terça-feira, 4 de março de 2014

Raúl Brandão - O Entrudo, in Os Operários



Dia de Entrudo

Domingo, 19 de Fevereiro – Dia de Entrudo 1922

Nunca passei dias tão amargos como estes dias de Entrudo. A pátria vai acabar? Isto vai acabar? Temos diante de nós uma nova revolução e uma intervenção estrangeira?

E os bêbados na rua andam aos tombos. Ouvem-se gritos. Gritos carnavalescos, rugidos de bestas aos vómitos. Domingo de Entrudo. O País acabará entre os vómitos dos bêbados que jogam o Entrudo no meio da rua?

Todo o dia, toda a noite correram boatos. Passei horas com o ouvido à escuta, atento ao primeiro estremeção… Anunciam-se duas, três, quatro revoluções iminentes. Vêm nos jornais: uma, a da Guarda; outra, a dos comunistas; outra…

A atmosfera é de tragédia – e na rua passam bandos, com lantejoulas e um corno enfiado num pau, com cabriolas desengonçadas de palhaços. Viva! Urra! Portugal vai morrer? Portugal vai morrer no Entrudo? Sente-se que isto caminha passo a passo para a agonia.

A Vinda da esquadra inglesa; o acto de ela não embandeirar em 31 de Janeiro, apesar da ida de um oficial da majoria a bordo instar com o comandante, que lhe respondeu. «Tenho ordens do meu governo»; a miséria deste povo; a exploração dos que ganham seja como for, levando-nos o oiro para o estrangeiro (200 milhões). A circulação fiduciária vai ser aumentada; pelo futuro convénio com o Transvaal estamos arriscados a ficar sem Moçambique, segundo afirmou o próprio António Maria daSilva; a prisão dos oficiais é muito melindrosa…

Do Rossio vêm ecos de risadas em coro. O regabofe do Entrudo começou esta noite que vejo aproximar-se com apreensão – mais sobressaltos e mais sangue. Vejo a tragédia imensa caminhar sobre nós, enquanto lá foram estouram as bexigas de porco… Não posso ler, não posso pensar, obsidiado pela mesma ideia fixa…

É a fatalidade? É um conjunto de circunstâncias? Foi a alma humana que se transformou com a guerra?
Todos querem explorar a vida. Contar com quem? Com as forças vivas? As forças vivas é que nos exploram. A agricultura está nas mãos de pessoas tão agiotas como os bancos da Rua do Ouro. Não quer semear trigo – semeia cada vez menos. Transforma as terras de pão em terras de pastos, para vender o gado na Espanha. O operariado? Mas o operariado só faz exigências, e se sente um governo radical, mais exigente se tornará. Os monárquicos? Mas foram os monárquicos que, no tempo de Sidónio, transformaram a Empresa de Navegação no grosso negócio da Companhia de Navegação. A Agência Financial do Rio de Janeiro – que nem se sabe o que meteu nas algibeiras – é outro grande negócio dos monárquicos – e foram os monárquicos que nos empobreceram com o escândalo dos cinquenta milhões de dólares, encarecendo ainda mais a vida e preparando gerações desgraçadas.

A República deixou as companhias majestáticas e os bancos – desde o Ultramarino até ao Banco de Portugal! – nas mãos dos monárquicos. Toda a política nos últimos tempos é feita por eles – toda a história do dinheiro, a grande, a única questão dos interesses, está nas mãos e dependente da oligarquia financeira. Até a opinião. Os jornais, o Diário de Notícias, aPátriaO Século, a Imprensa da Manhã e o próprio Mundo, que de França Borges foi ter a uma dependência do Banco Colonial – tudo manobra segundo as ordens do ouro omnipotente.

Acolá passa um grupo aos uivos. Mais risadas estúpidas… Este grande, este pobre povo, sempre sacrificado, deixando a ossada pelo vasto mundo, irá acabar entra pançadas e vómitos nesta semana trágica do Carnaval?... Poderemos ainda fugir a isto? Poderemos salvar-nos?...

Tudo são negócios – e toda a gente quer enriquecer dum dia para o outro. É uma sofreguidão. Os exploradores da vida estão cada vez mais ásperos ou mais desesperados… Até as quedas de água – em que tanto se tem falado como uma possível remissão – estão hoje nas mãos dos Burnay, que tenta passá-las a uma companhia inglesa…

A população diminui, os organismos mal alimentados depauperam-se. O número de abortos é cada vez maior. De 1919 para cá, acentuaram-se os efeitos da situação económica no número de nascimentos e doentes…

Não estamos à beira do abismo – resvalámos já no abismo. E o coro de risadas aumenta – ouço pum! pum! pum! – e o coro da troça sobe cada vez mais alto.

O tempo está lindo – o tempo é outro escárnio.

Raúl Brandão, Os Operários, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1984.
http://plusultra-bn.blogspot.pt/2012/02/dia-de-entrudo.html

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