa Europa. Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan, Nenni, Mitterrand e a generalidade das grandes personagens que, tarde ou cedo, decidiriam do nosso destino.
Em 1973, fundara o PS na Alemanha, com dinheiro alemão e o patrocínio do SPD, e no dia em que desembarcou em Santa Apolónia não desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita força sob a sua aparente fraqueza.

Uma democracia contra a vontade do PC e do MFA (28 jan 2017)
Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda.
Tirando as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA (que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava. No I Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, com o encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber que nenhuma “negociação” era possível quando o exército se insurreccionara precisamente para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de outro qualquer aliado, o trabalho de estabelecer uma democracia contra a vontade do PC e do MFA.
O PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de Leste, que os russos não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar, só queria uma “democracia de tipo diferente”, um conceito muito falado na guerra civil de Espanha e agora tirado do ferro-velho da seita. Em que consistia essa antiga monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia em fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia – incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença de ir à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração central e local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria rapidamente à miséria e uma larga parte dos militares, duramente analfabetos, acharam que na sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer represália, excepto evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes resolvesse aplicar por desobediência ou “desvio” político. O problema do dr. Soares era instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA; e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos serviços.
Posto isto, o PS precisava também de reforçar a sua organização e de se estender a todo o país. Em 1974, o partido não ia além de algumas venerandas figuras da I República, de alguma Maçonaria e de cinco ou seis dúzias de drs., espalhados pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise académica rejeitou quase completamente o que lhe parecia ser um instrumento do “sub-imperialismo” alemão. Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e fundou o MES (uma sombra do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa inqualificável loucura, os mais sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos num hotel de Lisboa, sob a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). Escusado será dizer que não intervieram em nada de consequente.
Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os golpes — porque eram verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à revelia dos poderes nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na rua manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas) fechou o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa compreenderam de uma vez quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu grande problema: a eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa original dos militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do dia essa eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus camaradas do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do PREC (como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não deixaria a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC, insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em Abril de 1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à volta de 12 por cento no PC.
Mas nem perante esta arrasadora evidência a “festa” terminou. À boa maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e caricaturavam a Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos representantes do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal garantia a uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal nunca haveria uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos de indignidade a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do seu bolso os seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de aparecer limpinha ao dr. Mário Soares.
A atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições de 75. As manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem falava no parlamento ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as “classes trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das partes tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas do PC (e a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não passava de uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou, à sua maneira, o golpe de 25 de Novembro, que removeu de cena os partidários do PREC.
Infelizmente, o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os militares no centro do regime político. O Presidente da República (Eanes) comandava efectivamente o exército. O Conselho da Revolução, sem espécie de mandato, aprovava ou desaprovava a legislação da Assembleia, com o propósito de preservar intacta a sua preciosa “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra algumas facções internas no PS e mesmo no PSD, acabaram por meter os militares nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio de influência política.
Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém, decidiu organizar um novo partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares, entretanto eleito Presidente da República, não o deixou viver. À primeira oportunidade dissolveu a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma maioria a Cavaco. E, de facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo e ressentimento e sem poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.

Nem às quintas-feiras nem aos outros dias (25 fev 2017)
Cavaco é um homem exemplar: bom filho, trabalhador, responsável, óptimo marido (em 50 anos de casado só não dormiu na mesma cama da mulher 1 por cento das noites, uma façanha pela qual a nação inteira o admira), perfeito pai, honesto, imparcial e dedicado. Não admira que os portugueses tenham feito dele ministro, primeiro-ministro e Presidente da República, embora seja um “intruso” na política, sem qualquer ambição pessoal e, sobretudo, odeie o ruído à volta do seu nome e a curiosidade à volta da sua pessoa. Não enriqueceu com as posições a que foi elevado. Quando está em Lisboa, vive num apartamento modesto (suponho que alugado) e, no Algarve, na “Casa da Gaivota Azul”, assim poeticamente chamada em homenagem a uma espécie de poema que Vasco Graça Moura lhe fez, não sei com que intenções, e que também tem, benefício da arte, um painel de azulejos do imortal Cargaleiro.
Sendo um bom católico e um homem de paz, Cavaco não odeia ninguém, excepto, claro, a gente que não o acha tão admirável como ele se acha, que lhe atrapalhou a vida, que não lhe obedeceu ou por puro desvario disse mal dele. Essa longa lista começa com Mário Soares (a grande força de “bloqueio”) que em Belém intrigava contra ele, que assistia sonolentamente às reuniões de quinta-feira e que no fundo (coisa que não escapou a Cavaco) o desprezava. Mas Vítor Constâncio (governador do Banco de Portugal) vem a seguir com a maioria dos dirigentes socialistas – e com Sócrates, um aldrabão, um ignorante e um obstinado, dado a cenas de hipocrisia e a fúrias contra tudo e contra todos. De qualquer maneira, e tirando estes parceiros da cena política, o inimigo principal de Cavaco eram os “media”, que merecem um parágrafo à parte.
Tanto como primeiro-ministro, como Presidente da República, ele execrou visceralmente “os media”. A concepção de política que o guiava era uma concepção de director-geral: o chefe bem informado e ajudado por especialistas, despachava no seu gabinete, longe do ruído da rua, a bem “do superior interesse da nação”; o governo e o parlamento aprovavam e a populaça fazia o que lhe mandassem. Tal qual como o Prof. Salazar gostava de fazer as coisas, com alguns ornamentos democráticos para disfarçar. Ora, os “media” criticavam, acusavam, distorciam. Um ou outro, como “O Independente”, até nem se coibiam de inventar notícias ou conspirações. Mais do que isso faziam dele uma figura do contínuo espectáculo da política indígena e ele não gosta de escândalos como o escândalo das “escutas”, que vários peritos dizem que ele próprio inventou. Fosse como fosse, apesar de alguns percalços, Cavaco conseguiu ficar no seu casulo, sem um acto decisivo que impedisse ou moderasse a crise em que o país caiu.
O que ele gostava naquele lugar do Estado era da proeminência que a situação lhe dava e da sensação de pertencer aos regentes do mundo. Com todo o cuidado apresenta no livro a prova fotográfica dos seus encontros com as celebridades que viu e ele julga que lhe dão lustre e por reflexo provam a sua importância pessoal: presidentes, primeiros-ministros, papas e similares. A vaidade paroquial do homem não tem medida; com os seus três papas, em particular, quase que se baba. Em contrapartida, o que mais lhe custava eram as reuniões com Sócrates (118 contou ele com o zelo com que contava a sua assiduidade ao leito conjugal). Em primeiro lugar, ele achava que Sócrates não passava de um mentiroso sempre pronto para o enganar. E, depois, Sócrates não percebia o que lhe diziam, se o que lhe diziam não concordava com os seus planos. Cavaco tomava notas numa estenografia secreta (que ele inventara na Faculdade) para se precaver de Sócrates e tentou até ao fim meter naquela cabeça irascível meia dúzia de noções elementares de economia e de finanças. Sem resultado.
A conclusão deste melodrama foi que os portugueses acabaram por sofrer uma crise, que o Presidente e o primeiro-ministro podiam adiar e com certeza atenuar. Cavaco previu o que ia acontecer desde pelo menos 2008. Mas não achou necessário prevenir os portugueses ou dissolver a Assembleia, porque a Constituição não lhe permitia interferir na política do governo. E, em matéria de lei, ele como qualquer director-geral era um devoto.
A comparação é fácil, mas ao ler estas 500 e tal páginas sem uma ideia, sem um pensamento sobre a situação e o futuro de Portugal, sem uma crítica ao sistema político, mas saturadas de uma satisfação incompreensível , não consegui esquecer Eça e os seus políticos: o conde de Abranhos, o conde de Gouvarinho, o genial Pacheco e o conselheiro Acácio. Reconheço, repito, a banalidade. Só que esta banalidade tem a vantagem de ser verdadeira.

Trumpolinices (14 maio 2017)
O mundo está perigoso e cada vez mais complicado. No meu tempo, antes do feminismo, o grande segredo de Washington era o número de damas com quem Kennedy diariamente dormia e a partilha amigável de uma delas com o chefe da Mafia de Chicago, que segundo a imprensa bem-pensante lhe comprara uns milhares de votos no Illinois. Mas, no fundo, ninguém se preocupava muito com esta história que o público até achava divertida. Norman Mailer escreveu um romance em que a intriga assentava parcialmente nela e Coppola acabou por tornar a Mafia Italiana numa parte legítima do folclore americano. Anos depois, veio Nixon com o seu bando de ladrões, que assaltaram o escritório de um psiquiatra e a sede do Partido Democrático no complexo Watergate. Nixon, que indirectamente lhes dera ordens, mentiu com quantos dentes tinha na boca e foi corrido da Presidência por indecente e má figura e também foi arrumado depressa na prateleira das curiosidades: aquilo não passava de um caso insignificante e sórdido.
Agora com Trump a questão é, além de inquietante, claramente sinistra. O indivíduo é acusado de ligações à Máfia Russa, não à doméstica Máfia Italiana, porque a Máfia Russa domina o mercado imobiliário de Nova York em que ele fez fortuna; e, pior ainda, de conluio com Putin (um homem forte que ele admira) para perturbar, ou falsificar, a eleição presidencial. Anteontem Trump pôs na rua o director do FBI, James Comey, que estava a investigar o assunto. As explicações para este inesperado despedimento (mesmo para Comey, que soube dele pela televisão) não sossegaram nem o bom povo, nem o Senado, nem os jornalistas. Trump embrulhou-se desde o princípio e, no meio da confusão, deu uma entrevista em que declarou que Comey (a vítima da sua fúria) o ilibara três vezes de qualquer espécie de manigâncias com a Rússia. Isto cheirou mal a toda a gente e convenceu os gurus políticos (que na América são uma força) que Trump se metera de facto em combinações com Putin e tremia com a ideia de que elas fossem descobertas. Há quem fale num novo Watergate. Absurdamente, porque o Watergate era uma simples ladroeira, e as supostas actividades de Trump envolvem, ou podem envolver, a segurança do Estado americano e por consequência do mundo. Começou um caminho arriscado em que o zelo da televisão e da imprensa se junta ao de uma parte do Senado e da Câmara para destapar o que Trump pretende alegadamente esconder. A violência dos debates não promete nada de bom.

Eles e Nós (21 maio 2017)
Quando, no sábado passado, Salvador Sobral ganhou o Festival da Eurovisão, toda a gente começou a dizer que “nós tínhamos ganho”, que “nós éramos os melhores” e mesmo “os melhores dos melhores”. Nem o Presidente da República, nem o primeiro-ministro escaparam a esta absurda identificação. Pior ainda: indivíduos sem a mais leve autoridade na matéria não se coibiram de explicar publicamente a natureza e qualidades da música de Luísa Sobral que acharam “simples” (não é), “diferente” (de quê?) e com tanto “sentimento” que ia “directa ao coração” (um comentário idiota e nulo). Ora, como se sabe, “nós” como entidade colectiva não contribuímos coisíssima nenhuma para o sucesso de Salvador Sobral e da irmã, e nada nos permite usar esse sucesso como pretexto para uma nova sessão de gabarolice nacionalista, que só a consciência da nossa mediocridade e da nossa miséria justifica e provoca.
Os portugueses precisam de sinais de uma importância e de uma grandeza que a realidade lhes nega. E porque sofrem dia a dia com a realidade qualquer pequena distinção lhes serve para se evadirem dela: a selecção de futebol ganha o campeonato da Europa (nós somos formidáveis); Guterres, que falhou tristemente aqui, é eleito Secretário-Geral da ONU (nós somos superiores); Salvador e Luísa Sobral ficam em primeiro lugar no Festival da Canção (nós somos logicamente incomparáveis). Isto mata. Não quero dizer que não se deva retirar um certo orgulho e um certo consolo de proezas como a de Kiev. O que digo é que o patriotismo português não se manifesta senão por transferência para um ocasional herói ou grupo de heróis. Não se manifesta porque não pode pela satisfação com o sistema de justiça, ou com a estabilidade das finanças do Estado, ou com o crescimento da economia, ou com o exemplar ordenamento das cidades. Sem diminuir o mérito dos nossos heróis, que é deles e não nosso, era bom começar por pedir que nos déssemos a nós próprios o que nos falta e o que merecemos. A expressão “Portugal está na moda”, que o cavaquismo inventou, é um símbolo do nosso fracasso; a glória reflectida nunca ajudou ninguém.
Só sexta-feira à noite percebi o que se estava a passar. O Presidente Marcelo, o primeiro-ministro, o presidente da Assembleia da República e a própria Assembleia enlouqueceram com Salvador Sobral. Não há a menor dúvida. E, para quem ainda duvide, basta ligar a televisão. Não me lembro de ver um espectáculo remotamente parecido (a Câmara dos Comuns, por exemplo, a aplaudir de pé Gardiner, Simon Rattle ou os Beatles). O populismo da classe dirigente portuguesa, toda ela, nunca desceu tão baixo. A pressa em roçar-se pela fama de um pobre cantor indefeso e desarmado mostra bem quem é esta gentinha da política, que Portugal inteiro despreza. Por um voto e um pouco de presuntiva simpatia, roubada ao próximo, vende unanimemente a sua dignidade e a dignidade das suas funções. O carácter, para ela, não passa de uma ficção. Agora sabemos quem nos governa.

O Ocidente e o Islão (10 junho 2017)
O terceiro atentado terrorista em Inglaterra desde Março produziu os lugares comuns do costume. A condenação dos jihadistas foi morna e estereotipada. Toda a oficialidade pediu mais medidas de segurança. O Ocidente inteiro chorou as vítimas. Mas como sempre ninguém tentou explicar politicamente o que sucedera. Porquê? Porque ninguém se atreve a revelar as verdadeiras causas desta violência contra sociedades à superfície pacíficas. As causas são claras. Em primeiro lugar, a América estabeleceu uma base na “terra santa” da Arábia e a seguir começou duas guerras em países muçulmanos: no Iraque e no Afeganistão. Esta criminosa estupidez está em grande parte na origem da violência que veio depois. Bush, Blair e os governos que na Europa lhes deram apoio militar e diplomático não conheciam nem se interessavam pelas condições no terreno ou pela natureza do seu inimigo, historicamente dividido em dois ramos inconciliáveis e em dezenas de seitas e organizações.
O islão é um mundo em crise, um mundo imerso numa guerra religiosa, que se confunde, como invariavelmente sucede, com a luta pela hegemonia de um bilião de muçulmanos. Qualquer intervenção de fora implica duas consequências. Por um lado, favorece uma facção ou facções dos beligerantes. Por outro, leva a América e as potências da Europa a conduzir elas mesmas uma guerra por interposta pessoa. A Síria é um bom exemplo. Não admira por isso que o ódio gerado no islão transborde para Nova York, Paris, Marselha, Manchester ou Londres, que os jihadistas compreensivelmente consideram parte do seu campo de acção.
A única maneira de acabar com ataques terroristas ao Ocidente seria que o Ocidente se retirasse por completo do islão, o que implicaria o fim da mais leve presença militar, económica ou política e mesmo de alianças formais com qualquer Estado muçulmano. Para nossa má sorte, os interesses que se opõem a uma medida tão drástica nunca o permitiram. Pelo contrário, basta olhar à volta para perceber até que ponto o dinheiro do islão ou, pelo menos, de uma fracção dele penetrou nas sociedades em que vivemos.
Para as nações da Europa que têm comunidades islâmicas, o problema é mais complicado. Os tempos do consumo e da boa cidadania passaram com a paragem ou quase paragem do crescimento, com o desemprego (principalmente dos jovens) e com a criação de guetos em bairros suburbanos ou simplesmente com a falta de habitação e o seu desmedido preço, como é o caso da Inglaterra. Perante a pobreza e a perspectiva de uma existência sem destino nada mais natural que, por mais assimilados que tencionassem ser, os muçulmanos ou os filhos de muçulmanos dirijam a sua raiva contra uma civilização que os seus preceitos religiosos radicalmente condenam – coisa que uma certa “tolerância” de Hampstead, de Saint Germain ou da Lapa, jamais percebeu. A maioria pacífica acabou por se tornar numa pequena minoria europeizada e próspera; o resto oscila.
Por essa razão, a análise académica do tipo e da metodologia dos atentados não ajuda muito. Por mais fina que seja a rede de segurança alguém escapará. O mal deve ser cortado pela raiz: retirar, nem que seja por fases, toda a interferência no islão (militar, económica e política); rejeitar o multiculturalismo tão querido à “inteligência” da esquerda; diminuir drasticamente a imigração; e por muito que doa à sra. Merkel, não aceitar nem mais um único refugiado.

Luto nacional (25 jun 2017)
…hopes expire of a low dishonest decade…
A primeira obrigação do Estado é garantir a segurança física dos cidadãos. Em Pedrógão Grande o Estado Português não a cumpriu e mostrou assim a sua fraqueza e a sua essencial ilegitimidade. Na sopa de aletria da meia dúzia de agências ou subagências governamentais que intervieram no caso, ninguém se entendia sobre nada. A que horas tinha começado o fogo e porque tinha começado? Porque não se tinha fechado a tempo a chamada “estrada da morte”? Porque não se tinham evacuado as pessoas que deviam ser evacuadas? Tinha caído um avião ali, a uns quilómetros, ou não tinha caído um avião? Existia um jornalista fantasma ou não existia? O que transpirava desta confusão eram informações contraditórias das várias autoridades envolvidas, todas visivelmente preocupadas em sacudir a água do capote para o parceiro do lado. A cena foi deprimente e aterradora. E no meio do caos, para o completar, desembarcaram o primeiro-ministro e o Presidente da República, com fatos de bombeiros, que não iam lá fazer coisa alguma de útil ou louvável, excepto evidentemente exibir a sua alma, exercício que ninguém lhes pedira ou agradecia.
Este espectáculo, pelo mortos e pelo sofrimento dos que não morreram, comoveu o país. Mas o mesmo país habitualmente assiste em paz de espírito às mais graves demonstrações da incompetência e degradação do Estado: investigações criminais que duram anos e anos (como a de Oliveira e Costa e, a seguir, a de Sócrates, a de Ricardo Salgado e as de várias dezenas de suspeitos menores); julgamentos sem fim; a maior dívida da história, que vai crescendo; políticas que se atenuam, interrompem ou simplesmente se metem na gaveta para não ofender parcelas ínfimas do eleitorado; actos egrégios de nepotismo e compadrio; a corrupção que se manifesta ou descobre em cada recanto da vida corrente e da vida pública nacional. O parlamento, depois de lamentar a infindável sequência de comissões de inquérito para prevenir incêndios, que não chegaram a parte alguma, nomeou outra comissão de inquérito; e as “personalidades” que roubaram milhões continuam a passear tranquilamente pelas ruas.
A grande pergunta é simples: porque havia de aparecer em Pedrógão Grande, por milagre flagrante do Altíssimo, um Estado previdente, eficaz e responsável? Não apareceu; e, como de costume, os mais fracos pagaram a conta. Seria bom que fizéssemos mais três dias de luto. Por nós.


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