terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Os desencantos de Rachel (de Queiroz) e "A Arte de Ser Avó"


Entrevista

(14-01-89) Título: Os Desencantos de Rachel
Foto de Rachel de Queiroz
Aos 18 anos de idade, ela escreveu um romance que abriu um novo ciclo na literatura brasileira. Já se passaram sessenta anos e Rachel de Queiroz confessa hoje que passaria muito bem sem fazer literatura. E revela seu desencanto com a política, depois de períodos de militância comunista e trotskista.


A sra. publicou O Quinze com apenas 20 anos de idade, cuja tendência social e o estilo neonaturalista abriu uma nova fase na ficção brasileira com um modo novo de retratar os problemas do homem e da terra do Nordeste. Como foi aquela experiência e como eram aqueles anos? Eu escrevi O Quinze entre 18 e 19 anos e publiquei aos 20. Eu faço questão dessa história da idade porque acho o livro muito maduro. Aliás, quando ele saiu, não tinha feito 20. Eu fiz 20 em novembro e o livro saiu em agosto. Primeiro, que quando escrevi o livro, não tinha idéia nenhuma de fazer algum tratado de Sociologia, nem de dar o primeiro pontapé na literatura nordestina, nada dessas ambições. Eu nasci numa casa de intelectuais. Meus pais eram intelectuais. Era uma casa de livros, então escrever era uma atividade natural. Com 16 anos comecei a fazer jornalismo profissional. Com essa idade já estava profissionalizada, tomando conta das páginas literárias dos jornais de Fortaleza, escrevendo semanalmente uma crônica.
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A sra. já havia visto uma seca antes?Curiosamente nunca tinha visto uma seca, porque a seca de 15, que se retrata no livro, tinha quatro anos de idade. Já a seca de 19, nós estávamos morando no Pará. Mas o cenário do sertão, tão parecido com os tempos de seca, a tradição moral lá é tão grande, a tradição da seca, as conversas aqui e ali sobre a seca... tudo aquilo me veio com toda a naturalidade, que com este tema escrevi o meu primeiro romance. A primeira grande seca a que assisti foi em 1932. Agora, quanto ao tipo de literatura que eu fazia... na Semana de Arte Moderna tinha 11 anos, mas aos 14 e aos 15 ainda haviam as repercussões, quando comecei a me interessar mais diretamente por literatura. E o que havia de literatura de seca no Nordeste era uma literatura muito carregada do naturalismo do final do século, muito pesada, com muito defunto e muito urubu, muita coisa assim, com uma visão meio sangrenta, sanguinária, digamos. Já eu sempre fui uma pessoa muito moderada no que escrevo, é fácil de ver, não gosto muito das notas sensacionalistas... procurei fazer um tipo de livro que fosse realmente só um testemunho, quase que só um depoimento.
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Qual o sentido da literatura na sua vida?Eu não tenho paixão pela literatura. Eu não acho a literatura essencial na minha vida. Nunca pus a literatura à frente dos outros problemas da minha vida. A literatura, para mim, é vocação e profissão. É o que sei fazer, o que tenho mais jeito para fazer e disso vivo. Não é mais que isso. Eu não sublimo a literatura no meu ideal de vida. Eu passaria muito bem sem fazer literatura. Eu gosto da vida, gosto das pessoas, gosto do pensamento ds pessoas. Sou apaixonada pelo ser humano.
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Em que sentido a sra. foi sentindo os reflexos da mudança dos anos 20/30?Nos anos 20, confesso que era muito novinha, tendo vivido sob a tutela paterna. Comecei a trabalhar em 27, e lá em casa meus pais sempre me deram bastante liberdade. Eles eram meus companheiros, quer dizer, nós tínhamos um entrosamento muito bom na minha família. Eu tinha 3 irmãos homens, aliás quatro, porque tinha um que era o meu irmão adotivo. Sempre vivi muito bem entrosada, de que a vida familiar era muito fechada em torno de mim. Eles me ampararam, me ajudaram e me deram a liberdade que carecia. Eu comecei a viajar cedo. Quando ganhei o prêmio Graça Aranha, vim sozinha aqui pro Rio. Eu tinha 20 anos, e vim receber o prêmio. Eu sempre me atribuí o direito de ser livre. Naturalmente que nos meus livros todos aparece este drama da liberação da mulher, porque realmente a mulher vem lutando. Eu nunca fui feminista. Acho que Deus fez o homem e a mulher para serem um complemento um do outro, na união e no bem. Eu acho que homem e a mulher são companheiros e sócios. Se o papel de mulher escrava realmente me repele, mas também o papel de mulher mandona, feminista, inimiga do homem, me repele também. De forma que fui acompanhando, com a espécie de uma posição privilegiada, porque tinha a cobertura da minha família e também dos grupos com quem me entendia.
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Que grupos eram esses?Eu comecei a ficar interessada em política social já em 28/29. Eu comecei a me interessar pelo que restava do Bloco Operário Camponês em Fortaleza. Eu comecei a tomar parte dos grupos de esquerda que estavam se congregando para formar o primeiro núcleo do Partido Comunista. Quando vim para cá, no começo de 31, já me entrosei com o pessoal do Partido, e foi o meu período de militância comunista. Foi de 31/32 a começo de 33. Foi aí que briguei com o Partido. Entrei em choque com eles, e então me aproximei de Livio Xavier e daquele grupo deles de São Paulo. Fui morar em São Paulo, e lá fiquei com os trotskistas, onde fiquei com Aristides Lobo, Plíneo Melo, Mário Pedrosa, Lívio Xavier, enfim, com a elite intelectual dos esquerdistas, de lá, e fui bem recebida por eles, muito carinhosamente. A pronvíncia funciona muito nas grandes cidades e se defende. Tem os seus núcleos. O Lívio era cearense, o Mário Pedrosa era paraibano, Aristides era mineiro, de forma que São Paulo é muito acolhedora. Ao contrário do que se diz, tenho uma gratidão muito grande por São Paulo. Eu cheguei a São Paulo, no ano seguinte da revolução de 32. São Paulo estava ainda lambendo as feridas da derrota, do esmagamento, que o Getúlio impôs. E iam tropas nordestinas que Getúlio malignamente pôs para esmagar São Paulo, para criar uma odiosidade entre as províncias, e, no entanto, fui recebida com a maior generosidade e carinho. Estes dois anos que passei em São Paulo, no começo da minha vida, foram marcados por um período muito bom, do ponto de vista de amizades, de começo de carreira, de começo profissional, inclusive fui professora lá. Eu ainda não tinha posição jornalística que me assegurasse na manutenção. Eu fui professora particular lá em São Paulo, me filiei ao Sindicato de professores de ensino livre, que era controlado naquele tempo pelos trotskistas.
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E a sra. se desencantou dessa militância partidária?Sim, a do Partido Comunista, sim, a dos trotskistas, nunca houve uma militância regular. No começo, nós éramos uma fração do Partido Comunista, uma fração rebelde, expulsa, traidora, não sei o quê. Então, não tínhamos uma militância organizada, regular, com células, reuniões etc... Depois, fui para o norte em 34 e fiquei lá até 39. Vinha ao Rio, ocasionalmente, mas fiquei lá até 39, e lá, realmente, os trotskistas não tinham a menor expressão como política... a gente se aliava... os trotskistas, os poucos se aliavam, em geral, aos socialistas. Em 34, por exemplo, recebi ordem do pessoal de São Paulo para aceitar uma candidatura para deputado estadual pelo Ceará, dentro do Partido Socialista, mas, parece que nós ganhamos a eleição, mas, aquele era o tempo das fraudes, o tempo delirante das fraudes...
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Essa questão de organização partidária me fez pensar em certas estruturas político-partidárias dos dias de hoje...O Partido Comunista sempre foi o modelo de quase todos esses partidos de esquerda daqui, e o modelo das comunidades eclesiais de base são as células do Partido Comunista. Quando me interessei pelo Partido, aqui no Rio, ele já funcionava desde 22, e me filiei e recebi credenciais daqui para nós organizarmos o Partido em Fortaleza sobre os escombros do que tinha sido o Bloco Operário Camponês, que era um dos ramos do Partido, um dos braços do Partido, que tinha sido destruído pela repressão policial.
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Como a sra. vê a esquerda de hoje e a vitória do PT nestas eleições municipais? Eu não tenho me aproximado do PT. Não tenho um convívio com eles, mas, realmente, é um dos partidos de esquerda que tem uma organização, um ideário, e tem, principalmente, um caudilho, um chefe, que é o Lula. Os outros estão fragmentados em mil pequenos partidos. Estão fragmentados em várias tendências, e o Partidão foi o que mais sofreu mutilações com esses rachas, com a repressão tão violenta como houve, causou essas exacerbações, essas lutas...
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E essas correntes ideológicas conseguem ou conseguirão se encontrar?Eu tenho a impressão que não. Porque estão cada vez pior. Você acha que o partido do Lula é o mesmo do Fernando Henrique. Você acha que o Covas está na mesma posição que o Arraes. Você acha que todos... em todos você vê o espectro da esquerda... que vem do Brizola que não é esquerdista coisíssima nenhuma. O Brizola é a revivescência do caudilho do sul-americano. No fim, ele é neto do Lopes, do Paraguai, é neto do Rosas, é irmão do Somoza, é primo do Gomes, da Venezuela, é sobrinho do Stroessner, é de uma família toda que... e, principalmente, ele tenta ser o herdeiro de Getúlio Vargas. Quer dizer, uma figura completamente arcaica. É, aliás, o que continua a fazer com o novo prefeito. O pessoal tinha feito toda uma programação para o prefeito eleito, né? Toda a escolha do secretariado... e ele chegou, riscou uns, vetou outros, trouxe outros pelas mãos, reformulou tudo o que o prefeito tinha organizado. Imagine você o que ele será no plano federal. Eu sou contra toda e qualquer posição sectária. O sectarismo é um estigma. A questão de ideologias são para almas estreitas. Você pode ter comunicação permanente se tiver idéias abertas e aceitar todos os caminhos. Nós estamos falando aqui do Brizola. O problema é o seguinte: você não pode ser amigo do Brizola. Você tem que ser contra. Ele não tolera você ser contra. Você tem de ter a ideologia dele, pensar o que ele pensa, senão não dá. O Lula, por exemplo, não te engole, de qualquer maneira. Ou você é lulista ou você não é. E foi essa intolerância, esse sectarismo que afastou todos os intelectuais do partido.
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O seu romance O Caminho de Pedras apareceu em 1937. Como foi aquele período? O livro apareceu um pouco antes do Estado Novo. O Caminho de Pedras foi do começo de 37, e o Estado Novo aconteceu no final do ano. Coincide com o período que antecede aquele estado de guerra, o estado de sítio, aquela coisa que o País viveu. Quanto à elaboração da obra, não sofreu, digamos assim, influência direta daqueles acontecimentos, dentro do Estado Novo, porque, como lhe disse, ela apareceu antes. A coincidência é de datas, mas é claro que, depois de publicado o livro, sofremos todo o arbítrio daquele período, tanto que o livro foi discriminado, inicialmente tive que ser interrogada sobre o livro etc...
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Como aconteceu o Estado Novo? O Estado Novo caiu em cima da gente como uma pedrada na cabeça. O Getúlio teve o cuidado de mandar o Negrão de Lima em viagem por todos os estados do Brasil, e, em cada capital, ele parava, falava com o governador, sondava o governador... isto em outubro de 37. Os governadores quase todos aderiram, com exceção do Juracy Magalhães (e um outro que não me lembro agora). Foram dois os governadores que não aderiram. Então, ele mandou pegar tudo quanto é intelectual de esquerda, trotskistas, stalinistas, anarquistas, todo mundo ficou preso até janeiro, incomunicável. Me prenderam lá no Quartel de Bombeiros. Fiquei presa de outubro de 37 a janeiro de 38. Ele conseguiu fazer com que a imprensa ficasse praticamente em silêncio, porque todo mundo que tinha pena e escrevia, e era de esquerda, entrou em cana.
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O Estado Novo foi pior que a ditadura militar de 64?Foi pior, muito pior. Porque ele tinha processos fascistas já codificados. Já tinha o modelo alemão, polaco, italiano, de forma que ele se associou a esses governos criminosos, terríveis, monstruosos. Tudo o que se diga é pouco. Basta dizer que nestes últimos 20 e tantos anso de ditadura militar não se cometeu um caso como o de Olga Prestes. Não se entregou a mulher de um cidadão brasileiro, grávida de uma criança brasileira, para ser sacrificada nos fornos crematórios, de cuja existência já se tinha notícia.Sofremos uma opressão em circunstâncias muito piores. O Brasil era muito menor, isolado do mundo, agrário, uma província ainda. Nossos meios de comunicação, a mídia eletrônica, não havia nada disto. O que havia era a censura. A censura era total. A Igreja estava silenciosa, não se manifestou. Dizem que o cardeal Leme escondia perseguidos políticos, mas isto supõe-se. Não foi como a posição mais aberta que a Igreja tomou contra a ditadura agora. O mundo inteiro ficou sabendo o que se estava passando no Brasil durante o Estado Novo, sofreu-se muito, as perseguições, as torturas, as mortes, o silêncio.
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O número de efervescência intelectual durante o Estado Novo foi muito maior do que da última ditadura?O que acontece é que já vínhamos de uma geração de intelectuais que foi a geração de 30. Todos nós estávamos livres e de repente o Getúlio não nos podia calar assim, tínhamos que resistir. Na verdade, você vê, passou o Estado Novo, e saiu o Graciliano, saiu o Jorge, saiu todo mundo, o José Lins, arrebentou todo mundo, e, depois dessa última ditadura, esperava-se uma nova florescência de talentos, as obras-primas que estavam engavetadas não apareceram, não apareceu nada. Realmente não houve uma grande efervescência da produção intelectual, e não só não houve essa emergência de talento literário que se esperava (salvo um outro nome que tem sido devidamente festejado) mas não houve aquele algo novo. A gente já existia antes do Estado Novo e continuou produzindo depois, a gente já estava funcionando. Mas em todo o caso, não acho que um e outro não são responsáveis nem pela efervescência do pós-ditadura militar. Eu acho que essa falta de produção é aquilo que já vínhamos discutindo antes: a questão do ciclo. Havia um ciclo em funcionamento quando veio o Estado Novo. Houve um ciclo literário. Já na última ditadura, tivemos uma efervescência em outros setores: no teatro, no cinema, nas artes plásticas, talvez, e na música. Você pega, por exemplo, os governos da República Velha (a Semana de Arte Moderna acontece em plena República Velha), você vê: o coronelismo não era militar. Quem disse muito bem sobre a República Velha foi o Gilberto Amado. Ele disse que a representação política era falsificada, mas era muito melhor, muito mais selecionada do que hoje.
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Como assim?Você sabe que quanto mais se abrem as portas mais se baixa o nível. Você vê, por exemplo, a questão do eleitor analfabeto. O eleitor analfabeto está provado que não vota, absolutamente. Ou o voto é anulado porque ele cometeu algum erro, ou ele nem sabe em quem está votando. Eu considero que a liberdade é o maior direito de todos nós. Sou pela liberdade. Pelas concessões democráticas, mas não pelas demagógicas. Eu acho que o voto do analfabeto foi um dos nossos maiores erros políticos, um instrumento de demagogia, de rebaixamento político, o voto do analfabeto. A primeira coisa que tinha de se fazer era alfabetizar. O analfabetismo não é Aids, não é uma doença incurável. O analfabetismo é curável. O único remédio para o analfabetismo é acabar com ele. É a única solução. Eu acho que uma das piores aquisições dessa nossa nova democracia foi o voto do analfabeto.
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http://medei.sites.uol.com.br/penazul/geral/entrevis/rachel2.htm
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As Três Marias (romance)

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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As Três Marias é um romance de Rachel de Queiroz e publicado em 1939.
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O romance é narrado por Guta uma das protagonistas da história e começa quando esta vai para um internato em Fortaleza no Ceará aos 12 anos, lá ela conhece Maria José e Glória onde nasce uma profunda amizade entre as três. Ficaram conhecidas como As três Marias por uma freira que assim chamou-as por causa de seus nomes:Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória e porque viviam sempre juntinhas como a constelação de Orion. Juntas, as três marias ajudavam as outras amigas a solucionar seus problemas.
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O tempo passa e o estudo no internato acaba, agora já adultas cada uma segue um rumo, mas a amizade prevalece.
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Glória logo se casa, com Afonso e tem um filho.
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Maria José vai morar com a mãe e os irmãos, se torna uma mulher muito religiosa se afastando dos prazeres da vida, já que ela acha que é pecado, e arruma um emprego como professora.
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Guta após sair do internato vai para o interior morar com sua família, mas acaba percebendo que sua família quer transformá-la em uma dona de casa. Descontente, Guta volta para Fortaleza, começa a trabalhar como datilógrafa e vai morar com Maria José, algum tempo depois ela conhece Raul por quem se apaixona mas logo termina o romance, pois ele era casado e queria que ela fosse sua amante.
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Depois de terminar com Raul, Guta percebe que seu amigo Aluísio está gostando dela, só que alguns dias depois de perceber isso Aluísio suicída-se, todos culpam Guta por isso.
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Guta muito triste com os últimos acontecimentos decide tirar umas férias e vai para o Rio de Janeiro lá conhece Isac um estrangeiro, que lhe apresenta a cidade. Guta se apaixona por Isaac com quem tem sua primeira noite de amor.
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O tempo de férias acaba e Guta tem que voltar para Fortaleza, chegando lá ela decide voltar para o interior para morar com sua familia. A história termina com Guta desconfiando que está grávida.
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Do Livro O Quinze De Rachel De Queiroz .pdf Ebook Download

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mai 09
Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações – todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.
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Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
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Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.
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E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
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Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.
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Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…
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No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
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Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser – e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer – e ser acreditado!
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Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…
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Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
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E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.
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E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
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Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino – involuntariamente! – bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.
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