por PAULO FERNANDO DE SOUZA CAMPOS*
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Em 11 de abril de 1941, em Grajaú, Rio de Janeiro, o acadêmico Lemos Britto concluía o texto introdutório do livro O crime e os criminosos na literatura brasileira.  Muito provavelmente no recôndito de seu escritório, o ex-professor da  Faculdade de Direito da Bahia afirmava que as letras nacionais ocupavam  lugar de destaque no campo da criminologia, sobretudo entre  investigadores e outros manipuladores técnicos que poderiam encontrar em  sua obra muitas idéias e revelações sobre o tema. A introdução  esclarecia que seu livro não se tratava de uma obra de arte ou de  crítica literária e que, tampouco, pretendia constituir-se num tratado  de psicologia criminal. De acordo com o autor, seu livro poderia ser  assumido como uma obra de fixação dos tipos de formas criminais em todo o  país, um apanhado de realidades inexoráveis a serviço do estudo da  delinqüência e dos delinqüentes no Brasil (Britto, 1946: 6)
Um exemplar da obra de Lemos Brito, publicada pela Livraria José  Olympio Editora em 1950, foi adquirido por Coriolano Nogueira Cobra e  doado a Biblioteca da Academia de Polícia de São Paulo, passando a  compor o acervo daquele espaço de consulta e conhecimento. Largamente  utilizado por alunos da Escola de Polícia, o livro de Lemos Britto era  freqüentemente lido por que oferecia sínteses da literatura brasileira,  especificamente aquelas cuja narrativa remontavam acontecimentos  trágicos, mortes bárbaras, cenários e personagens que ofereciam uma  imagem acabada do crime e dos criminosos. Fonte constante às pesquisas  realizadas por aspirantes a policiais, a obra de Lemos Britto era lida  por elucidar pontos omissos, ilustrar afirmações ou estabelecer  confrontos úteis com a realidade vivida, sobretudo na capital paulista a  partir dos anos 1920. (Britto, 1946:  8)
I. 
Na segunda metade do século passado a cidade de São Paulo impunha uma  vida conturbada aos homens e mulheres que viveram o período. Marcado  por tensões sociais permanentes e abrigando um número de pessoas sem  precedentes na História do Brasil, o espaço citadino da capital paulista  transformara-se em território de disputas, campo da violência e de luta  pela sobrevivência, cada vez mais competitiva, segregacionista e  intolerante (Bernardi: 2000)
As constantes reformas e deslocamentos reorganizadores dos espaços e  sociabilidades da jovem metrópole com ares de cosmopolitismo pretendiam,  no pensar e agir das elites, eliminar um dos problemas enunciado pelas  falas inaugurais de um novo tempo: a criminalidade. Havia, no período,  um interesse obsessivo em determinar os tipos criminais, poder  identificá-los, descobrir seus estigmas e comportamentos, unindo  diferentes saberes em torno de um bem comum: classificar as  personalidades desviantes para eliminá-las do convívio social mais  amplo. Tal possibilidade permitiria uma intervenção profilática no corpo  social, excluindo os considerados desviantes, criminosos, sujeitos  perigosos, considerados no período como uma maré montante de  desqualificados, inaptos para o progresso e modernidade requeridos  (Campos: 2003)
Povoada por um contingente bastante heterogêneo, formado por pessoas  de diferentes etnias, a cidade de São Paulo possibilitava encontros e  movimentos considerados como perigosos, agitadores, impondo às  instituições de controle um alerta constante. Não por acaso, a  criminologia – identificada por Lemos Britto como geografia da dor –  assume nas primeiras décadas do século passado uma decisiva participação  no controle social da cidade de São Paulo. A idéia central era não mais  focar os efeitos da lei nos processos criminais mas em saber quem eram  os criminosos, quais eram suas feições, seus perfis psicológicos e  anatômicos. A Antropologia criminal de base lombrosiana permitiu a  formação de uma cientificidade capaz de determinar tipos criminológicos  por intermédio de disciplinas como, craniologia técnica, antropometria,  biotipologia, entre outras que determinavam física e moralmente as  pessoas.
II. 
A publicação de O crime e os criminosos na literatura brasileira  pretendia fazer uma investigação despretensiosa e singela em torno do  crime e dos criminosos coletando de romances, novelas, contos, poesia e  da própria história brasileira, narrativas que evidenciassem ações  delituosas sem distinguir autores clássicos de modernos, consagrados de  obscuros, cultos e célebres de modestos e tímidos estreantes, como  afirmava Lemos Britto. (Britto: 1946, 9)
As representações oferecidas pelo autor sobre os criminosos expunham  tendências de classificação que vinculavam os negros a tipos de  criminosos sexuais como, tarados, maníacos, estranguladores,  estupradores, significando-os como desviantes das condutas consideradas  normais pela ordem médica e norma jurídica. Assim, surpreendendo trechos  de romances, sintetizando novelas, recordando contos ou crônicas,  citando poesias, Lemos Britto pretendia desvendar personalidades  desviantes, reconhecê-las e representá-las a partir dos discursos  disseminados e assumidos pelo encontro da medicina com o direito.
Em um dos capítulos de seu livro, que recebeu o título de “Os  criminosos e seus estigmas”, a interpretação do poema “O Assassino”, de  Gonçalves Dias, apresenta o criminoso a partir de noções antropológicas,  identificando possíveis sinais reveladores de sua anomalia como, por  exemplo: mãos grandes, implantação anormal das orelhas, escassez de  barba e pêlos, fronte fugidia, desmedido desenvolvimento das mandíbulas,  entre outros. No caso do poema, o sinal revelador da identidade do  assassino emerge quando Gonçalves Dias evidencia uma característica  física do personagem principal:
“… Ei-lo, seu rosto pálido se encova,/ Incerto, mais que os vôos de um morcego,/ Seu andar, ora lento, ora apressado,/Profunda agitação revela aos olhos./ Crespos os cenhos, enrugada a fronte,/ Semelha a luz de uma tocha mortuária,/…. O sinal que caracterizava o assassino, de acordo com Lemos Britto eram os cabelos crespos, um traço indelével da condição inferior nata dos negros que na seleção realizada pelo autor são expostos como sediciosos, degenerados.” (Britto: 1946, 17)
Recuperando o conto de Medeiros e Albuquerque, intitulado “Noivados trágicos”, publicado no livro Mãe Tapuya,  Lemos Britto apresenta a história da viúva Leonor cujo marido chamado  Augusto, tomado de desejo, logo após o almoço, chama-a para si no  objetivo da posse. A história que segue narra uma cena trágica que  envolve sexo, desvio e mortes trágicas. Ao citar o conto, Lemos Britto  ressalta a passagem do episódio vivido por Leonor que, após se entregar  ao marido, de súbito, percebe que o mesmo pesa mais do que o costume.  Chamando-lhe (Augusto, Augusto) e como ele não respondia, assustada,  observa que o marido havia morrido. Atormentada, a jovem viúva é lavada  para uma fazenda para descansar. (Britto: 1946, 34)
Prosseguindo sua narrativa, o autor recorta a cena em que a viúva, já  na fazenda, em uma tarde ameaçadora, é assaltada por uma inquietação.  Agitada, caminhando a esmo pela fazenda, Leonor depara-se não muito  distante com um negro. A descrição do encontro revelado por Lemos Britto  emite significados reveladores do ponto de vista das representações  sobre os negros as quais remontam a noção de hereditariedade mórbida  identificada pela medicina legal como uma psicopatologia degenerativa.  Nas palavras do autor:
“Dados alguns passos, a moça avistou um vulto que se dirigia para a fazenda. Mais perto, pôde ver que se tratava de um negro. Era um antigo escravo, já velho, mas ainda robusto. “Louvado seja o Nosso Senhor Jesus Cristo! Leonor teve uma resolução louca. Sem uma palavra, decidida e brusca, avançou para o negro, fê-lo parar e com movimento frenético abriu, desabotoando, desatando, rasgando, as roupas de que estava vestida (…) Com o mesmo frenesi atirou-se a despir o preto. Era já agora um furor alucinado: puxava, rasgava as calças dele… O negro, um momento espantado, sentiu diante daquele corpo nu despertarem-lhe inconsciente, involuntariamente, energias lúbricas de sátiro, todo o calor sensual de sua raça… Num momento o corpo divino de Leonor tinha sôbre si aquêle mono asqueroso, mais asqueroso ainda pelo furor de lubricidade bestial que o animava…” (Britto: 1946, 35)
A imagem do negro como sedicioso, bestial, lúbrico também é sugerida na novela escrita por Benjamin Costalat intitulada A virgem da macumba.  Trata-se, como descrito por Lemos Britto, de um preto pai de Santo que  atrai ao seu terreiro uma pobre órfã na intenção de fechar-lhe o corpo.  Entretanto, prosseguindo a narrativa, Lemos Britto destaca cenas nas  quais o preto pratica atos de pederastia relatando a seguinte passagem:  “…no quarto, despe a mocinha, acaricia-lhe as curvas, e, de repente,  enlaça-a, lúbrico, morde-lhe os seios.” Como em outros recortes  selecionados por Lemos Britto, as práticas sádicas, pedófilas do pai de  santo são expostas em nítida consonância com as teorias preconizadas  pela antropologia criminal italiana. (Britto: 1946, 38)
Nesse sentido, torna-se importante ressaltar que a passagem de A virgem da macumba  selecionada por Lemos Britto reiterava a negação, bastante comum no  período, das religiosidades afro-brasileira. Em sua análise e  levantamento, o autor finaliza o excerto de A virgem da macumba  com a seguinte assertiva: “A macumba, aliás, é sabidamente um ponto de  corrupção de menores e mulheres feitas.” (Britto: 1946, 39)
As aberrações sexuais, as forças latentes da herança, o desvio  mórbido e a pederastia permeiam o olhar de Lemos Britto sobre os negros  projetando-os das páginas da literatura brasileira em nítida associação  com as teorias que fundamentavam práticas médicas e proposituras  jurídicas, dispostas inclusive em regime de legislação penal. Como o  autor afirmava, a literatura prestaria um serviço inapreciável à  organização social e a ciência criminal permitindo o reconhecimento de  tipos desviantes, seus perfis e sociabilidades: Rodolpho Theophilo  punha-nos em contato com Punaré, o negro cearense que matou uma criança  para comer tendo à mão caça abundante (…) um jovem escritor paraense nos  pinta o quadro de outro prêto que assassina o patrão paralítico  arremessando-o a uma fogueira em tôrno da qual momentos antes desfilara  um cortejo festivo. Neles, e sem o pretender, a literatura desenvolve o  tema da sobrevivência atávica dos instintos inferiores da raça negra…  (Britto: 1946, 40)
Na primeira metade do século XX, os negros eram comumente  identificados como degenerados, criminosos natos, figuras anômalas que  disseminavam o mal, a morte e a doença. As representações que daí  emergiam, ampliavam as distâncias pois ampliavam as imagens que exibiam  os negros como bestiais, sensuais, corruptores e assassinos, verdadeiras  celebridades do mundo do crime.
III. 
Mesmo que examinado nos seus próprios termos e em seu contexto, o  livro de Lemos Britto é um registro valioso para o entendimento das  questões afetas à discriminação racial no Brasil. As imagens que o autor  recupera ao selecionar os crimes e os criminosos na literatura  brasileira, acabam por apontar como esses tipos foram assimilados ao  longo da história nacional, permitindo dimensionar os prejuízos daí  decorrentes na medida em que exprime uma visão altamente  segregacionista, intimamente ligada à teoria da degeneração racial  proposta pela antropologia criminal.
Trazer à tona os prejuízos morais e as associações indevidas que  evocaram os negros como figuras anômalas, bestiais, lúbricas, implica em  desconstruir um tipo de representação que foi, durante muito tempo,  assumida como verdade e tornada fonte para uma suspeição generalizada  entre os manipuladores técnicos e os controladores do social. Os  fragmentos evidenciados permitem remontar uma produção discursiva  pautada em arranjos classificatórios que estabeleciam como critérios à  identificação e significação social das pessoas a cor da pele, o tipo de  cabelo, os traços anatômicos e a origem étnica.
A literatura brasileira, obviamente, não se resume ao olhar restrito  de Lemos Britto, apresentando uma gama variada de personagens, tramas e  comportamentos muitas vezes diametralmente opostos ao olhar do autor.  Porém, ao lançar mão das associações expostas, as quais vinculavam os  afro-brasileiros a tipos criminais degenerados, pretendeu-se identificar  significados e focalizar imagens que foram preponderantes à permanência  de uma rede de sociabilidade danosa, vulgar e idiossincrática, mas  ainda reconhecível na ordem social vigente, cujas vicissitudes têm  levado a segregacionismos, suspeições generalizadas, torturas e mortes  de pessoas negras pelo fato de serem negras.
Evocar as imagens e as representações filtradas pelo olhar de Lemos  Britto, Presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Federal,  Presidente da Sociedade Brasileira de Criminologia, Professor nas  Faculdades Nacional de Direito e Politécnica da Bahia e membro da  Academia Carioca de Letras, implicou desconstruir um discurso que se  mostrou hegemônico acerca das manifestações dos fenômenos raciais, tanto  ao nível das idéias, que induz a acreditar em uma realidade que não é  verdadeira, quanto ao nível da práxis, que se manifesta através dos atos  da emoção (ódio, inveja, repulsa, agressividade), isto é, de  exteriorização do fenômeno racial (Carneiro: 1996, 22).
Referências:
BERNARDI, C de. O lendário meneghetti: imprensa, memória e poder. São Paulo: Annablume, 2000.
BRITTO, L. O crime e os criminosos na literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
CAMPOS, P. F. de S. Os crimes de preto Amaral: representações da degenerescência em São Paulo. 1920.  Assis, 2003, 325f. Tese (Doutorado em História) Faculdade de Ciências e  Letras – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
CARNEIRO, M. L. T. “O discurso da intolerância. Fontes para o estudo do racismo”. In: Di CREDDO, M. do C. S. Fontes históricas: abordagens e métodos. Assis: Programa de Pós-Graduação em História, 1996. p. 21-32.
MOURA, C. As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1990.
* PAULO FERNANDO DE SOUZA CAMPOS é  Doutor em História e Pesquisador Associado do Núcleo Negro da UNESP  para Pesquisa e Extensão (NUPE / PROEX / UNESP). Texto originalmente  apresentado como comunicação no II Encontro de Professores de  Literaturas Africanas de Língua Portuguesa “Balanços e Perspectivas”  realizado pelo Centro de Estudos Portugueses da Universidade de São  Paulo – CEP/USP em outubro de 2003. Especial agradecimento a Profa. Dra. Rita Chaves. Publicado na REA, nº 31, dezembro de 2003, disponível em 
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