* Amadeu Baptista
Às vezes, quando a pressão das entregas
[ aumenta,
ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha, onde
[ cada tarefa
é como a execução de um castigo. Pagam-me
[ mal,
mal tenho tempo para comer um pão ao meio-dia,
[ sinto
que a força
dos meus dezasseis anos não corresponde ao
[ parco
salário que me devem. De aqui a uns anos, irei
[ cumprir
o serviço militar, perderei a precaridade do
[ emprego, ainda ontem
uma das mulheres quase ficou sem um braço no
[ sector
velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo a
[ não ter dúvidas,
sofrer esta amargura endémica, a pobreza a
[ alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos
[ corrompidos
pelo vinagre da luminosidade, a consciência das
[ coisas
ilegítima na compreensão da linguagem, eu
[ calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas,
[ embrenho-me
aos domingos na multidão triunfante, gasto em
[ vinho a humilde
alegria
que as pequenas vitórias me consentem,
[tremem-me
as mãos só de pensar que existe amor no mundo,
[ algures,
longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava de saber
[ o nome
deste usufruto da terra, quais as cumplicidades
que tornam tudo isto possível, em que lugar de
[ fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue e de
[ arestas, e duvido
das proféticas sentenças sobre a vida que me
[ oferecem, sem que
as contemple, ao menos um instante. Ao fim da
[ noite,
aconchego-me ao sol da praia predilecta do meu
[ coração,
tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio na
[ morte
como única solução, maldito quem por minha vez
[ alguma vez
pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa de ter
[ aberto
uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra
[ carga
chama-me,
obedeço cegamente ao encarregado geral,
[ ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria onde
[ ninguém produz
porque não vale a pena.
Da revista Cadernos do Tâmega, nº 3
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