O amor redime mas aqui não há amor
24.10.2012 - Ana Dias Cordeiro
A vida interior das personagens de A Dança da Morte tem mais de um século, mas parece dos dias de hoje. Marco Martins mostra como no São Luiz
A última casa onde August Strindberg (1849-1912) viveu em Estocolmo não tinha cozinha. As refeições eram-lhe servidas por um restaurante próximo. Na sala, tocava-se piano, Beethoven, para enganar o vazio das horas sem fim em noites sem nada para fazer - as mesmas de que o escritor sueco fala longamente nos seus diários. Era de dia que o dramaturgo escrevia. E o que escrevia era de tal maneira virado para o íntimo das personagens e para a claustrofobia do casal que podia ter sido escrito hoje.
Foi essa intemporalidade que levou Marco Martins a escolher encenar A Dança da Morte (1900) - a peça, que junta Miguel Guilherme (Edgar, o capitão), Isabel Abreu (Alice) e Sérgio Praia (Kurt) estreou-se ontem no São Luiz, em Lisboa, onde estará até 17 de Novembro. Por ser um clássico que prescindia de qualquer "recontextualização", foi uma escolha natural para o cineasta e encenador, que pegou nestas três "personagens sem salvação", como muitas outras do universo de Strindberg, esquecendo-se de que foram escritas há mais de um século. Depois, colocou-as frente a frente num huis-clos inspirado no próprio mundo de Strindberg: os seus diários, a casa onde morou, os cafés que frequentou e as ruas por onde andou em Estocolmo, que Marco Martins visitou. Numa frase: toda a matéria que envolveu em vida o escritor e que ficou, como pedra, para além da sua morte
O dito e o não-dito
É também dessa matéria que vive a encenação desta peça com contornos vagamente autobiográficos. Não que A Dança da Morte seja um reflexo do(s) casamento(s) falhados do escritor; é antes um reflexo do casamento da sua irmã com um capitão. Na peça, a ilha em que a irmã de Strindberg viveu com o marido é metafórica; como o é também a quarentena que traz Kurt de volta a este lugar sem nome e à casa de Edgar, um oficial que nunca chegou a major por ser "um tirano com alma de escravo", como diz Alice. Também ela remói um passado que podia ter sido e não foi: casou, deixou a promissora carreira de actriz e agora é tarde de mais para voltar.
Strindberg não era um homem só. Ou pelo menos não aparentava sê-lo. Foi casado três vezes, sempre com actrizes, e a diferença de idades aumentava à medida que ia envelhecendo. Na vida real, o escritor não terá deixado o ódio instalar-se no casamento da forma como ele se instala na peça. Ou talvez sim.
O capitão Edgar de A Dança de Morte também é casado. Mas revela-se ao espectador como um homem amargurado e só. É dele a frase: "Se tivermos paciência, quando vier a morte talvez a vida comece." Di-la a Alice, cínica e manipuladora, e ao mesmo tempo uma mulher dedicada e uma excelente mãe. É como uma zona de sombra sob a forma de personagem. Como aliás Edgar e Kurt, "num texto que vive muito do que não é dito", diz Marco Martins ao Ípsilon. A peça assenta nos diálogos. Mas neste "dizer muita coisa" também há muita coisa sobre o passado que não se diz. "A construção da biografia das personagens tem de ser feita por nós", continua. E sendo esta "uma peça de actores, de personagens e de personagens muito complexas", o encenador só avançou quando tinha os actores certos.
Teatro íntimo
Em A Dança da Morte, a possibilidade de divórcio em fundo reflecte a sociedade sueca da viragem do século XIX para o século XX, época em que as mulheres viviam com grande liberdade. "Este é um lado extremamente actual, que nos liberta da ideia de estarmos a fazer um clássico", sublinha Marco Martins. A complexidade das personagens também atraiu o encenador. Estas peças permitem "um trabalho íntimo com os actores" que lhe agrada.
Mas no princípio de tudo, e invertendo raciocínios, houve a vontade de trabalhar com Miguel Guilherme. Como se só depois do sim do actor o resto fizesse sentido e as outras escolhas também fossem naturais: Isabel Abreu para Alice e Sérgio Praia para Kurt. Um triângulo claustrofóbico que o encenador transpõe para o palco como uma sala com grades onde normalmente estão paredes, e onde o único meio de comunicação para o exterior é um telégrafo e não um telefone, para impedir que outros escutem as conversas. É neste ambiente de desconfiança e paranóia que se desenrola o diálogo entre as três personagens, que só raramente estão juntas em palco. O triângulo só se fecha porque a relação se revela nos diálogos a dois. E a sua revelação é a sua destruição.
O casal vive numa torre isolada, um forte que foi em tempos prisão - também aqui metáfora do tormento conjugal. Edgar e Alice são duas metades que se revêem num espelho de frustrações acumuladas que exibem "a maneira como sempre projectamos as nossas frustrações no outro quando vivemos em casal": "Este futuro que vai sendo sempre adiado, este clima de frustrações constantes sempre presente e de projecção no outro dos nossos falhanços" é um clássico contemporâneo, admite o encenador.
Para Marco Martins, que conhecemos sobretudo do cinema, como realizador de Alice (2005) e de outros filmes, não é difícil traçar paralelos com o mundo actual e a falta de perspectivas - "Nós identificamo-nos, espelhamo-nos nas obras que vemos, vemo-nos onde queremos" -, da mesma maneira que é natural imaginar esta peça como um filme. "Estamos a trabalhar, muitas vezes, dentro de uma linguagem muito cinematográfica, porque é muito virada para dentro, nada histriónica, e muito pouco teatral."
Os actores estão ligeiramente amplificados "para não destruir a psicologia das personagens". É como um grande plano sobre a capacidade de Edgar, Alice e Kurt esquecerem a sua humanidade.
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