É talvez a menos frequentada pelos banhistas, o que não obsta a que seja uma das mais pitorescas e mais belas povoações marítimas de Portugal.
A uma hora do Pôrto pelo caminho de ferro da Póvoa, cuja linha é cortada por entre espessos pinheirais, Vila do Conde descobre-se repentinamente, numa volta de estrada, no meio de uma vasta paisagem, ampla, descoberta, de larga respiração.
Ao penetrar na ponte que une as duas colinas, ao nascente da vila, o viajante vê diante de si, ao longe, as montanhas de Rates, aos seus pés ondula o rio Ave por entre as viçosas margens cobertas pela verdura suave dos pinhais. Ao meio do rio, entre a ponte de ferro e a vila, um açude. Em cada uma das margens, um velho moinho, musgoso, move lentamente a sua grande roda denegrida e gotejante.
Assente sobre rocha, na margem esquerda do rio, sobranceiro à vila, o convento, grande edifício de Renascença francesa, tem um artístico aspecto, dominativo, senhorial, ostentando ao largo sol, sobre a cimalha, junto de uma monja com o hábito de Santa Clara, o grande elefante branco, símbolo da castidade, que constitui o brazão do convento. D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis e sua mulher D. Teresa Martins de Menezes, filha do primeiro conde de Barcelos, foram os fundadores do convento, onde hoje estão sepultados, e que doaram às freiras franciscanas.
D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis e sua mulher D. Teresa Martins de Menezes, filha do primeiro conde de Barcelos, foram os fundadores do convento, onde hoje estão sepultados, e que doaram às freiras franciscanas.
O mosteiro de Vila do Conde era rico e fidalgo. Habitavam-o 120 freiras, a maior parte delas de famílias nobres. Possuíam a povoação de Azurara que fica na margem sul do rio, dízimos e outros direitos senhoriais. Eram donatárias de Vila do Conde, de entre outras vilas de Entre-Douro-e-Minho, e de Alcoentre no Ribatejo. A abadessa sentenciava as apelações das sentenças do juiz. Tinham finalmente direitos soberanos.
D. João III tirou-lhes o senhorio e jurisdição, e instituiu por donatário o infante D. Duarte. Azurara, com a sua bela igreja manuelina, passou a pertencer a si mesma. Os Dízimos foram extintos. De sorte que as freiras empobreceram. As poucas senhoras que actualmente assistem no mosteiro fabricam doce e vendem a especial gulodice da ordem - os pastéis de Santa Clara.
A igreja matriz é do tempo de D. Manuel e no estilo manuelino como a de Azurara.
A ermida de Nossa Senhora do Socorro, que se avista da ponte e fica entre ela e a barra, à beira rio, é redonda, tem a forma de uma mesquita otomana, a que só falta o complemento de uma palmeira e o apenso de um camelo ou um cavalo árabe.
Além de algumas famílias muito distintas e especialmente hospitaleiras e amáveis a população de Vila do Conde é composta principalmente por pescadores e rendilheiras.
Todo o trabalho gera uma virtude que lhe corresponde. Do fabrico de renda, delicadamente construída por meio de uma infinidade complicadíssima de bilros, com linha branca finíssima, resultam os hábitos de ordem, de aceio, de reflexão, de espírito de sistema.
Não é possível fazer renda e ter uma casa em desordem; não é possível fazer renda e ter as mãos sujas ou deitar nódoas no fato; não é possível fazer renda e murmurar ao mesmo tempo a vida alheia ou alterar com as vizinhas, como sucede a quem doba, a quem fia, a quem faz meia, a quem se ocupa de trabalhos de máquina puramente automáticos.
O fabrico da renda é profundamente moralizador. Dêle procede o carácter e o ar senhorial das mulheres de Vila do Conde e de algumas que particularmente me impressionaram em Peniche pela distinção das suas maneiras, pela gravidade das suas fisionomias, pela delicadeza das suas estaturas, pela elegância aristocrática das suas mãos.
As rendas de Vila do Conde, como as de Peniche, são do género chamado Honiton, semelhante à guipure de Chantilly. Magoa ao considerar os trabalhos destas simpáticas mulheres, ver tanta perfeição de acabamento, tão completa posse do processo, aliada a tão profunda ignorância artística.
Nem em Vila do Conde nem em Peniche encontramos uma só operária que soubesse desenhar. A criação de uma escola de desenho pública e gratuita é tão necessária em qualquer destas localidades como a escola das primeiras letras. A essas mulheres, que tão fiel e escrupulosamente executam os riscos, seria facílimo ensinar a manejar o lápis.
Se em cada uma das escolas de desenho a que nos referimos existisse uma colecção de bons modelos de ornato feitos pelos artistas de mais talento e os jornais especiais da moda francesa com todos os novos modelos, talvez dessas modestas operárias saíssem algumas artistas cuja aptidão contribuiria muito para dar à indústria das rendas portuguesas a grande importância económica de que ela é susceptível.
O campo que cerca Vila do Conde, atravessado pela arcaria do extenso aqueduto do convento, o qual lhe imprime um grandioso ar italiano, é ameno, posto que um pouco triste. As margens do rio perto da grandiosa aldeia de Retorta são extremamente pitorescas.
O único defeito de Vila do Conde como estação de banhos, é a distância que medeia entre a praia e casas da vila, unidas todavia por uma boa estrada, em que uma companhia edificadora estava o ano passado construindo novas casas.
Há feira semanal e feira grande a que concorre muito povo dos subúrbios.
A vila tem dois hotéis. Estivemos no maior, situado na praça em frente da antiga ponte. O aceio não é virtude especial que recomenda esta casa ao respeito dos viajantes. O proprietário distrai a atenção dos forasteiros da infecção de capoeira que caracteriza os salões, servindo-lhes magnífico vinho verde, admiráveis presuntos de Melgaço, de primeira ordem, e os melhores pastéis do convento.
A uma hora do Pôrto pelo caminho de ferro da Póvoa, cuja linha é cortada por entre espessos pinheirais, Vila do Conde descobre-se repentinamente, numa volta de estrada, no meio de uma vasta paisagem, ampla, descoberta, de larga respiração.
Ao penetrar na ponte que une as duas colinas, ao nascente da vila, o viajante vê diante de si, ao longe, as montanhas de Rates, aos seus pés ondula o rio Ave por entre as viçosas margens cobertas pela verdura suave dos pinhais. Ao meio do rio, entre a ponte de ferro e a vila, um açude. Em cada uma das margens, um velho moinho, musgoso, move lentamente a sua grande roda denegrida e gotejante.
Assente sobre rocha, na margem esquerda do rio, sobranceiro à vila, o convento, grande edifício de Renascença francesa, tem um artístico aspecto, dominativo, senhorial, ostentando ao largo sol, sobre a cimalha, junto de uma monja com o hábito de Santa Clara, o grande elefante branco, símbolo da castidade, que constitui o brazão do convento. D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis e sua mulher D. Teresa Martins de Menezes, filha do primeiro conde de Barcelos, foram os fundadores do convento, onde hoje estão sepultados, e que doaram às freiras franciscanas.
D. Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis e sua mulher D. Teresa Martins de Menezes, filha do primeiro conde de Barcelos, foram os fundadores do convento, onde hoje estão sepultados, e que doaram às freiras franciscanas.
O mosteiro de Vila do Conde era rico e fidalgo. Habitavam-o 120 freiras, a maior parte delas de famílias nobres. Possuíam a povoação de Azurara que fica na margem sul do rio, dízimos e outros direitos senhoriais. Eram donatárias de Vila do Conde, de entre outras vilas de Entre-Douro-e-Minho, e de Alcoentre no Ribatejo. A abadessa sentenciava as apelações das sentenças do juiz. Tinham finalmente direitos soberanos.
D. João III tirou-lhes o senhorio e jurisdição, e instituiu por donatário o infante D. Duarte. Azurara, com a sua bela igreja manuelina, passou a pertencer a si mesma. Os Dízimos foram extintos. De sorte que as freiras empobreceram. As poucas senhoras que actualmente assistem no mosteiro fabricam doce e vendem a especial gulodice da ordem - os pastéis de Santa Clara.
A igreja matriz é do tempo de D. Manuel e no estilo manuelino como a de Azurara.
A ermida de Nossa Senhora do Socorro, que se avista da ponte e fica entre ela e a barra, à beira rio, é redonda, tem a forma de uma mesquita otomana, a que só falta o complemento de uma palmeira e o apenso de um camelo ou um cavalo árabe.
Além de algumas famílias muito distintas e especialmente hospitaleiras e amáveis a população de Vila do Conde é composta principalmente por pescadores e rendilheiras.
Todo o trabalho gera uma virtude que lhe corresponde. Do fabrico de renda, delicadamente construída por meio de uma infinidade complicadíssima de bilros, com linha branca finíssima, resultam os hábitos de ordem, de aceio, de reflexão, de espírito de sistema.
Não é possível fazer renda e ter uma casa em desordem; não é possível fazer renda e ter as mãos sujas ou deitar nódoas no fato; não é possível fazer renda e murmurar ao mesmo tempo a vida alheia ou alterar com as vizinhas, como sucede a quem doba, a quem fia, a quem faz meia, a quem se ocupa de trabalhos de máquina puramente automáticos.
O fabrico da renda é profundamente moralizador. Dêle procede o carácter e o ar senhorial das mulheres de Vila do Conde e de algumas que particularmente me impressionaram em Peniche pela distinção das suas maneiras, pela gravidade das suas fisionomias, pela delicadeza das suas estaturas, pela elegância aristocrática das suas mãos.
As rendas de Vila do Conde, como as de Peniche, são do género chamado Honiton, semelhante à guipure de Chantilly. Magoa ao considerar os trabalhos destas simpáticas mulheres, ver tanta perfeição de acabamento, tão completa posse do processo, aliada a tão profunda ignorância artística.
Nem em Vila do Conde nem em Peniche encontramos uma só operária que soubesse desenhar. A criação de uma escola de desenho pública e gratuita é tão necessária em qualquer destas localidades como a escola das primeiras letras. A essas mulheres, que tão fiel e escrupulosamente executam os riscos, seria facílimo ensinar a manejar o lápis.
Se em cada uma das escolas de desenho a que nos referimos existisse uma colecção de bons modelos de ornato feitos pelos artistas de mais talento e os jornais especiais da moda francesa com todos os novos modelos, talvez dessas modestas operárias saíssem algumas artistas cuja aptidão contribuiria muito para dar à indústria das rendas portuguesas a grande importância económica de que ela é susceptível.
O campo que cerca Vila do Conde, atravessado pela arcaria do extenso aqueduto do convento, o qual lhe imprime um grandioso ar italiano, é ameno, posto que um pouco triste. As margens do rio perto da grandiosa aldeia de Retorta são extremamente pitorescas.
O único defeito de Vila do Conde como estação de banhos, é a distância que medeia entre a praia e casas da vila, unidas todavia por uma boa estrada, em que uma companhia edificadora estava o ano passado construindo novas casas.
Há feira semanal e feira grande a que concorre muito povo dos subúrbios.
A vila tem dois hotéis. Estivemos no maior, situado na praça em frente da antiga ponte. O aceio não é virtude especial que recomenda esta casa ao respeito dos viajantes. O proprietário distrai a atenção dos forasteiros da infecção de capoeira que caracteriza os salões, servindo-lhes magnífico vinho verde, admiráveis presuntos de Melgaço, de primeira ordem, e os melhores pastéis do convento.
In As praias de Portugal de Ramalho Ortigão, 1943
http://www.rancho-da-praca.com/paginas/VC_Ramalho/praias_vc.html
http://www.rancho-da-praca.com/paginas/VC_Ramalho/praias_vc.html
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