sábado, 1 de março de 2014

machado de assis e um poema sobre o Carnaval

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 47 – 16 de fevereiro de 1888

Talvez o leitor não visse,
Entre editais publicados,
Uma boa gulodice?
Abra esses beiços amados.

Vamos, não tenha vergonha,
Estenda agora a linguinha,
Para que esta mão lhe ponha
Sobre ela esta cocadinha.

Disse nesse documento
A câmara que é vedado
Usar o divertimento
Entrudo, como é chamado.

Impôs as palavras duras
Do parágrafo e artigo
Do código de posturas,
Código já meio antigo.

A mim disse que a pessoa
Que outras pessoas molhasse,
Fosse a água má ou boa
Que das seringas jorrasse,

Incorreria na multa
De uns tantos mil-réis taxados,
E não ficaria inulta,
Se os não desse ali contados.

Porque iria nesse caso
Pagar suas tropelias
Na cadeia, por um prazo
De (no mínimo) dois dias.

E as laranjas, que se achassem
Na rua ou na estrada à venda,
Mandava que se quebrassem,
Como execrável fazenda.

Laranja, bem entendido,
Laranja, própria de entrudo,
Um globo de cera, enchido
Com água... às vezes, com tudo.

Ora, se o leitor compara
A exemplar compostura
Do povo (exemplar e rara)
Com o dizer da postura;

Se adverte que uma só pinga
De água não caiu na gente,
Que não houve uma seringa
Para acudir a um doente;

Que o belo colo das damas
Não viu o gesto brejeiro
De apagar-lhe internas chamas
Quebrando um limão de cheiro;

Conclui logo que a cidade
Obedece, antes de tudo,
A si (porque a edilidade
É ela) e deixou o entrudo.

Porém eu, que vi, em todos
Os anos, isto na imprensa,
Já desde o tempo dos godos
(João, com tua licença!);

E que, apesar de postura,
Vi seringas respeitáveis
De água cheirosa e água pura,
Terríveis e inopináveis;

Crioulas e molequinhos
Carregando em tabuleiros
Prontinhos e arrumadinhos
Infindos limões de cheiro;

Eu diversamente opino,
E digo que a lei se engana,
Se cuida ter no destino
Alguma ação soberana.

Recorda a mosca pousada
Na carroça, diz a fama,
Que, ao vê-la desatolada,
Cuidou tirá-la da lama.

Não, amiga lei. O entrudo
Desapareceu um dia
Entre calções de veludo,
Carnavalesca folia.

Reapareceu mais tarde;
Vingou por bastantes anos,
Com estrondo, com alarde,
Triunfos grandes e ufanos.

Chega a polícia de novo
E desterra o velho entrudo;
Troca de brinquedo o povo,
Fica somente veludo.

Mas quando houverem passado
O tempo e a policia, a ponta
Da orelha do desterrado
Entre bisnagas aponta.

E porque legem habemus,
Seja branda ou seja dura,
Anualmente veremos
A mesma inútil postura.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

http://singrandohorizontes.blogspot.pt/2014/02/machado-de-assis-gazeta-de-holanda-n-47.html

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