segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Conde de Ferreira: negreiro ou benemérito?, por José Manuel Amarante

* José Manuel Amarante

16 de Junho de 2020, 16:11

A morte de George Floyd em Mineápolis, desencadeou uma onda antirracista internacional, tendo nos Estados Unidos e no Reino Unido, entre outras consequências mediáticas, a decapitação ou destruição de estátuas de esclavagistas ou colonialistas. Em Bristol, no passado domingo, a estátua de Edward Colston, que no século XVII traficou mais de oitenta mil seres humanos, dos quais 15 mil eram crianças, foi derrubada e atirada às águas do porto. Em Londres, foi retirada do local a estátua de Roberte Milligan, comerciante de escravos no século XVIII, para evitar a sua destruição. E entre nós, esta semana, foi vandalizada uma estátua do Padre António Vieira.

Estas acontecimentos, recordaram-me um episódio decorrido há cerca de 20 anos, no Hospital da Ordem do Carmo, quando num sábado de manhã, estando eu a contemplar uma enorme pintura retratando o Conde Ferreira - coberto por um manto vermelho encimado por uma linda gola de pele branca -, enquanto aguardava por uma doente que, mal se aproximou, ao ver-me a olhar para o quadro, exclamou: Grande homem este Conde de Ferreira. De imediato, retorqui: terá mesmo sido um grande homem? Lembrei-lhe que além de benemérito e filantropo tinha sido também um dos últimos traficantes de escravos.

Mas quem foi afinal Joaquim Ferreira dos Santos mais conhecido por Conde de Ferreira? Nasceu em 1782 em Campanhã, no Porto, sendo o quinto filho de uma família de agricultores. Com futuro incerto - na época as terras eram herdadas pelo filho mais velho -, entrou no seminário, tal como um dos seus irmãos, mas cedo o abandonou, para se tornar caixeiro no Porto, aos 14 anos. Emigrou pouco tempo depois para o Rio de Janeiro, em 1800, com uma carta de recomendação de um familiar. Aí se dedicou ao comércio, por consignação, de produtos alimentares enviados de e para o Porto. Mais tarde expandiu os seus negócios a outras áreas, diversificando as ligações comerciais, nomeadamente para Lisboa, Angola e até mesmo para Londres.

Casado, por pouco tempo com a argentina Severa Lastro, adquiriu a nacionalidade brasileira aquando da independência do Brasil. Bem integrado social e economicamente na sociedade do Rio, recebeu de D. Pedro a comenda da Ordem de Cristo (em recompensa de uma beneficência).

Cedo descobriu o rentável negócio que na época prosperava no Brasil: o açúcar e a mão de obra barata, isto é, o comércio de escravos.

Estabelece, para tal, contactos com comerciantes em Luanda, viajando para Angola, aventurando-se no interior de Cabinda para contactar como o régulo local, com o qual viria a estabelecer feitorias nomeadamente em Molembo, tendo em vista o envio de escravos para o Brasil. Tratava-se de uma viagem arriscada que, no entanto, repetiria mais duas vezes até estabilizar o negócio, passando a controlar o tráfico a partir do Rio de Janeiro.

Esta, era uma atividade altamente lucrativa. O barco transportava do Brasil para Angola, entre outras bens, panos, pólvora, ferragens e álcool, regressando repleto de escravos. Calcula-se que tenha transportado de Angola para o Brasil cerca de 10.000 escravos, que vendia a fazendeiros, proprietários de engenhos, recebendo em troca açúcar que posteriormente comercializava com lucros altíssimos.

Após a abolição da escravatura no Brasil, em 1830, esta atividade acabou por lhe trazer grandes contrariedades. Devido ao tratado assinado entre o Brasil e a Inglaterra, aos cidadãos brasileiros estava vedado o tráfego de escravos. Joaquim Ferreira dos Santos viria então a ser acusado de tráfico, tendo passado por problemas judiciais e apodado de negreiro e esclavagista.

Foi sobretudo a humilhação social porque passou o que mais o incomodou, apesar de ter sempre reclamado o escrupuloso cumprimento da lei e inocência.

Por esse motivo acabou por regressou ao país, inicialmente com a intenção de um dia voltar ao Brasil, desembarcando em Lisboa em 1832, onde de novo viveu a experiência do naufrágio (já antes, aquando da sua primeira partida para o Brasil, o navio tinha naufragado na barra do rio Douro).

Instalado no Porto, continuou a fazer comércio com sucesso e a envolver-se progressivamente em atividades sociais, acabando por apoiar ativamente Costa Cabral. Foi nomeado pela Junta Provisória, Presidente da Comissão do Tesouro, empenhando-se a fundo na causa Cabralista. Torna-se Par do Reino em 1842, retomando a cidadania portuguesa. Entretanto foi nomeado Fidalgo, Cavaleiro da Casa Real, membro do Conselho da Rainha D. Maria II, Comendador da Ordem Militar de Cristo, e da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Recebeu a Grã-Cruz da Ordem de Isabel a Católica de Espanha e foi sucessivamente Barão, Visconde e em 1850, Conde.

Faleceu aos 84 anos de idade na freguesia do Bonfim, no Porto, em 1866, sem deixar descendência direta. Doou a sua enorme fortuna, perpetuando assim o seu nome em obras de grande significativo e impacto na sociedade portuguesa.

Entre os beneficiados contam-se muitos colaboradores, parentes, amigos, e várias instituições e fundações de beneficência e utilidade social, como as Santas Casas da Misericórdia do Porto e do Rio de Janeiro (com a obrigação de vestirem 24 e 12 pobres, respetivamente,  no aniversário do seu falecimento).

A outras instituições de beneficência do Porto, tais como as Ordens Terceiras do Terço, da Trindade, de São Francisco e do Carmo - razão da presença aí, da pintura do Conde -, legou avultadas quantias para os respetivos hospitais. Parte do seu legado destinou-se ainda a uma enfermaria no Hospital da Santa Casa da Misericórdia da Cidade do Porto, o Hospital de St.º António, para tratar pelo sistema homeopático vinte doentes pobres e a abertura de um consultório homeopático (há anos o diretor desse Hospital, o Dr. Fernando Sollari Allegro, contou-me ter aí encontrado, aquando da arrumação de um espaço pouco visitado, um livro com a contabilidade do tráfico de escravos).

Doou verbas para o recolhimento de meninos e meninas abandonadas, nomeadamente à Creche das Irmandades dos Clérigos e da Lapa. As Casas da Correção, de Detenção, de Recolhimento dos Velhos e de Recolhimento dos Órfãos e as Fábricas das Paróquias de Campanhã e do Bonfim, foram também contemplados, tendo também legado dotes a 50 meninas (honestas e virtuosas, e que tenham tratado os seus pais com respeito e amor filial). Deixou ainda 30 esmolas a viúvas honestas e 50 esmolas a famílias a quem tenha faltado o chefe ou a pessoa que as sustentava.

Destinou verbas substanciais para a construção de 120 Escolas de Instrução Primária, para ambos os sexos, colocando como condição que as escolas fossem construídas por todo o país, em vilas e sedes de concelho, todas com a mesma planta e com comodidades para os professores para aí residirem. Depois de terminadas, deveriam ser entregues às respetivas juntas de paróquia. As “Escolas Conde de Ferreira”, com um estilo arquitetónico próprio, inconfundível, foram um marco muito relevante na história da educação e do ensino público em Portugal.

Com o remanescente da sua grande herança foi construído e equipado o Hospital de Alienados do Conde de Ferreira, no Porto, destinado a doentes de foro psiquiátrico, durante vários anos referência nacional na abordagem da saúde mental em Portugal.

Passada em revista a história da vida de Joaquim Ferreira dos Santos, mantém-se a questão que coloquei, nas escadas do Hospital da Ordem do Carmo, frente ao quadro de Conde de Ferreira: Terá o Conde sido um grande benemérito ou um dos últimos negreiros portugueses?

Que enriqueceu no Brasil como negreiro não há dúvidas. Se no final da sua vida emergiu a vertente filantrópica ou se pretendeu redimir-se e “negociar” a paz ou um lugar eterno, nunca o saberemos. De facto, em diferentes momentos, protagonizou ambas as personagens (esclavagista e benemérito).

Está sepultado no cemitério de Agremonte, no Porto, tendo um mausoléu com a sua figura esculpida em mármore de Carrara, por António de Soares dos Reis, o mesmo autor da estátua que se encontra à entrado do Hospital Conde de Ferreira. Seria um terrível contrassenso alguém pensar destruir ou vandalizar estas obras de arte, de um escultor nacional de referência, expostas em espaços reservados e erigidas pouco depois da sua morte.

Citando o historiador Miguel Bandeira Jerónimo: “podemos olhar criticamente com a nossa moral do presente para aquilo que aconteceu há 50 anos, mas não há 200 anos?” Qual o critério?

A meu ver, Conde de Ferreira deverá ser recordado de frente, com toda a verdade, tendo em conta os valores morais e éticos da época em que viveu.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

https://www.publico.pt/2020/06/16/opiniao/noticia/conde-ferreira-negreiro-benemerito-1920759


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