Os brasileiros “têm meia
língua portuguesa”? Quando as palavras são motivo de discriminação
O que o Atlântico separa a língua
portuguesa une. Ou não? Matias foi alvo de chacota por causa do sotaque;
Jullyana foi avisada para fazer um exame em português europeu e a Thalita
disseram que os brasileiros só têm “meia língua portuguesa”. A todos pedem (ou
exigem?) que falem “português correcto”. Mas, no Dia Mundial da Língua
Portuguesa, perguntamos: o que é o português correcto?
5 de Maio de 2021, 8:08
“Por favor, façam o exame em
português de Portugal, porque eu não entendo nada do que vocês escrevem”: a
ordem foi dada antes de um exame do curso de História da Arte, mas não havia
sido a primeira vez que Jullyana Rocha se tinha sentido confrangida por não
falar português europeu.
Antes, quando foi mudar a morada
a uma repartição de Finanças, teve o mesmo problema. “Fui com todos os
documentos e expliquei à senhora que precisava de mudar a morada fiscal.
Tentei-me explicar umas quatro vezes e ela simplesmente dizia que não entendia
o que eu estava a falar. Ainda nem usávamos máscara, por isso não havia nenhum
impedimento”, recorda a brasileira de 25 anos, a viver em Portugal desde 2017.
Não é caso único: os relatos de
brasileiros a viver em Portugal que dizem ser discriminados por “não falarem
português correcto” multiplicam-se nas redes sociais. Na página
de Instagram Brasileiras não Se Calam, por exemplo, em que são
partilhados relatos de xenofobia, é recorrente encontrar denúncias de
discriminação por causa da língua: em situações do quotidiano, nos locais de
trabalho, e, diversas vezes, nas faculdades.
Foi lá que Jullyana e os colegas
brasileiros foram avisados para realizar o exame em português europeu, e foi
esse momento, aliado a muitos
outros de discriminação, que a fizeram sair do curso e optar por estudar
Marketing remotamente, numa universidade brasileira: “Não quis voltar para o
sistema de ensino de aqui.”
Também Matias Guimarães foi alvo
de chacota quando chegou atrasado a uma aula. “Quando entrei na sala, o
professor começou a fazer uma série de críticas e piadas sobre o meu sotaque,
sobre eu ser burro pelo meu sotaque, por não falar direito”, relata. Pelo que
tem ouvido, refere, “há pelo menos um professor em todas as faculdades que
reclama que os brasileiros não falam da maneira mais correcta”. Mas o que é,
afinal, o português correcto?
“A língua pode ter diversas
cores”
“Desde que somos crianças, a
escola diz-nos que certas formas são correctas e outras são incorrectas”,
começa por enquadrar Ronan Pereira, doutorando em Linguística pela Universidade
Nova de Lisboa. Há, no entanto, uma premissa que é importante não esquecer: “As
línguas não são elementos estáticos. Elas variam territorialmente, ao longo do
tempo, de acordo com as classes sociais, etárias... Mas, por algum motivo,
temos na nossa cabeça que a língua é uma coisa só.”
Ora, quando uma criança vai para
a escola, não é possível abordar todas as formas que uma língua pode ter. O
ensino foca-se, então, no ensino da gramática normativa, aquela que nos diz as
regras a seguir para escrever e falar correctamente. É essa gramática que
estabelece o padrão, e é importante que seja ensinada, “porque, se todos
começássemos a escrever como nos apetece, a coisa ficava confusa”, refere o
linguista.
Quando falamos de português
europeu e português brasileiro, estamos a falar de “duas variedades
linguísticas” — o que mostra que “a língua é uma definição algo abstracta e,
neste caso, vemos como a língua portuguesa pode ter diversas cores”. E nem é
preciso atravessar um oceano para encontrar estas variedades: dentro do
território continental encontramos muitas formas de falar português. A
diferença é que “uma pessoa de Évora vai ter muito mais em comum na sua
gramática mental com alguém de Coimbra do que com alguém de São Paulo”.
Os “entraves” linguísticos
começaram a sentir-se no dia-a-dia de Mônica Santos logo desde
que veio para Portugal, há três anos. “Uma atitude quotidiana como ir a uma
padaria era muito difícil, porque o meu simples pedido de um pão era pouco
percebido pelas pessoas, porque não queriam”, conta. “Existia uma certa
necessidade de demonstrar que não estava a falar da melhor forma, era
satirizada”, continua.
Foi também na faculdade que
experienciou situações “mais fortes”. Ainda que seja necessário apresentar uma
declaração de proficiência em língua portuguesa ao ingressar na faculdade, esta
não especifica a necessidade de ser em português europeu. E, quando as aulas
começam, “os professores são bastante críticos na forma como escrevemos
relatórios, trabalhos, etc.”, lamenta. Chegam até a descontar pontos pela
escrita, refere.
“Ouvir dizer todos os dias que
falamos brasileiro em vez de português é o mesmo que dizer que nos Estados
Unidos se fala ‘americano’ e que na Austrália se fala ‘australiano’, quando na
verdade todos falam a língua inglesa.”
Alguns portugueses “olham com estranheza”
quando Thalita Meros diz que dá aulas de Português. A viver em Portugal desde
2019, veio fazer mestrado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e,
como já tinha experiência em dar aulas no Brasil, começou a dar aulas
voluntariamente a estrangeiros em Portugal. Quando alguns alunos lhe dizem que
“não querem aprender português brasileiro”, a professora de 38 anos explica que
“não funciona assim”, que há materiais didácticos e que “a regra é comum para
todos”.
“O português é uma língua
multicultural. As pessoas que vão para a minha aula vão ouvir o sotaque do
português de Portugal todos os dias na rua, vão acabar por pegar um pouco”,
afiança. Mas pergunta: “Que estrangeiro fala realmente com o sotaque português de
Portugal? Se ensinar português a um espanhol, ele vai falar com o sotaque
espanhol.”
Também ela já viveu situações de
preconceito por causa da língua. Numa ida ao Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras, quando teve de indicar o número de telemóvel, disse “meia”, em vez
de “seis”, como é comum no Brasil. Do outro lado ouviu: “Os brasileiros têm
meia língua portuguesa.”
A globalização da língua
portuguesa “traz muitos desafios”, começa por dizer Patrícia Ferraz de Matos, antropóloga e investigadora auxiliar
no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “Em primeiro lugar,
porque o português que se fala em vários continentes não é exactamente o mesmo
e tem muitas variantes — nacionais, regionais e locais. Em segundo lugar,
porque este movimento para criar um Dia da Língua Portuguesa não se centra apenas
nesta e parece querer estender-se a outros fenómenos culturais, ou seja, parece
ser mais ambicioso.”
E porque não olhar para essas
variantes como um factor de enriquecimento? Afinal, como relembra a
investigadora, “é devido ao Brasil e ao seu tamanho que o português é hoje uma
das cinco línguas mais presentes no espaço digital”.
Também inserida no espaço
académico, a antropóloga refere que, “embora o português do Brasil seja
admirado na literatura” (veja-se “a riqueza do vocábulo dos livros de Jorge
Amado, por exemplo”), o mesmo não acontece nas aulas ou avaliações. No
doutoramento em Antropologia, onde é docente, aceita teses escritas em
português do Brasil ou português africano, por exemplo. Mas nem sempre é assim,
como a experiência de Jullyana mostra.
A variedade mantém a língua
viva
Mas de onde vem, afinal, a ideia
de que o português do Brasil não é correcto? “Durante o processo evolutivo do
português brasileiro, surgiram formas coloquiais que são violações à gramática
mental dos falantes de português europeu”, explica Ronan Pereira. Um exemplo:
“Eu vi-o”, como diz um português, versus “eu
vi ele”, dito por um brasileiro. “Para a gramática mental de um português, [a
segunda formulação] soa mal, mas isso não quer dizer que o falante de português
brasileiro fale mal. Ele fala a sua variedade, que tem essa estrutura.”
Na verdade, quanto mais
portugueses e brasileiros se aproximarem da norma gramatical — ou, por outras
palavras, quanto mais correctamente falarem —, mais próximos ficam. Se assim
fosse, “teríamos sotaques diferentes, o que é completamente natural e acontece
em todas as línguas, mas a questão estrutural seria basicamente a mesma”,
explica o linguista. “A regra é comum para todos”, acrescenta Thalita.
“Alguns dos preconceitos actuais
podem ainda ser resquícios do passado”, refere Patrícia Ferraz de Matos. Podem
estar relacionados “com as várias influências que o português do Brasil
recebeu”. “É como se o português do Brasil fosse menos puro do que o português
europeu, ao qual se associa por vezes uma identidade própria, associada à
antiguidade do país na Europa, à sua permanência como país independente ao
longo de vários séculos, sem nunca se ter subjugado ao poder (e língua)
espanhol”, contextualiza.
A herança cultural, marcada por
séculos de colonialismo, é, para Matias Guimarães, a principal justificação
para esta discriminação. “Sinto que existe uma parcela da população portuguesa
que vê as ex-colónias como inferiores de diversas formas”, atira. E essa
percepção é generalizada. “Os mais velhos têm um sentimento de nacionalismo
muito forte, acham que estamos para reconquistar o que nos foi tirado na época
dos descobrimentos, como já ouvi muitas vezes”, refere Jullyana.
Thalita chama-lhe “saudosismo da
língua”. Acredita que o pensamento comum é, muitas vezes, este: “Eu levei a
língua para esse país e eles estragaram-na, deviam mantê-la como é aqui.” Ou,
em forma de pergunta, como já fizeram a Mônica: “Quem é que inventou a língua?”
Esse saudosismo, acredita
Thalita, poderá estar prestes a acabar, com ajuda das gerações futuras. “Os
alunos de hoje já têm questões sobre a variação linguística nos seus manuais”,
afirma. “A variação agrega muito. Tem algumas palavras que são diferentes? Tem.
E isso só vai acrescentar”, atira. Patrícia Ferraz de Matos vai mais longe: “É
talvez essa riqueza que mantém a língua viva — a de um conjunto diversificado
de pessoas que a utiliza há vários séculos, mas que a vai adaptando e fazendo
evoluir.”
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