sábado, 30 de janeiro de 2010

Há 50 anos, morria Albert Camus, outsider inesquecível - Gianni Carta

 

Cultura

Vermelho - 25 de Janeiro de 2010 - 14h49

Há 50 anos, morria Albert Camus, outsider inesquecível

Cinquenta anos atrás morria, num acidente de automóvel, Albert Camus. Naquele dia 4 de janeiro o autor de O Estrangeiro acomodara-se no banco dianteiro do Facel Vega 3B, a limusine branca pilotada pelo seu editor, Michel Gallimard. No banco traseiro, Janine e Anne, mulher e filha de Gallimard, participavam da conversa animada.

Por Gianni Carta, em Carta Capital

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Segundo testemunho de Janine (Camus morreu no acidente e Gallimard uma semana mais tarde), os quatro debatiam com humor e gargalhadas assuntos um tanto mórbidos: a morte, a utilidade ou inutilidade de possuir um seguro de vida, embalsamentos...
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Camus, então com 46 anos, estava animado. O filósofo do absurdo é descrito pelos seus biógrafos como um homem enigmático, distante. Mas a vida lhe sorria naquele dia ensolarado. Ele já tinha recebido seu Prêmio Nobel de Literatura. Era celebrado como dramaturgo, ensaísta e jornalista. A vida amorosa ia, à sua maneira, de vento em popa. E uma fortuna considerável lhe dera a possibilidade de comprar a casa de Lourmarin, na Provença. Ademais, Camus lidava estoicamente com sua tuberculose crônica.
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Mas talvez mais importante para Camus naquela estreita estrada entre Lyon e Paris perfilada por imponentes plátanos castanho-avermelhados, era, naquele dia 4 de janeiro de 1960, o conteúdo da pasta que levava no colo: as 144 páginas do manuscrito do Le Premier Homme, romance que vinha há tempos remoendo. Estava inacabado, mas o projeto era essencial para Camus. O romance era retorno à sua infância e adolescência na Argélia natal.
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Além disso, escrever sobre a Argélia, no fim dos anos 50, tornara-se ainda mais primordial: a guerra de independência naquele País consumia a alma do escritor, que postulava uma democracia que incluísse os muçulmanos: neste contexto, segundo Camus, o problema colonial seria resolvido.
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Os violentos ataques contra esta posição de quem lutou na Resistência contra o nazismo, foi comunista e jornalista engajado, o deprimiam. Críticos se esqueciam de que ele era de origem francesa por parte de pai (a mãe era de Minorca), havia estudado em escolas francesas na Argélia e se considerava francês.
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Além disso, se não se definia pela independência da Argélia escreveu vários artigos criticando as injustiças e brutalidades cometidas pela metrópole contra os nacionalistas argelinos que pediam o fim do sistema colonialista. (A Guerra da Argélia foi concluída com sua independência em 1962.)
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Debaixo das críticas, Camus optou pelo silêncio. E a vida na Provença, além de a luminosidade semelhante à da Argélia a inspirá-lo para escrever Le Premier Homme, era uma forma de se afastar das flechadas parisienses. Seu consolo – e alívio – era ter conseguido resgatar, no manuscrito no seu colo, momentos fugazes, como tons da luz do céu da Argélia, odores nas ruas, expressões de homens nos balcões de bares em Argel.
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A conversa rolava solta com os Gallimard. O Cadilac corria a 150 quilômetros quando um pneu furou. O condutor perdeu o controle do automóvel, que se chocou contra um plátano. A filha de Camus, Catherine, publicaria Le Premier Homme em 1994, pela Gallimard. As cinzas de Camus estão em Lourmarin, onde vive Catherine. Ele se dizia não crente, mas não ateu. Não houve cerimônia religiosa.
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“A nostalgia de Deus, sua ausência, seu mutismo o obcecam e o irritam”, escreve Alain Vircondelet em Albert Camus: Fils d’Alger (Fayard, 383 págs., 19,90 euro). Em Le Mythe de Sysiphe (1942), Camus aprofunda sua tese sobre o absurdo: “O absurdo nasce dessa confrontação entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo”.
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Essa noção de que o homem vive num mundo no qual ignora sua razão de existir é linha condutora das obras de Camus. De fato, nas linhas iniciais de O Mito, Camus escreve: “Julgar se a vida vale ou não vale a pena de ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”.
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Camus, figura absurda por excelência, queria viver. Por uma simples razão, por ele mesmo elaborada: o absurdo cria energia. O homem absurdo, portanto, agarra-se à vida com todas as suas forças. Vive o momento, não o futuro. Faz projetos para dar sentido ao existir. Mas para o homem absurdo, impossível é controlar seu destino, por causa da possibilidade de uma morte absurda.
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Em L’Homme Révolté, publicado em 1951, Camus aprofunda sua tese sobre a razão de existir: a revolta. Trata-se de uma revolta humanista. Ele a desenvolve baseado na sua postura contra a violência do pós-Guerra: as bombas atômicas, a pena de morte ainda em vigor na França, a brutal repressão na Argélia e atrocidades cometidas pelo regime de Stálin. Esta foi a gota-d’água para Jean-Paul Sartre, que rompeu com Camus.
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A ira do papa do Existencialismo, e de sua neomusa Simone de Beauvoir, cresceu quando Camus venceu o Nobel, que dedicou a um professor argelino. Escreveu Sartre a Camus: “Essa mescla de sofrimento sombrio e essa sua vulnerabilidade sempre o desencorajou a dizer as verdades inteiras... Talvez o senhor tenha sido pobre, mas já não é mais. O senhor é um burguês (...) como eu...’’
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A pobreza Camus conheceu. Seu pai morreu na Primeira Guerra Mundial antes que ele completasse 1 ano de vida. Catherine, a mãe, era quase muda, surda e analfabeta. Criou Camus e o irmão, na casa de sua própria mãe, mulher autoritária, no minúsculo apartamento sem toalete e água corrente. Ali também moravam os dois irmãos de Catherine, um deles surdo.
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Belcourt, o bairro pobre onde a família residia em Argel, contrastava com aqueles de seus colegas de escolas francesas. Camus envergonhava-se de sua pobreza, nunca levou um colega para sua casa. Levava uma vida dupla. Excelente aluno, ávido leitor (Conrad, Joyce, Proust, Nietzsche, Dostoievski e Tolstoi). Enfim, aluno da faculdade de filosofia.
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Na Argélia, franceses e árabes residiam em zonas separadas. Em contraste com a pobreza, a exuberante natureza. O Mediterrâneo era, aos olhos de Camus, tão azul quanto o céu, e o separava da mítica França. Mas quando finalmente mudou-se para a França, em 1940, passou a sentir falta de sua Argélia. “Eu não sou daqui”, repetia em uma Paris de céu cinzento.
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A partir daí é a Argélia, não mais a França, que permeia seus pensamentos, e vira seu mito condutor: angústia e solidão persistem do outro lado do Mediterrâneo. Mas é com a mãe que Camus “tem um elo sagrado”, como escreve Vircondelet. Em sua saborosa biografia sobre Camus, José Lenzini conta como quando o filho convida a mãe para ir viver com ele na Provença, esta lhe lança um olhar terno e levanta os ombros. Essa cumplicidade entre os dois era pontuada por longos silêncios que pareciam valer mais do que palavras. Sobre a mãe, Camus escreveu: “Ela é o que há de mais verdadeiro de tudo o que amei neste mundo”. Ele dedicou Le Premier Homme à mulher que não poderia ler seu livro.
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Camus, anota Vircondelet, nunca teria sido Camus sem suas contradições, fonte de sua condição de outsider. Talvez por isso sua obra continue sendo imensamente superior à de Sartre. E Nicolas Sarkozy, hábil em atrair esquerdistas para sua esfera conservadora, quer realizar mais uma conquista: levar as cinzas de Camus para o Panthéon. Embora os filhos do escritor, Catherine e Jean, achem que o pai não aprovaria a ideia. 
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  • Sartre e o Nobel

    25/01/2010 21h14
    Salvo enganom,seu comentário leva concluir que Sartre ficou com dor-de-cotovelo pela ´conquista`do prêmio Nobel, por Albert Camus.Se foi isso, o nobre articulista deveria saber o que até as pedras da Candelária e da Sé, sabem, que Sartre deu a maior esnobada da sua vida, ao recusar o ´ignóbel` da academia sueca.Lamentou, depois, que poderia ter aceito o prêmio e doar esse dinheiro em favor da guerra de libertação da Argélia. Homens como ele, colossos morais costumam nascer somente a cada cem anos...
    Ribeiro
    Alto Alegre - PR
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