- Domingos Lobo
Poemas de indignação e resistência
De Poema em Riste, de José Carlos Vasconcelos
A literatura dos rebeldes com causa, aquela que em prosa e verso teve coragem de afrontar o fascismo, construir uma escrita de intervenção cívica e cultural sobre as condições sócio-políticas vividas em Portugal durante quase cinco décadas; registar a memória desses anos e deixar traços perenes desse empenho em outras artes (na pintura, na música, no cinema), afinal não estará tão morta e enterrada como muitos por aí, ufanos, vêm propagando. Novos títulos começam a estar disponíveis nos escaparates, alguns dos quais já nestas páginas demos notícia, e outros começam a ser reeditados.
A poesia do neo-realismo, ou de vozes afins, expressou sempre um diálogo desinibido contra a ditadura e tudo o que ela representava de regressão civilizacional: a opressão, a fome, as prisões, a guerra colonial, a emigração, o exílio. Propõe-se agora olhar, de frente e sem tibieza, para a nossa história e os seus factos mais sórdidos, mesmo quando o lodo desse passado, de tão inverosímil em povo de «brandos costumes», ainda se nos cola à pele. Uma literatura que assume os factos e as feridas da verdade histórica mesmo que o fascismo no-lo tenha sonegado, inventando mitificações lorpas; uma literatura que assume o sujeito, enquanto agente de uma determinada realidade e da sua efabulação.
Se o acto de escrever é um acto de responsabilização – cultural, cívica e ética, os poetas que viveram os dias sórdidos e os denunciaram, atingiram, quase sempre, esse estágio supremo da criação literária: questionar o real e interpretá-lo. Outro dos elementos que encontramos nessa literatura, sobretudo na poesia, introduzido de forma hábil no discurso poético, é o da sinceridade: sinceridade emocional, ideológica, afectiva, sexual. Só na poesia o discurso autodiegético foi tão expressivo, tão confessionalmente linear.
Raramente a literatura portuguesa deu a dimensão trágica, o absoluto do drama épico, como nos textos em que a denúncia da opressão surge como suporte ficcional. É a tragédia do homem com sua consciência, com o seu sentido do dever colectivo e da justiça, e essa componente cívica e conflitual nunca antes a literatura portuguesa conseguira traduzir tão rigorosamente.
Não deixa de haver nessa escrita, nos signos ideológicos que ela transporta e do seu engajamento, de autores revelados nos finais dos anos 1950 e início de 1960 (António Gedeão, António Ramos Rosa, Fernando Assis Pacheco, Herberto Helder, José Carlos Ary dos Santos – alguns enquadráveis numa segunda vaga neo-realista), uma componente humanista (no sentido heideggeriano) universal que é, na sua proposição, um traço determinante de modernidade, dado que anunciadora de uma realidade outra, de abertura a novas coordenadas que entroncam na capacidade de reflectir a realidade social com exigência formal e, nos casos mais conseguidos, suplantando até as coordenadas exegéticas ao tempo da sua gestação. Os diálogos explícitos que alguns textos ensaiam com a ditadura, desmontando os pressupostos ideológicos e o cinismo da sua retórica, configuram um dos mais relevantes e criativos períodos da nossa poesia. E bastam-nos umas dezenas de obras – algumas, estreias notáveis dos seus autores – para provar que foi decisiva essa contribuição para a reinvenção de um olhar novo e diferente sobre a explanação metafórica do real e que, sem esses textos, possivelmente ainda hoje estaríamos a escrever retratos decadentes sobre a burguesia (Óscar Lopes).
Vem isto a propósito da reedição, levada a cabo pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, na colecção Memória Perecível, do livro De Poema em Riste, de José Carlos Vasconcelos. Este livro, editado em 1970 (edição do autor, para que o editor não viesse a ser economicamente prejudicado com o seu eventual confisco – o que veio a suceder, não impedindo que os 3500 exemplares de tiragem quase se tivessem esgotado), insere-se na linha de combate ao estado novo, fazendo-o com uma linguagem rasando a sátira e a inventiva formal (distante já da poesia da geração neo-realista coimbrã e mais próxima de Manuel Alegre dePraça da Canção), para desobedecer ao normativo sufoco imposto pelo salazarismo/caetanismo.
Se esta poética não goza hoje dos favores de uma corte vergada a interesses estéticos de importação (Eduardo Pitta refere o silêncio ensurdecedor em torno da obra de Ary dos Santos),1 como o próprio José Carlos Vasconcelos, no corajoso posfácio que acompanha esta edição, denuncia, em detrimento de uma poética do eu contentinho e conformado, da autocontemplação e do embuste, isso se deve à função crítica que hoje se exerce nos jornais ditos de referência. Para esses críticos, e para os jornais que lhes dão guarida, poetas que ousem ir além do seu próprio reflexo, são poetas tresmalhados, que não cabem no estreito, e beato, espaço daparóquia do Chiado. Vejamos o que escreve José Carlos Vasconcelos: porque somos por uma poesia do povo e para o povo, é que negamos as grandes e pequenas metafísicas, as diversas formas de fuga e demissão deste tempo e desta Pátria a que pertencemos – é que negamos todas as palavras que não têm sangue dentro e se limitam a jogos malabares no trapézio do papel: simulando o risco da criação, quando afinal atuam sempre com rede...
A poesia arrumadinha nas dobras do cetim, nas boas e piedosas acções, é uma astúcia serôdia, uma homilia para cadáveres. A poesia deve trazer, no seu corpo celerado, a luz e a sombra e uma bala de palavras altas na escopeta pronta a disparar: Aqui onde respiro /o poema não pode ser rouxinol/ quando as sílabas são sitiadas/ e as almas são cercadas //o poema não pode ser rouxinol/ se nos roubam o pão e o sol.
A poesia, esta de Poema em Riste, não tem olhos de lua pasmados de lirismo conformado, mas garras de lince prontas a filar o ignóbil corpo da usura: Somos de uma pátria de fome/ com esse ou outro nome// Seu latifúndio é ancestral/ A Fome já tem netos bisnetos tetranetos/ – uma família que é a maior de Portugal.
Mesmo datados, há ainda nestes versos um longínquo rumor de chama, uma luminosidade sintáctica que os faz nossos, reconhecíveis, dado que transportam as inquietações que perdurarão enquanto o essencial da sua génese se não cumprir. Poemas que ainda nos desassossegam pela memória que implicam, pelo acre da fala, pelo grito que ainda ressoa nos descampados.
Livros como De Poema em Riste, de José Carlos Vasconcelos, porejem imponderáveis dias justos, não cabem num qualquer rectângulo de terra húmida, ou em gavetas de pó e de silêncio, onde, embora de modo mais civilizado e subtil, os querem acantonar, fingindo ignorá-los. Mas estes livros estão entre nós, e respiram.
Saídos do espaço vigiado e oprimido dos fascismos, estes poemas ainda recolhem sinais perenes da sua revolta fundadora, ainda trazem para a contemporaneidade esse lastro rumoroso, alegórico, de um tempo em que era urgentebrandir o poema/ e deixar um cheiro de açucena/ um rio de flores à passagem, e em que o poeta tinha por ofício/este exercício/ diário da indignação.
1In Comenda de Fogo, de Eduardo Pitta, p.266, Círculo de Leitores, Lisboa 2001
De Poema em Riste, de José Carlos Vasconcelos
Edição AJHLP/2016
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