sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Luís Veiga Leitão Um poeta militante




Anselmo
Dias


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Luís Veiga Leitão
Um poeta militante
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«Vi de perto. Vi e respirei; a fome do Alentejo nos camponeses que pelas masmorras de Caxias comigo partilharam as grades e o negrume dos dias. Estou a vê-los ainda, nitidez que resiste, debruçados e sôfregos, rentes ao prato de alumínio, colheres batendo apressadas no fundo... Único ruído (proibidas falas e olhos levantados) do silêncio carregado e tenso de nós todos, centenas ao tempo. Refeitório cercado por metralhadoras da GNR prontas a varrer e, lá dentro, vigilância canina de funcionários, braçadeira de serviço, pistola rabo de fora e bala na câmara».
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O texto acima retrata o ambiente prisional vivido por quem, em 30/3/1952, foi, pela PIDE, privado da liberdade.
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Foi julgado em 22/12/1953 e libertado em 1955.
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Falamos de Luís Maria Veiga Leitão, poeta, militante do PCP e figura importante do movimento neo-realista, a quem, nestas páginas do jornal Avante! queremos, singelamente, recordar no sexagésimo aniversário da publicação do seu primeiro livro, saído da tipografia no ano de 1950.
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Nesse livro, que condensa a sua produção poética produzida na década de quarenta, está já assinalado o preço que o autor havia de pagar pelo seu empenhamento cívico e intelectual.
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Basta ler o poema que, na altura, se intitulava «Marcha», posteriormente mudado para «Passo Compacto», para se perceber que, mais tarde ou mais cedo, haveria contas a ajustar com a PIDE. Vale a pena, pois, passados 60 anos, recordar esse poema, cuja estética e cujo conteúdo tipificam, exemplarmente, a essência do movimento neo-realista (o sublinhado é da nossa responsabilidade).
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MARCHA

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A manhã gatinhava e descia
do telhado à rua deserta.
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Homens de passo compacto,
a boina à banda, a camisa aberta,
seguem, batendo o rumo exacto
das fábricas uivando à luz do dia.
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E os homens na rua amanhecida
vão de camisa aberta e rumo exacto
remando o corpo, remando a vida,
ao passo compacto.
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E de fábricas o casario
e de chaminés as silhuetas,
são cascos e mastros de navio
arvorando bandeiras pretas.
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Duma esquina o longo friso
é florete afiado à luz.
Um bêbado surge e desperta,
e o passo bambo, o passo indeciso
morre, traçando uma cruz,
no caminho do passo compacto
dos homens de camisa aberta
e rumo exacto.
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E de fábricas o casario
e de chaminés as silhuetas,
lembram cascos e mastros de navio
arvorando bandeiras pretas.
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À gente fútil e vã,
à gente de noite perdida,
parece mais cedo a manhã
ao ouvir o passo compacto
dos homens de rumo exacto
remando o corpo, remando a vida.
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E de fábricas o casario
e de chaminés as silhuetas,
lembram cascos e mastros de navio
arvorando bandeiras pretas.
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O teatro da rua é onda a crescer.
Mas há comédias,
mas há tragédias,
cenas, intervalos e actos
que apenas se podem ver
ao coro dos passos compactos.
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E desfeitas as silhuetas
e atingido o rumo exacto,
os homens de passo compacto
mudaram as bandeiras pretas.

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O Poeta não disse, mas qualquer um de nós compreende que «os homens de passo compacto», tendo atingido «o rumo exacto» mudaram as bandeiras negras da fome para as bandeiras vermelhas da revolução, ou seja, o escritor, utilizando a forma e o conteúdo neo-realista, deu-nos, através de uma marcha, ilustrada por uma linguagem extremamente cinematográfica, o retrato do proletariado como classe ascendente, aquela que, organizadamente, desfeito aquilo que há a desfazer, há-de transformar o mundo, um mundo que seja um não-lugar para as bandeiras negras da opressão.
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Luís Veiga Leitão, escritor maldito por ter engrossado o maldito movimento neo-realista, isto segundo as ideias dominantes das classes dominantes, Luís Veiga Leitão, dizíamos nós, viveu a violência da prisão durante cerca de três anos, tendo, dessa amarga experiência, produzido, em 1955, um segundo livro, «Noite de Pedra», que foi proibido pela PIDE e cujo conteúdo constitui, por um lado, um corajoso libelo acusatório ao regime fascista e, por outro, um hino à firmeza ideológica de quem estando privado da liberdade não se vergou aos esbirros da polícia política e aos algozes dos Tribunais Plenários.
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Jorge de Sena, a propósito dos poemas deste livro, considerou que os mesmos «...transcende todo o literalismo apaixonado em que muito neo-realismo se perdeu, são do melhor e mais válido que essa poesia tem produzido entre nós»
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Trata-se, pois, de um livro antológico do qual salientamos o seguinte poema:
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COLUNA
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Levanta a fronte, levanta!
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Que toda a gente saiba de quem é
Não faças dela a cinza duma chama
nem planta nua dum pé
abrindo covas na lama.
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Levanta a fronte, levanta!
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Não faças dela espelho a descoberto
onde o quebrado corpo se despoja,
nem chão intérmino e deserto
em que a dor se roja.
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Levanta a fronte, levanta!
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Para quê essas sombras que te inundam,
sombras roxas e lôbregas de becos?
Para quê essas rugas que se afundam
como leitos de rios secos?
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Levanta a fronte, levanta!
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Foi a cela que te anoiteceu
com charcos de medo e gelo?
Quem trouxe um sonho como o teu,
jamais deve perdê-lo.
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Levanta a fronte, levanta!
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Quem ergue a fronte, levanta a voz,
levanta o sonho num facho a arder:
Ele é maior que tu e todos nós
- um mundo por nascer

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Não é preciso ser especialista para se perceber que o Poeta, no 1.º poema «Marcha» estava a descrever uma realidade que não era nem passadista nem estática mas, antes, dinâmica, ou seja, através da expressão artística, neste caso através da poesia, estava a descrever algo em movimento, projectado no futuro, cujo desfecho não poderia ser outro que não fosse, pela acção, o fim da exploração do homem pelo homem.
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Também não é preciso ser especialista para se perceber que o Poeta, no 2.º poema, «Coluna» não obstante a prisão, assumia de corpo inteiro, sem se vergar aos efeitos da clausura, um projecto de sociedade, por ele referido de «um mundo por nascer».
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Daqui decorre que, como bem refere Carlos Reis, na sua obra «Textos Teóricos do Neo-Realismo», este movimento literário «valoriza a dimensão ideológica da criação literária, bem como a sua capacidade de intervenção sociopolítica, à luz dos princípios fundamentais do materialismo histórico».
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Todavia, como também muito bem refere Urbano Tavares Rodrigues, «Não podemos, contudo, afirmar que todos os escritores geralmente arrumados no neo-realismo projectem em suas obras a visão marxista com o mesmo rigor e empenhamento. O que, efectivamente, os aparente é a denúncia da miséria e a explicitação da luta de classes...», embora, em nossa opinião, em várias obras neo-realistas o que sobressai não é «... a explicitação da luta de classes...» mas, apenas, «... a denúncia da miséria...».
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Estamos, pois, em cambiantes diversas, perante um movimento literário que não sendo um património exclusivo dos comunistas é, pela amplitude dos seus intervenientes, pela sua estética, pelo seu conteúdo, pela obra produzida e pela natureza da respectiva criação artística, um património colectivo que dignifica a cultura portuguesa e que muito nos deve orgulhar.
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Uma pequena biografia do poeta
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Luís Veiga Leitão nasceu em Moimenta da Beira a 27 de Maio de 1912, tendo, durante uma visita ao Brasil, falecido a 9 de Outubro de 1987.
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Entre uma data e outra, enquanto estudante, fez parte de um movimento que visada a criação de uma universidade livre, realização impedida, obviamente, pelo Governo de Salazar.
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Por ter sido antifascista foi demitido de escriturário da 7.ª brigada cadastral da Federação dos Vinicultores da Região do Douro e, com já atrás referimos, foi preso pela PIDE.
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Em termos profissionais, em Portugal, esteve ligado à propaganda médica.
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Em meados de 1967 radicou-se no Brasil, tendo, neste país exercido várias actividades como sejam redactor, pesquisador iconográfico, bibliotecário, desenhador, leitor profissional, autor e locutor de programa de televisão.
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Publicou vários livros de poesias, sobre os quais, posteriormente, a confirmar a sua qualidade literária, foram publicadas várias antologias.
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Juntamente com Egito Gonçalves e Papiniano Carlos publicou Sonhar a Terra Livre e Insubmissa....
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Eis, em termos sumários, a figura de um Poeta Militante, um militante comunista, cuja poesia, inserida no movimento neo-realista, corresponde, integralmente, ao que Mário Dionísio havia proclamado no seu livro «Poemas», editado em 1941:
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A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases
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A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos

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A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.


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Fontes:
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Latitude, 1.ª edição, 1950
Noite de Pedra, 1.ª edição, 1955
Obra Completa de Luís Veiga Leitão, Campo das Letras, 1997
Líricas Portuguesa, Antologia organizada por Jorge de Sena, Portugália Editora, 1958
Há uma estética Neo-Realista?, Mário Sacramento, Publicações Dom Quixote, 1968
Textos Teóricos do Neo-Realismo, Carlos Reis, Seara Nova, 1981
Um novo olhar sobre o Neo-Realismo, Urbano Tavares Rodrigues, Moraes Editores, 1981

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Avante 1884 - 2010.01.07
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