sábado, 23 de janeiro de 2010

Uma Biblioteca Árabe no Brasil - Lejeune Mirhan *


 

Colunas

Vermelho - 24 de Setembro de 2009 - 19h52

Uma Biblioteca Árabe no Brasil

Lejeune Mirhan *

Nestes quase oito anos ininterruptos de coluna sobre Oriente Médio no Portal Vermelho, fizemos, na maior parte das matérias, análise sobre a situação política no mundo árabe. Algumas vezes falamos de poesia, cultura, tradições árabes. E apenas uma vez, fizemos uma entrevista. Desta feita, publicamos uma segunda entrevista com o Prof. Dr. Paulo Daniel Farah, da USP, um dos mais renomados arabistas e tradutores de árabe de nosso país.

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Quem é Paulo Daniel Farah?


Paulo Daniel Farah é Professor Doutor no programa de graduação e de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Possui mestrado em Linguística e em Computação e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada. Fez pós-doutorado em História Social. Além de lecionar na FFLCH-USP, orienta diversas pesquisas em literatura, linguística, história e cultura árabe, em nível de pós-graduação, na própria USP.
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É autor de diversas obras, entre elas Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali (obra em português, árabe e espanhol). Rio de Janeiro, Argel, Caracas: Edições BibliASPA em co-edição com Fundação Biblioteca Nacional, Bibliothèque Nationale d’Algérie e Biblioteca Nacional de Caracas, 2007, 476 pp, ABC do Mundo Árabe (São Paulo: SM, 2006; traduzido para o espanhol e o francês e editado na América Latina e na Europa), O Islã (São Paulo: Publifolha, 2000) e Glossário de Termos Islâmicos (São Paulo: Cálamo, 1996), entre outras obras, e co-autor de Diálogo América do Sul - Países Árabes, de Por que nós brasileiros somos contra a guerra no Iraque e de Edward Said.
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Morou durante vários anos no Oriente Médio e na África, onde participou de diversos cursos de pós-graduação na área de literatura e história, incluindo a Universidade do Cairo, no Egito, a Universidade de Damasco, na Síria e a Universidade do Kuwait.
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Traduziu diversas obras do árabe, francês, inglês, alemão e quissuaíli, entre elas O Edifício Yacubian. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, de Alaa al-Aswani, e A terra nos é estreita e outros poemas. São Paulo: Edições BibliASPA, 2009, de Mahmud Darwich, O Dicionário e Outros Contos de Machado de Assis (tradução do português para o árabe). São Paulo: Edições BibliASPA, 2009, A Terceira Margem do Rio e Outros Contos de João Guimarães Rosa (tradução do português para o árabe). São Paulo: Edições BibliASPA, 2009, O Beco do Pilão (São Paulo: Editora Planeta, 2003), de Naguib Mahfuz. Compreende, fala, lê e escreve em português, árabe, francês, quissuaíli, espanhol, inglês, italiano e alemão.
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É membro da Brasa (Brazilian Studies Association), co-fundador e membro da diretoria do grupo internacional de estudos árabes e islâmicos MELN. É também pesquisador do CNPq, onde atua como parecerista desse órgão e de outros (incluindo a Edusp e a Fapesp) e edita a Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-americanos (que pode ser lida no site www.bibliaspa.com.br).
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Diretor da BibliASPA (Biblioteca e Centro de Pesquisa América do Sul - Países Árabes, www.bibliaspa.com.br), da qual participam acadêmicos de mais de 40 países que estudam literatura, linguística, antropologia e história, entre outras temáticas.
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Sobre a BibliASPA

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A BibliASPA foi formada a partir de 2003. Desde seu início, teve o intuito de realizar pesquisas, estimular a produção cultural e promover o conhecimento mútuo e a reflexão crítica entre árabes e sul-americanos, através de publicações, traduções e edições. Ela publica obras diversas, como a Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-Americanos, editada em cinco idiomas (árabe, português, espanhol, francês e inglês) e com um Conselho formado por especialistas de mais de 25 países.
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O portal deste centro de pesquisa (www.bibliaspa.com.br) promove, em mais de 20 seções, um fórum de debate aberto à participação de todos. O portal é totalmente trilíngue (português, espanhol e árabe), oferece obras eletrônicas na íntegra para leitura, possui seções de poemas, textos e artigos sobre temas das humanidades, como literatura, história, geografia, linguística, antropologia, sociologia, artes plásticas e cinema, entre outros.
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Na perspectiva de contemplar representações e reflexões, ademais de questionar visões de sociedade e do pensamento limitantes e que acabam por promover distâncias e exclusão, as Edições BibliASPA propõem-se a publicar textos que contemplem as principais áreas de conhecimento relacionadas às letras, artes e ciências humanas. A intenção é formar acervos bibliográficos especializados em temas sul-americanos, árabes e africanos a fim de suprir a carência nessa área.
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Entre as obras, a BibliASPA se destacou pela publicação de Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali, de Paulo Daniel Farah, que trata do relato de viagem pelo Brasil de um clérigo muçulmano no século XIX, no período do Império. Uma obra monumental em três línguas, publicada com apoio inclusive do Itamaraty.
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O Centro Educativo e de Formação da BibliASPA visa à conscientização social acerca das culturas representadas por meio de cursos diversos sobre música, literatura, história, linguística e dança, entre outros temas. Alguns exemplos de curso referem-se ao Curso de Música Árabe em seis módulos, Curso de História da África, em três módulos, o Curso de Contos Árabes, Africanos e Sul-Americanos, oferecidos a 200 estudantes e professores da rede pública de São Paulo e a públicos semelhantes em Curitiba, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e outras cidades.
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Ademais, a BibliASPA organiza seminários, palestras, exposições de artes plásticas, fotografias, esculturas, apresentações de música e dança árabe, africana e sul-americana e mostras de cinema acompanhadas de debate. Para isso, congrega pesquisadores em mais de 40 países, de áreas diversas, que promovem o respeito à diversidade e ao multiculturalismo e procuram tornar o saber acessível ao maior número possível de pessoas. São diversas as linhas de pesquisa.
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A intenção é unir pelo conhecimento. Sabe-se que os estereótipos culturais e as representações politicamente motivadas acerca de árabes, africanos e sul-americanos só podem ter seu efeito negativo contrabalançado pela produção constante de saberes, embasados em pesquisas empíricas de qualidade, bem como pela disponibilidade em português/espanhol de textos representativos da produção cultural árabe e africana e, em idioma árabe, de textos representativos da produção cultural sul-americana.
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A entrevista com Paulo Daniel Farah
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Temos a honra de realizar esta entrevista. Você enobrece o povo e a nação árabe com seu valoroso trabalho de difusão da língua e da literatura árabe. Em primeiro lugar, queremos saber um pouco de sua trajetória, sua vida pessoal, suas origens árabes, sua família, seu nome, enfim, fale-nos sobre quem é Paulo Farah.
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Nasci em uma família de origem árabe que sempre prezou a leitura, o estudo e as artes. Entre outras pessoas importantes, admiro meu avô, por seus escritos que considero especiais tanto do ponto de vista formal quanto do de conteúdo. Era um homem bastante espiritualizado, e em minha família sempre houve – e continua a haver – uma diversidade religiosa marcada por respeito e aprendizado mútuo. Sabemos que contemos “multitudes”, para usar o termo de Whitman.
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Procurei desde cedo me dedicar à literatura, à música (toco alguns instrumentos) e à pintura. Tenho muito apreço pelo ensino, em ser educador, desde jovem, pois acredito plenamente na capacidade de transformação que a educação possui. Ainda na adolescência, lecionei em escolas de idiomas e de literatura e sempre procurei participar de projetos educativos.
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Conte-nos agora sua trajetória de jornalista, bem como a trajetória acadêmica, o mestrado, doutorado, pós-doutorado, o ingresso na USP.
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Ingressei no jornalismo jovem, escrevi, sobretudo a respeito de cultura, literatura, linguística, história, religião e política internacional. Fui editor de cadernos de notícias internacionais em jornais de grande circulação e fiz coberturas de conflitos, congressos, festivais artísticos e religiosos, entre outros.
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Minha trajetória acadêmica é marcada por cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior que tiveram importante papel em minha carreira e em minha atuação como educador e pesquisador.
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Na década de 1990, comecei a lecionar na universidade, depois de ter ensinado em diversos outros locais. Atualmente, leciono na graduação e na pós-graduação e oriento vários alunos na iniciação científica e na pós-graduação, além de escrever artigos acadêmicos e livros e redigir pareceres.

Você já possui diversas obras publicadas, por várias editoras. Fale-nos um pouco delas todas, a qual gostou mais, a que mais lhe deu trabalho ao escrever.
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Escrevi obras de ficção e de não-ficção, muitas delas com o objetivo de mostrar que as identidades múltiplas do humano devem ser respeitadas e valorizadas. Entre as obras que publiquei, posso destacar algumas pelas quais nutro um afeto especial. ABC do Mundo Árabe foi traduzido para o espanhol e o francês e recebeu prêmio literário, O Islã procura demonstrar que não existe um choque de civilizações, mas um choque de desconhecimentos e Por que nós, brasileiros, dizemos não à guerra no Iraque teve como intuito demonstrar a insanidade da guerra. O livro Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali reúne a tradução anotada e o estudo de um manuscrito do século XIX sobre a estada do imã bagdali Abdurrahmán al-Baghdádi no Brasil. Após chegar a bordo de um navio do Império Otomano, morou no Rio de Janeiro, em Salvador e Recife ao longo de três anos, em meados do século XIX.
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Redigido em caracteres árabes, o manuscrito contém termos em árabe, turco otomano, persa, francês, grego, português e tupi. Constitui o principal documento acerca da situação dos muçulmanos no Brasil no século XIX, especialmente após o levante dos malês (1835), muçulmanos de origem africana que lideraram a principal revolta de escravos urbanos das Américas, o levante dos malês, em 1835, na cidade de Salvador. Trata-se também do único registro até agora conhecido de um olhar árabe - e muçulmano - sobre a paisagem tropical e a sociedade multiétnica e multiconfessional que se formava à época no Brasil.
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No manuscrito, o imã discorre ainda sobre a fauna, a flora, as tradições e as populações brasileiras sob o prisma de um erudito. A obra, editada pela Biblioteca América do Sul - Países Árabes (BibliASPA), em co-edição com as Bibliotecas Nacionais de Argel, Caracas e Rio de Janeiro e a Biblioteca Ayacucho (Venezuela), reproduz todo o manuscrito original. Inteiramente trilíngue, em árabe, português e espanhol, faz-se introduzir por textos de análise e comentário e possui um caderno de imagens do século XIX.
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Erudito muçulmano que estudara árabe, persa, literatura, jurisprudência e teologia, entre outras disciplinas, Al-Baghdádi veio ao Brasil do Oitocentos em um navio a vapor do Império Otomano. A corveta, enviada em 1865 (1282 da hégira) pelo sultão Abdulaziz (1277-1293 da hégira ou 1861-1876 d.C.), de Istambul a Basra, teve sua rota desviada por uma série de tempestades (segundo seu relato) e veio a aportar no Rio de Janeiro, onde o imã árabe decidiu permanecer após identificar na cidade a presença de muçulmanos de origem africana.
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Convidado pela comunidade muçulmana da Bahia e de Pernambuco a prolongar a missão de cunho didático que atribuíra a si e o fizera abandonar o vapor para instalar-se na capital do Império do Brasil, ao passo que seu comandante prosseguiu rumo a Basra, Al-Baghdádi continuou seu périplo e relato, no qual descreve, de forma minuciosa e especializada, as práticas e as crenças da comunidade muçulmana e, em particular, dos remanescentes dos malês na Bahia.
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Fonte de informação histórica, geográfica, antropológica, política, religiosa e literária sobre o Brasil, a África, os árabes e os otomanos, este manuscrito apresenta uma linguagem rebuscada e poética. No relato de Al-Baghdádi, o africano escravizado e o índio ocupam um lugar especial, em uma época marcada pela Guerra do Paraguai (1864-1870) e pela guerra civil norte-americana (1861-1865), à qual faz alusão em seus escritos.

A tradução anotada desse testemunho detalhado que abrange cerca de três anos (como atestam os três Ramadãs que Al-Baghdádi jejuou no Brasil) e a pesquisa minuciosa integram um esforço de ampliar as pesquisas e a produção de conhecimento acerca da América do Sul, dos países árabes e da África.
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Há também um conjunto de traduções já feitas no Brasil direto do árabe, sob sua responsabilidade direta. Fale-nos sobre essas obras, de como você as seleciona no mundo árabe e do grau de dificuldades nesses trabalhos.
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Temos a preocupação de selecionar obras de épocas distintas com o intuito de demonstrar que a cultura árabe já produziu importante reflexão crítica e que continua a fazê-lo. Dessa forma, trabalhamos com obras escritas um milênio ou alguns anos atrás. A intenção tem sido publicar obras traduzidas diretamente do árabe (ou do português para o árabe) e contemplar distintas áreas do conhecimento.
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São diversas as obras traduzidas. Para citar algumas mais recentes, traduzimos pela primeira vez para o árabe João Guimarães Rosa e Machado de Assis, autores que têm sido muito bem recebidos pelos leitores de expressão árabe.
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Como sabemos, Guimarães Rosa utiliza-se de arcaísmos, regionalismos, indigenismos, neologismos e onomatopéias; revela-se, assim, um dos escritores que mais se utilizam das potencialidades da língua portuguesa. Nesta tradução, procuramos reproduzir essas características, seus experimentos linguísticos, e preservar ao máximo a riqueza lexical nas denominações da fauna e da flora. Para citar um exemplo, em “Famigerado”, ao descrever os três cavaleiros que observavam à porta o médico inquirido, o escritor diz que estavam “mumumudos”. Em árabe, repetimos a primeira sílaba do vocábulo correspondente três vezes e procuramos explicar em nota de rodapé que o autor lançou mão da repetição para permitir que o leitor observasse cada uma das personagens.
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A importância que Guimarães Rosa atribui à linguagem é tão expressiva que esse é o tema do conto citado, no qual o conhecimento e o domínio linguístico determinam as posições sociais. E o poder da força (Damásio) opõe-se ao poder da instrução e do saber.
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Já a obra de Machado de Assis abrange praticamente todos os gêneros literários. Jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, na contística refletiu sobre a cultura popular urbana e retratou o ambiente político, cultural e social do Rio de Janeiro no século XIX e na virada para o século XX. No decorrer do quase meio século da produção literária de Machado de Assis, de 1864 até sua morte, o Brasil testemunhou um ciclo de modernização, que aparece na obra do autor com suas contradições e dilemas. Em seus romances e contos, além das crônicas, pode-se acompanhar a história do Rio de Janeiro, então capital do Império do Brasil e microcosmo de sua história urbana.
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Algumas outras obras traduzidas são O Beco do Pilão, de Naguib Mahfuz (Prêmio Nobel de Literatura em 1988), Poemas de Mahmud Darwich, descrito por Edward Said, em Reflexões sobre o exílio, como um “artista que dá voz a exilados enraizados e às dificuldades dos refugiados presos em armadilhas, a fronteiras em dissolução e identidades em mudança, a exigências radicais e novas linguagens”, e o romance Homens ao sol, de Ghassan Kanafani. Publicado em 1963, é um marco da literatura árabe e palestina – descrito por alguns críticos como a principal criação literária palestina. A caracterização das personagens é complexa e abriu caminho para uma tendência no romance palestino.
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A obra narra a história de três palestinos que não se conhecem, mas que estão, ao mesmo tempo, em Basra (Iraque), de onde tentam cruzar ilegalmente a fronteira para o Kuait. Cada um deles descobre que não pode pagar o preço exigido pelos contrabandistas profissionais e tenta, à sua própria maneira, descobrir um meio de partir, até que finalmente se encontram uns aos outros e ao contrabandista que se oferece para levá-los ao Kuait por um valor menor, mas ainda elevado. Esse contrabandista, Abul-Khayzuran, é motorista de um caminhão-pipa que pertence a um rico comerciante kuaitiano.
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O plano de Abul-Khayzuran para contrabandeá-los do Iraque para o Kuait mostra-se simples. Como ele é obrigado a voltar com o caminhão vazio para o Kuait, pode levar os três homens. Durante a maior parte da viagem, eles vão ao seu lado na cabine, mas, um pouco antes da fronteira, devem se esconder dentro do tanque de água vazio. Depois de a polícia conferir seus documentos e ele se distanciar um pouco da fronteira, eles podem sair e completar a viagem ao seu lado. Os três palestinos não gostam do plano. Abu-Qays, o mais velho, não ficara satisfeito desde o início, pois compreende que é uma aventura extremamente arriscada. Ele está mais inclinado a viajar com um contrabandista profissional, apesar do preço exorbitante. Marwan, o mais jovem, se sente confuso e não consegue se decidir. Assim, recai sobre As‘ad, o mais consciente politicamente, a responsabilidade de tomar a decisão.
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As‘ad faz Abul-Khayzuran admitir que seu trabalho não é realmente o de transportar água, mas, sim, o de contrabandear mercadorias para o comerciante kuaitiano. O tráfico de seres humanos é um trabalho que lhe proporciona uma renda extra. O fato de que Abul-Khayzuran admite realizar essas atividades ilegais e aceita receber o pagamento na chegada ao Kuait, não antes (como exigira insistentemente desde o início das negociações), dá autoridade a As‘ad para fazer com que Abu-Qays e Marwan concordem com a decisão que ele próprio tomou. Ele aceita o risco porque, na verdade, não tem outra escolha.
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Abul-Khayzuran diz “prestar um serviço” aos outros ao promover o tráfico de seres humanos. Garante que já fizera isso antes com sucesso. Nessa viagem, contudo, sua sorte muda. Enquanto o caminhão fica exposto ao sol do deserto, os burocratas da fronteira começam a fazer piadas sobre a vida sexual de Abul-Khayzuran. Suas tentativas de encerrar a conversa dos oficiais da fronteira são inúteis e, quando ele retorna ao caminhão, dirige-o por uma curta distância e pára para abrir o tanque, mas já é tarde demais. Os três homens estão mortos, sufocados.
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Ferido pelo remorso, inicialmente ele planeja oferecer um enterro decente aos corpos, mas o choque da tragédia logo se dissipa e ele decide que é mais fácil descarregar os corpos, na calada da noite, em um depósito de lixo municipal nos arredores da cidade do Kuait. Ele faz isso, mas não antes de roubar o relógio de Marwan e de despojar os outros corpos de todas as suas escassas posses. Dessa forma, ele os deixa tão pobres e anônimos na morte como foram em vida.
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As quatro personagens palestinas do romance – Abu-Qays, As‘ad, Marwan e Abul-Khayzuran – pertencem a quatro faixas etárias diferentes e fornecem, assim, uma amostra significativa do povo palestino.
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Uma série de flashbacks introspectivos familiariza o leitor com o passado das personagens ao oferecer uma descrição de seus sonhos, esperanças, objetivos e medos mais íntimos. Homens ao sol enfatiza, além disso, a futilidade do esforço dos refugiados palestinos em procurar um novo lar, um novo futuro e uma nova identidade fora da Palestina. A tentativa de buscar trabalho no exterior passa pela provação do deserto entre Basra, no Iraque, e o Kuait, mas o deserto não leva à redenção. Ao contrário, sufoca até a morte os que vêm da Palestina. O autor afirma que é preciso vencer o deserto para chegar à Palestina, não para abandoná-la.
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O deserto causticante em Homens ao Sol representa uma antítese à terra na qual as personagens viveram um dia, um não-lugar, uma negação de sua própria existência. Os pensamentos das personagens transitam rapidamente entre o presente e o passado conforme o sol e a areia brilhante do deserto atacam a consciência. Em um trecho do livro, o sol brilhante se torna a luz da sala de operações na qual o contrabandista palestino acordara após a batalha na qual se ferira em 1948. Em outro momento, a areia molhada próxima ao canal do Chatt Al-‘arab torna-se o solo umedecido pela chuva do campo perdido de Abu-Qays.
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No próximo mês, será publicada a importante obra Rihla, de Ibn Battuta. Nascido em Tanger, Muhammad Ibn Battuta (1304-1368) viajou durante mais de 30 anos por uma parte considerável da África, da Europa e da Ásia. Vinha de uma família de jurisconsultos que praticavam a profissão em Marrocos e na Andaluzia. Em sua juventude, Ibn Battuta aprendeu as ciências religiosas e jurídicas – exegese corânica, as tradições do Profeta (ahadith), gramática, retórica, teologia, lógica e direito. E logo se revelou um alim (sábio).
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A civilização islâmica era altamente cosmopolita no século XIV em dois aspectos. Em primeiro lugar, as cidades islâmicas tinham as populações mais heterogêneas de habitantes e visitantes transitórios do mundo. Isso se aplicava especialmente às cidades do interior do mundo islâmico, em parte porque a região entre o Egito e a Pérsia (denominada atualmente de Oriente Médio) era geograficamente o local através do qual passavam as rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Árabes, persas, judeus, curdos, berberes, turcos, gregos, italianos e catalães viviam em Damasco, Alepo, Jerusalém, Tabriz, Alexandria e Cairo.
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Entre os viajantes que se dispunham a enfrentar as trilhas de caravanas e as rotas marítimas do século XIV, os muçulmanos predominavam. Como as terras do Islã dominavam o centro do hemisfério oriental, os mercadores e os sábios muçulmanos se moviam por entre as maiores regiões da Eurásia e da África. Muitos faziam a peregrinação sagrada a Meca (o hajj) e Medina, na Arábia, uma jornada que um peregrino pobre podia levar vários anos para realizar. Outros ainda viajavam como emissários diplomáticos, mensageiros imperiais, místicos, andarilhos ou estudiosos em busca de livros e professores renomados.
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O internacionalismo islâmico também era evidenciado na vida coletiva dos ulemás, os muçulmanos versados na lei e na religião. De acordo com a tradição islâmica, valorizavam-se os indivíduos que viajavam para fazer o hajj ou para aprimorar a sua educação nas ciências religiosas. Ibn Battuta iniciou sua viagem com o intuito de realizar a peregrinação para dedicar-se ao estudo da geografia, da história e das sociedades que visitava.
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Os muçulmanos letrados do norte da África (caso de Ibn Battuta) ou do sul da Espanha estavam particularmente inclinados a fazer longas viagens ao exterior, em parte para realizar as obrigações religiosas do hajj, em parte para fazer viagens de estudo a outros centros de saber, como o Cairo, Damasco e outras cidades universitárias do Oriente Médio.
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Ibn Battuta testemunhou acontecimentos trágicos como a Peste Negra e os problemas econômicos, os colapsos políticos e as transformações sociais que dela advieram. Viu e analisou mais do Dar al-Islam (as terras do Islã) do que qualquer outra pessoa já vira anteriormente. E viajou também entre territórios não-muçulmanos.
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A “Rihla” representa ainda o único relato de testemunha ocular que temos sobre as cidades-estado da África oriental e o império mali no século XIV; seu relato inclui descrições detalhadas do governo real desse império.
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O relato de Ibn Battuta sobre as cidades da África oriental de Mogadishu, Mombasa e Kilwa é extremamente informativo historicamente. Suas descrições de Damasco, Jerusalém, Meca, Kufa (no atual Iraque), Cairo e muitas outras cidades testemunham de forma ímpar os eventos históricos, as paisagens, a arquitetura, as culturas e o modo como essas sociedades viviam; de fato, muitas das tradições por ele retratadas e dos cenários por ele descritos se mantêm. Por essas razões, a obra que descreve seu périplo de 30 anos tornou-se uma referência fundamental para geógrafos, historiadores, críticos literários, lingüistas e antropólogos, entre outros.
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Agora, queremos saber um pouco da BibliASPA, de como surgiu essa ideia, de quais países principais estão dando apoio, dos grandes projetos que você tem para os próximos anos. Soube inclusive que a Biblioteca terá uma nova sede nos próximos meses, onde será possível realizarmos cursos, exposições, passarmos filmes árabes.
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A BibliASPA surgiu da constatação da existência de uma grande carência por ações na área da cultura e da educação vinculadas a temas árabes, africanos e sul-americanos. Entre seus objetivos, propõe-se a promover a integração entre entidades (não-sectárias) ligadas à literatura, às humanidades e à cultura, em geral, e à cultura sul-americana, árabe ou africana, em participar; promover a aproximação e o conhecimento mútuo entre a América do Sul, a África e os países árabes; incentivar a reflexão crítica, a pesquisa, a produção e a difusão de saberes entre as regiões envolvidas e aprofundar a pesquisa sobre a presença árabe na América do Sul (temos muitos projetos nesse campo).
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Quanto à nova sede, com certeza continuará a desenvolver e intensificará a realização de cursos, palestras, mostras de cinema e exposições, pois de fato há muito que fazer nessa área.
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São muitos os países que atuam neste projeto, em diversas instâncias. A participação de importantes intelectuais, tanto no Brasil quanto no exterior, desde o início foi essencial. Edward Said, com quem tive a oportunidade de conversar, entre outros temas, sobre essa necessidade de refletir criticamente a respeito dessas temáticas fundamentais, foi um dos incentivadores para que esse processo ocorresse.
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A BibliASPA tem atraído apoios importantes em universidades e centros de cultura e pesquisa, ademais de órgãos governamentais e não-governamentais. O lançamento do livro Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali, por exemplo, contou com a presença do então ministro da Cultura, Gilberto Gil, e do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Nessa ocasião e em outras, ambos enfatizaram a importância do projeto. Sem dúvida, o respaldo e o interesse têm sido muito claros.
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Convido a todos a acessar nosso portal, a ler a Revista Fikr de Estudos Árabes, Africanos e Sul-americanos e a participar de nossas atividades. Será um prazer conversar com os interessados. Ahlan wa Sahlan!
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Gostaríamos agora de falar um pouco de política em geral. É possível difundir a cultura milenar árabe sem entrar em questões políticas que tanto envolvem os países no Oriente Médio? Como é o seu engajamento pessoal nas questões de solidariedade ao povo árabe em geral e aos palestinos em particular?
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Generalizações indevidas caracterizam, na maioria das vezes, a visão que europeus e norte-americanos têm dos países árabes. E a representação que se faz dessas culturas com frequência têm objetivos políticos de deturpação.
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Quanto maior o afastamento, mais distantes da realidade se revelam as representações.
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Uma forma clara de aproximação passa pelo respeito de ambas as partes e por políticas externas que não privilegiem um determinado grupo unilateralmente. Nesse sentido, é fundamental implementar as resoluções internacionais da ONU, por exemplo, no que diz respeito à Palestina, para garantir a desocupação dos territórios ocupados, um Estado viável e uma convivência pacífica entre os diversos grupos.
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A Assembléia Geral ou o Conselho de Segurança da ONU já aprovou diversas resoluções referentes à questão palestina que propõem uma solução pacífica para o conflito que leve ao fim da ocupação; é necessário implementá-las o quanto antes.
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Os eventos que sucederam à criação de Israel tiveram um triste impacto sobre o povo palestino. Ao final do processo inicial de desapropriação, mais de quatrocentas cidades e aldeias árabes da Galiléia, da região costeira, da área entre Jaffa e Jerusalém e da região sul da Palestina tinham sido despovoadas. 
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Uma questão central é identificar (e buscar soluções para) questões cruciais do conflito, entre as quais: Jerusalém, os recursos hídricos e os refugiados.
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Entendo que uma solução pacífica para a questão da Palestina e que restitua os direitos de seu povo terá consequências positivas para a região e para o mundo todo e reduzirá instabilidades e focos de conflito, além de significar o reconhecimento e a valorização do humano.

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* Presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, escritor, arabista e professor. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association.
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* Opiniões aqui expressas não refletem necessáriamente as opiniões do site.
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  • Paulo Farah

    14/10/2009 7h21
    Adorei conhecer Paulo Farah. Gostaria que ele, ou alguém com quem tenha contato, me indicasse onde encontrar artigos sobre a história do povo árabe, em Português, se possível. Se a fonte estiver na internet, tanto melhor; favor indicar o "caminho".Eu escrevo para vários jornais virtuais e gostaria de escever algo interessante e inédito, se possível, sobre o povo ou folclore (melhor seria)árabe.Alguém me ajuda?
    ACAS
    São Paulo - SP
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