EU SEI, MAS NÃO DEVIA
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Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
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A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
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A gente se acostuma à poluição.
À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a não ter sequer uma planta.
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A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
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A gente se acostuma para poupar o peito, para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
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(Marina Colasanti - O pequeno livro das grandes emoções; Brasília, novembro de 2009)
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