Passeios
Rota Memorial do Convento: de Lisboa a Mafra, seguimos
Sete-Sóis
A Rota Memorial do Convento leva-nos por lugares da obra de
Saramago e monumentos do século XVIII, numa viagem que tem tanto de literatura
quanto de património histórico-cultural.
12 de Junho de 2021, 8:01
Numa taberna ao lado da Casa dos Diamantes, nome pelo qual
também é conhecida a Casa dos Bicos, hoje
sede da Fundação José Saramago, Baltasar Sete-Sóis “comprou três sardinhas
assadas, que sobre a indispensável fatia do pão, soprando e mordiscando, comeu
enquanto caminhava em direcção ao Terreiro do Paço”.
É ali, no Campo das Cebolas e da oliveira onde pousam as
cinzas do escritor, então mercado da Ribeira Velha, em frente à Casa dos Bicos,
onde “as vendedeiras gritavam desbocadamente aos compradores”, sacudindo
braceletes, fios, cruzes, berloques e cordões, “tudo de bom ouro brasileiro”, que
desembarca em Lisboa o protagonista do Memorial do Convento e arranca a
nova rota dedicada à obra de
José Saramago.
Não fosse a pandemia, estariam agora os aromas na grelha a
invadir o bairro-alma dos arraiais dos Santos Populares. Mantêm-se as sardinhas
na oferta de algum restaurante, que começa a ser tempo delas, e sendo assim é
possível seguir Sete-Sóis nos passos e no petisco até ao Terreiro do Paço,
segunda paragem no roteiro, onde arranca a obra do escritor português, narrando
a união entre o rei D. João V e a rainha D. Maria Ana Josefa, e palco de uma
das histórias mais emblemáticas do livro, a do padre Bartolomeu e da sua
passarola.
De seguida, suba-se ao Rossio para recordar o primeiro
encontro de Baltasar
e Blimunda, lado a lado no auto-de-fé onde a mãe da protagonista é
condenada por feitiçaria pela Inquisição. “E Blimunda disse ao padre, Ali
vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto,
perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo
o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam
Sete-Sóis.”
De Lisboa a Mafra
A nova rota, projecto iniciado em 2017 e agora lançado
oficialmente, parte do romance publicado em 1982 pelo prémio Nobel da
Literatura para criar um roteiro turístico que nos leva da Casa dos Bicos até
ao Largo da Igreja de Cheleiros, num percurso com cerca de 58 quilómetros,
atravessando os concelhos de Lisboa, Loures e Mafra. Iniciativa conjunta das
três autarquias, nasce em parceria com a Fundação José Saramago.
“Trata-se de uma rota eminentemente literária, no sentido em
que nasce de um livro, mas é uma rota que tenta abranger também outras
componentes da cultura num sentido mais lato, sejam o património
arquitectónico, religioso, a gastronomia...”, aponta Sérgio Letria, director da
fundação, entidade que, desde a assinatura de um protocolo com as autarquias em
Novembro do ano passado, assume a comunicação e a organização das actividades de
divulgação da rota.
Para 2021, em datas ainda a anunciar, estão agendadas três
visitas guiadas temáticas e três visitas mais gerais, uma por concelho. No
entanto, através do site do projecto, do folheto informativo e dos painéis
colocados em cada um dos pontos assinalados no mapa, é possível (re)descobrir
obra literária, monumentos e paisagem de forma autónoma. Basta desempoeirar o
livro e pôr pés ao caminho.
Por aqui navegaram reis, tijolos e estátuas
Chegados ao concelho de Loures, afastamo-nos do livro para
nos concentrarmos na História. Não existe qualquer menção ao rio Trancão na
obra de Saramago, mas sabe-se ter sido por aqui que foram transportados muitos
dos materiais, estátuas e sinos que constituem
hoje o Palácio-Convento de Mafra, monumento cuja construção dá corpo à
narrativa do romance.
No século XVIII, a foz plácida que agora vemos desaguar no
Tejo era “muito profunda e, por vezes, agitada”, ao ponto de impedir a
travessia das barcas de uma margem para outra. “Era conhecido como o mar de
Sacavém”, contam Florbela Estêvão e Paula Pitacas, da autarquia de Loures. Numa
época em que o transporte fluvial era ainda o mais utilizado, havia até “uma
carreira de barcos” que, duas vezes por dia, ligava Lisboa e Santo Antão do
Tojal, do Trancão ao Tejo, e vice-versa.
É difícil acreditar, olhando o fio de água que corre entre as
areias lamacentas, que aqui existiriam vários cais e toda a espécie de embarcações, das
barcas de passagem às da pesca, passando pelo transporte fluvial de
mercadorias, incluindo sal, as hortaliças das explorações agrícolas que ficam
logo ali e, grão a grão, boa parte do colosso de Mafra, mais os homens que o
ergueram e o rei que o mandou construir.
“O que pretendemos aqui foi valorizar a importância do
Trancão no contexto da obra literária e de todo o território que envolvia a
cidade de Lisboa no século XVIII”, aponta Florbela Estêvão. Daqui, e de cada um
dos pontos assinalados na rota, nasce também “uma proposta de lugares a
visitar” na área circundante, desmultiplicando o itinerário por tantos outros,
consoante o interesse de cada um.
Em Loures sugerem-se, por exemplo, os dois centros
interpretativos mais intimamente ligados ao tema: um dedicado ao contexto
histórico-cultural da região no século XVIII, no museu municipal, e outro sobre
alguns dos lugares relacionados com a obra de Saramago e a edificação do
palácio-convento, na biblioteca municipal. Mas também igrejas, o museu de
cerâmica ou o forte de Sacavém, entre outros.
A bênção dos sinos
Uma vez no Trancão, as embarcações subiam o rio até Santo
Antão do Tojal, onde materiais e homens eram desembarcados para seguir caminho
por estradas reais até Mafra. Na verdade, o leito do rio passa ao largo da
povoação vizinha, mas el-rei mandou criar “um canal aberto a braço”, escreve
Saramago, para desaguar mais próximo do Palácio dos Arcebispos a comitiva real,
as estátuas italianas que veremos à entrada da basílica (e que, no livro, o
escritor põe a conversar umas com as outras), ou os 119 sinos, há-de contá-los
Filomena Santos já nos telhados do palácio-convento, que aqui foram abençoados,
montada uma barraca real para o efeito e ao longo de várias cerimónias solenes,
com presença de D. João V e sua corte.
Isto porque, elevada a diocese de Lisboa a patriarcado, Tomás
de Almeida, primeiro patriarca de Lisboa, segunda figura do reino, “vai
promover um conjunto de obras” para tornar a residência de Verão do
arcebispado, em Santo Antão do Tojal, num “espaço nobre e de acordo com o seu
estatuto social, económico e político”, conta Florbela Estêvão, em plena praça.
Desenhada pelo arquitecto italiano António Cannaveri, destaca-se
a carga cenográfica da monumentalidade do largo e dos edifícios de pompa
barroca, cercados de casario rasteiro e terrenos agrícolas. No meio rural,
“recria-se o meio urbano”, uma “Praça do Comércio em escala contida e reduzida
ao local”. Lá ao fundo, a fonte-palácio e, atrás, o aqueduto. Ao nosso lado, a
igreja, ampliada por Tomás de Almeida, e o Palácio dos Arcebispos,
requalificado com painéis de azulejos notáveis em todas as salas, uma escadaria
de aparato onde reluzem de amarelo-dourado as vestes das três figuras de
convite, e outros pormenores característicos do período barroco.
A propriedade continua a pertencer ao Patriarcado de Lisboa,
mas é gerida pela Casa do Gaiato. “Em tempos, os miúdos ficavam dentro do
palácio. Há fotografias das salas com camas, eram as camaratas.” Actualmente, a
instituição aluga a utilização dos espaços para eventos privados (casamentos,
por exemplo), como fonte de rendimento. No entanto, é possível visitar os
jardins de alamedas simétricas, tanques e pombais adornados a azulejos, assim
como as salas do palácio através de marcação prévia com a autarquia de Loures.
É aqui que nos reencontramos com
o Memorial do Convento e Baltasar Sete-Sóis, “boieiro de uma das
juntas que vão puxando S. João de Deus, único santo português da confraria
desembarcada da Itália em Santo António do Tojal e que vai, como quase tudo de
que se fala nesta história, a caminho de Mafra”.
Mafra, a obra
Por outras estradas, mais suaves e quase sempre cortadas a
direito, no conforto do autocarro e de estômago refastelado no Solar dos
Pintor, na Manjoeira, também nós seguimos para Mafra, tentando imaginar aquelas
“dezoito estátuas em dezoito carros, juntas de bois à proporção, homens às
cordas na conta do já sabido” e Sete-Sóis a braços lá metido, numa caravana de
trabalhos que só não se compara à da “pedra de Benedictione”, quem estudou a
obra de Saramago dificilmente esquece aquele que é um dos momentos-chave de Memorial
do Convento.
Já a temos sobre as cabeças – para trás ficaram as tormentas
descritas pelo escritor, oito dias completos para trazê-la de Pêro Pinheiro,
com duzentas juntas de bois e 600 homens –, parece pequena a alva laje de
mármore vista cá de baixo, cinco metros por três, com uma racha que vai até ao
capitel. É a base da varanda da janela central da Sala da Bênção virada ao
terreiro, onde o rei podia aparecer “a saudar o povo, com um cenário de igreja
por trás, como se ele próprio fosse o Papa em São Pedro do Vaticano”, aponta
Filomena Santos, do serviço educativo do Palácio-Convento de Mafra. “O
convento fica do lado de trás, mas como o palácio também ocupa todo o último
piso, ficando sobre o convento, simbolicamente temos o poder do rei sobre o
poder da igreja.”
Desde o torreão norte, apartamento do rei, ao torreão sul,
apartamento da rainha, vão 232 metros – medida da “distância da intimidade no
século XVIII quando falamos da família real”, atira Filomena. “Saramago dá
ênfase a isso, fazendo o paralelo entre a família real e a família do povo,
colocando-se, obviamente, sempre do lado do povo, porque a grande opção dele é
elogiar quem faz, quem constrói”.
Para se erguer o monumento, classificado
como Património Mundial pela UNESCO em 2019, chegaram “a trabalhar em Mafra
e para Mafra” cerca de 45 mil operários e sete mil soldados, desde a colocação
da primeira pedra, em 1717. De convento para 13 frades, D. João V decidiu subir
para 40, depois 80 e, por fim, 300 e, dois anos antes da bênção da Basílica de
Mafra, avança ainda que também quer um palácio. “É o que faz o dinheiro do ouro
do Brasil.” Os trabalhos na basílica já estavam tão avançados que fica-se em
tamanho para 80 frades e é inaugurada em 1730, ainda sem cúpula nem as estátuas
que agora admiramos à entrada, trazidas em caixas e cobertas de lã, “porque a
palha mói e havia risco de se partirem”.
Quando o Memorial do Convento se tornou leitura
obrigatória na disciplina de Português, o Palácio de Mafra “começou a trabalhar
com as escolas” e a fazer visitas guiadas sobre a obra. “Antes de ter sido
retirado e substituído pelo Ano da Morte de Ricardo Reis, acompanhámos à
volta de 32 mil alunos e tivemos à volta de 30 mil a assistir ao espectáculo de
teatro”, contabiliza Filomena.
Haveremos de entrar para espreitar a basílica, subir à
enfermaria e cruzar as celas, somar salas e salas, subir junto da “caixa de
música gigantesca” de um dos carrilhões até aos telhados, descer à biblioteca e
à antiga zona conventual, hoje sede da Escola de Armas. E, com tudo somado, já
não haverá tempo para mais paragens no roteiro. Para fazer tudo, seriam
precisos dois dias, garantem-nos. Ficam fixadas as moradas das três igrejas por
onde falta passar no concelho de Mafra, para um regresso: São Miguel de
Alcainça, localidade onde, na obra, se encontram as estátuas com os noviços;
Santo André de Mafra, muito perto de onde ficaria “a casa dos Sete-Sóis”; e a
Igreja de Cheleiros, localidade onde, durante a travessia da pedra, “ficou um
homem para enterrar” e “a carne de dois bois para comer”. Porque “o rei faz a
promessa, mas quem a cumpre é o povo”, dizia Filomena há pouco. E o Memorial
do Convento não os deixa esquecer.
Montemor-o-Novo, concelho onde se desenrola a maior parte da
acção do livro de José Saramago "Levantado do Chão" DANIEL ROCHA
A obra de Saramago em rotas pelo país
Há “outras rotas literárias também a nascerem” da obra
deixada pelo escritor português, aponta Sérgio Letria, presidente da Fundação
José Saramago, junto à Casa dos Bicos, de onde parte este roteiro inspirado
pelo romance Memorial do Convento.
Em Fevereiro do ano passado, foi inaugurado o roteiro
literário Levantado do Chão, dedicado à obra homónima, desenhado pela
autarquia de Montemor-o-Novo, onde se desenrola grande parte do livro, em
colaboração com o município de Évora, o Museu do Aljube e a Fundação José
Saramago. No final de Maio deste ano, nasceram o site e a aplicação
móvel do projecto.
E se, “há três ou quatro anos”, a fundação guia passeios
literários em Lisboa pelo Ano da Morte de Ricardo Reis, no início
de Junho deverá ser apresentado novo roteiro,
desta vez inspirado na obra Viagem do Elefante, organizado pela
associação Territórios do Côa. “Em 2009, fizemos um percurso ainda com José
Saramago, de Lisboa até Figueira de Castelo Rodrigo, seguindo os passos do
elefante de Salomão. E já nessa altura queríamos que essa fosse a génese, a
semente que desse origem a uma rota literária”, recorda Sérgio
Letria.
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