quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Manuel Loff - A Peste



OPINIÃO
A peste
Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais.

27 de Fevereiro de 2020, 5:59

Oran, Argélia francesa, anos 40. Foi onde Albert Camus situou a sua narrativa sobre os efeitos que uma epidemia tem no comportamento coletivo. [Agradeço à Maria Abreu Pinto aconselhar-me a novela.] No dia em que o número de vítimas mortais atingiu a trintena, as autoridades decidem “declarar o estado de peste” por tempo indeterminado e fechar a cidade: ninguém pode entrar, ninguém pode sair. “A partir desse momento”, conta o narrador, “pode-se dizer que a peste foi um problema de todos nós. Até então, apesar da surpresa e inquietação (...), cada um dos nossos concidadãos tinha mantido a sua atividade como podia. (...) Mas, uma vez fechadas as portas, todos nos apercebemos termos sido apanhados no mesmo saco”. “A primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio” — o dos que, antes do bloqueio da cidade, haviam podido sair, e o exílio interior de quem ficara, “reduzidos à nossa condição de prisioneiros, ao nosso passado, e se mesmo alguns de nós se sentissem tentados a viver no futuro, rapidamente desistiriam, tanto quanto lhes era possível, ao sentir as feridas que a imaginação inflige àqueles que nela confiam”.

Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais. “Os media há muito exploram [a nossa perceção das ameaças] para captar a nossa atenção. (...) Em âmbitos como a política ou a saúde, a desinformação é particularmente nefasta porque nos pode levar a tomar decisões contrárias aos nossos próprios interesses sem ter conciência disso”, como lembra Ferran Lalueza (Universidade Aberta da Catalunha, Público.es, 25.2.2020).

Tudo quanto sabemos do contágio do coronavírus (processos, rapidez, efeitos) já o sabíamos há muito do banal vírus da gripe; ambos têm um grau de letalidade semelhante, muito inferior ao de epidemias anteriores (gripe A, das aves) com cujo alarme já então injustificado parece que não aprendemos nada. Doença originada num Oriente recorrentemente visto como fonte de ameaça (a China-das-doenças, como o Islão-do-terrorismo), ela tem-nos contagiado a todos da mesma paranóia descrita pelos cronistas do século XIV, ou do XVI, ou de tantos momentos da história anterior aos sistemas públicos de saúde, cheias de uma crueldade que tende a propagar-se muito mais célere que a solidariedade humana. Depois de vermos as aterradoras medidas de contenção social que o governo chinês tomou em regiões inteiras, cidadãos ucranianos repatriados da China apedrejados em protesto contra o seu regresso, chineses maltratados em cidades italianas, sujeitas, por sua vez, mal os primeiros casos se detetaram, a esquemas (frequentemente improvisados pelas autoridades locais contra o parecer das autoridades sanitárias) de controlo policial dos acessos, supermercados esvaziados, cancelamento de manifestações (culturais, desportivas, políticas) e transportes, escolas e fronteiras fechadas — as da Rússia com a China, da Áustria com a Itália, dentro de horas provavelmente de todas dentro da UE... Ontem, a ponderada diretora-geral de Saúde, Graça Freitas, conseguiu ainda duvidar da utilidade de “medidas desta natureza [que] só devem ser tomadas se trouxerem benefício efetivo para a saúde pública” (Antena 1, 26.2.2020); ao primeiro viajante que se confirme ter trazido de fora a doença, pedirão a cabeça dela...

Até parece que acabámos de descobrir os vírus e as suas formas habituais de contágio! De que serve fechar fronteiras, exigir que se mostrem passaportes, encostar um termómetro a uma testa de um qualquer de nós assintomático? De alguma coisa serve. Serve para continuar a alimentar esta cultura do medo coletivo que tem alastrado desde o 11 de Setembro. O medo, sabemo-lo há muito, “é um indicador de poder (...) uma emoção essencial na arte de governar”. O que agora se faz é “tentar despolitizá-lo”, como se ele não fosse uma forma de “enquadramento que retira responsabilidades e que pode chegar a aniquilar”, cumprindo o velho “lema de todos os dirigentes na história do mundo: fazer temer, em vez de fazer crer — sem nunca fazer compreender” (P. Boucheron, C. Robin, R. Payre, L'exercice de la peur, 2015).

Não surpreende que estes sejam tempos de racismo e de neofascismo.

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O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Historiador

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