História esquecida
de uma operária assassinada
pela Guarda Republicana
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(chamava-se Mariana Torres ...)
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Há 96 anos, as mulheres das fábricas de Setúbal, com salários que oscilavam entre os 350 e os 400 reis, exigiam aumentos de 50 reis por hora. O advento das máquinas de soldar e a crise da indústria conserveira ameaçavam pôr no desemprego milhares de operários. Declarada a greve a 21 de Fevereiro de 1911 – tinha a República cinco meses –, depressa se revelou a intransigência dos patrões. Sucederam--se os incidentes violentos, ao ponto de o administrador do concelho encerrar duas associações operárias e banir da cidade dois sindicalistas. No dia 25 de Fevereiro, o operariado de Setúbal declarou a greve geral. Foram enviados para a cidade vários contingentes militares e a canhoneira Zaire. Os trabalhadores, intimidados, regressaram ao trabalho no dia 28, mas não as mulheres: recusavam retomar o trabalho enquanto não lhes dessem os aumentos de salário. Os industriais respondem então com o lock-out. A 13 de Março, dão-se confrontos na fábrica Costa e Carvalho, invadida pelas grevistas quando se apercebem de que mulheres da família do patrão as substituíam no trabalho de enlatar o peixe. São insultadas e agredidas por alguns dos 50 soldadores presentes (os soldadores, categoria mais bem paga, não tinham aderido à greve). Paulino de Oliveira, republicano conhecido e irmão da proprietária, chega ao ponto de dar chibatadas a várias mulheres. Em seguida, como as mulheres vaiassem os soldados da Guarda Republicana que protegiam as carroças de peixe em serviço na fábrica, a guarda carregou, dispersando as grevistas a tiro e à coronhada. Entre os operários, muitos feridos e dois mortos: Mariana Torres e António Mendes. Todas as fábricas reabriram na segunda semana de Abril, com as operárias e os operários derrotados e de luto. Significativamente, da jovem operária assassinada nada se sabe, e até o seu nome se perdeu nos relatos, só muito mais tarde tendo sido recuperado.Dois dias depois dos assassinatos de Setúbal tinha-se realizado em Lisboa uma reunião de protesto de representantes das associações operárias e a 20 de Março foi proclamada uma paralisação do trabalho por 24 horas, reclamando a demissão do administrador do concelho de Setúbal, a readmissão de alguns dos despedidos e a libertação dos operários que tinham sido presos. Muitos milhares de operários de Lisboa abandonaram as fábricas e oficinas em apoio dos seus camaradas setubalenses.Aquela tarde de 13 de Março, ao fim de três semanas de conflito, foi “a primeira nódoa de sangue na República”(1) e “um dos [seus] mais tremendos pesadelos”(2) . E também um grande revés para as mulheres, que passaram a trabalhar 9 horas em vez de 8, e para os moços de fábrica, que passaram a receber pelo trabalho nocturno 40 reis, quando antes recebiam 50. O sindicalista Carlos Rates, que animara a greve, foi detido(3).
Uma feminista contraditória
A sangrenta repressão na fábrica Costa e Carvalho pôs em causa Ana de Castro Osório, a mais ilustre feminista da época, pela sua ligação familiar à dona da fábrica e a Paulino de Oliveira, seu marido. Criticada no Germinal de Setúbal pelo anarquista Martins dos Santos(4), Ana de Castro Osório respondeu, em artigo no Radical (propriedade de seu marido), que “a greve das mulheres das fábricas de conserva foi extemporânea e, mais ainda, injusta”. Discordava que se transformasse a associação num órgão reivindicativo e aconselhava antes as operárias a cotizar-se para fundar uma escola primária para elas e para os filhos. Acusava a greve de “ser estimulada e aproveitada pelos que nutrem ódio à República” e as grevistas de serem manipuladas como “carne de canhão para o triunfo dos superiores”, isto é, os operários soldadores das fábricas de conservas. Em resposta à alegação das operárias de que defendiam o pão dos seus filhos, Ana de Castro Osório justificava que “os fabricantes também defendem o dos seus” e “lutam para sustentar uma indústria que não tem grandes condições de resistência”. Como os sindicalistas, em resposta, organizam o boicote à venda do jornal, O Radical contra-ataca, a 6 de Abril: “O pouco senso, menos desculpável até que o das mulheres, de todo incultas e inexperientes, chegou à loucura de tentarem uma greve geral – querendo bloquear burgueses e não burgueses, a cidade inteira, pela fome, pela sede, e até pela… imundície amontoada!” Por último, numa derradeira edição, o jornal republicano ataca “As mulheres… desgovernadas”: “Até as mais intransigentes, as mais danadas, já vão solicitar bilhetinho, um cartão misericordioso, que lhes permita obter trabalho noutras fábricas!… (…) Malditos!(5)”A amargura veemente desta praga estava relacionada com a iminente partida do casal e o fecho inesperado do jornal. Com efeito, em Maio, Ana de Castro Osório acompanhou ao Brasil o marido, subitamente nomeado cônsul de Portugal em S. Paulo, numa ausência que alguns equipararam a exílio. Regressada a Portugal em 1913, a feminista não mais retornou a Setúbal e passou a residir em Lisboa.Na cidade sadina, e durante vários anos, a data do 13 de Março foi assinalada com concorridas manifestações públicas de protesto junto às campas dos grevistas mortos, seguidas de sessões de propaganda promovidas pelas associações operárias.A República e as mulheres do povoA Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, organizada em 1909 por Ana de Castro Osório, nunca teve mais de 500 aderentes. A sua desmoralização ter-se-á acentuado quando, a 14 de Março desse ano de 1911, o Partido Republicano aprovou a lei eleitoral sem consagrar o sufrágio universal, como sempre prometera, deixando de fora praticamente todas as mulheres. Os incidentes da greve e a polémica gerada em volta das posições assumidas por Ana de Castro Osório terão contribuído também para este afastamento em massa.Dias depois dos dramáticos incidentes de Setúbal, esta escrevia, em resposta a uma operária que se queixava do desinteresse das intelectuais em educar as operárias: “A mulher do povo é que, em geral, não tem correspondido à boa vontade que as intelectuais têm tido para com ela, malsinando-lhe os seus intuitos umas vezes, desconhecendo-os outras, e ainda outras acolhendo todas as iniciativas que lhes cumpria auxiliar com a sua presença e boa vontade, com a mais escarninha indiferença”. E concluía, numa nota em que fica patente a decepção: “Em todas as terras onde as senhoras que pertencem à Liga têm tentado chamar a si a mulher do povo, pouco ou nada se tem conseguido”(6).Esta atitude reflecte o sentimento geral das restantes republicanas daquele tempo. Longe ia já o tempo em que Ana de Castro Osório via com entusiasmo a luta social: “…A mulher tem o direito, mais, tem o dever de entrar na lide e, ao lado do oprimido, do fraco, pugnar pela felicidade ou pela menor desgraça dos que sofrem”.(7) Aliás, por esta altura, e certamente para marcar a sua distância em relação a determinadas sensibilidades na Liga, ela fundou, com outras, a Associação de Propaganda Feminista, cujo fim era “elevar a mulher pela educação e pela instrução”. Num discurso de 1912, dirá: “A nossa luta não é, por agora, a campanha frondista das ruas e dos comícios. Não! Deixemos a outras esse papel glorioso e ruidoso que é necessário também, e caminhemos nós, sem nos hostilizarmos mutuamente, porque todas as propagandas femininas são úteis…”(8) O núcleo de 200 a 300 burguesas combativas que antes de 1910 liderava esse movimento de opinião – irmãs de luta dos políticos republicanos – prosseguirá, agora virado para dentro, a sua estratégia de classe, que deixava de fora a grande maioria das portuguesas. A visibilidade da causa feminista declina a partir de 1913, quando se torna claro que o grupo parlamentar republicano nunca consagrará o direito de voto para todas as mulheres, já para não falar na igualdade na família, no trabalho e na educação.O feminismo anti-operário, tornado dominante, limitará a sua actividade aos aspectos associativos e assistenciais e ao apoio incondicional à política dos dignitários republicanos (incluindo a campanha para o alistamento no Corpo Expedicionário Português que irá combater em França), apesar do apoucamento das suas reivindicações mais avançadas por parte daqueles. As mulheres das outras classes ficaram votadas ao ostracismo.À medida que se ia afirmando o carácter burguês do movimento de emancipação, também nas lutas operárias deixaram de ter lugar os ideais feministas, tornados impopulares e considerados como uma causa estranha à classe. Comentários deste género eram frequentes: “A mulher quer o voto? Não! Faço-lhe essa justiça. Quem o pretende é uma reduzida minoria de ambiciosas de espírito tacanho, que nada mais vêem que a bonita figura que poderiam vir a fazer num parlamento, falando e discutindo, rubras, indignadas, em rasgos sublimes de oratória.”(9) Foi o descaso dos republicanos em geral pela condição feminina nas camadas laboriosas e o desprezo dos seus sucessivos governos pelas cidadãs que proporcionou a Salazar, em 1928, um forte apoio das mulheres do povo. A “penúria agradável” da “casa portuguesa” em que o ditador as quis fazer viver, sendo já outra história, é no entanto a consequência desta.
Uma feminista contraditória
A sangrenta repressão na fábrica Costa e Carvalho pôs em causa Ana de Castro Osório, a mais ilustre feminista da época, pela sua ligação familiar à dona da fábrica e a Paulino de Oliveira, seu marido. Criticada no Germinal de Setúbal pelo anarquista Martins dos Santos(4), Ana de Castro Osório respondeu, em artigo no Radical (propriedade de seu marido), que “a greve das mulheres das fábricas de conserva foi extemporânea e, mais ainda, injusta”. Discordava que se transformasse a associação num órgão reivindicativo e aconselhava antes as operárias a cotizar-se para fundar uma escola primária para elas e para os filhos. Acusava a greve de “ser estimulada e aproveitada pelos que nutrem ódio à República” e as grevistas de serem manipuladas como “carne de canhão para o triunfo dos superiores”, isto é, os operários soldadores das fábricas de conservas. Em resposta à alegação das operárias de que defendiam o pão dos seus filhos, Ana de Castro Osório justificava que “os fabricantes também defendem o dos seus” e “lutam para sustentar uma indústria que não tem grandes condições de resistência”. Como os sindicalistas, em resposta, organizam o boicote à venda do jornal, O Radical contra-ataca, a 6 de Abril: “O pouco senso, menos desculpável até que o das mulheres, de todo incultas e inexperientes, chegou à loucura de tentarem uma greve geral – querendo bloquear burgueses e não burgueses, a cidade inteira, pela fome, pela sede, e até pela… imundície amontoada!” Por último, numa derradeira edição, o jornal republicano ataca “As mulheres… desgovernadas”: “Até as mais intransigentes, as mais danadas, já vão solicitar bilhetinho, um cartão misericordioso, que lhes permita obter trabalho noutras fábricas!… (…) Malditos!(5)”A amargura veemente desta praga estava relacionada com a iminente partida do casal e o fecho inesperado do jornal. Com efeito, em Maio, Ana de Castro Osório acompanhou ao Brasil o marido, subitamente nomeado cônsul de Portugal em S. Paulo, numa ausência que alguns equipararam a exílio. Regressada a Portugal em 1913, a feminista não mais retornou a Setúbal e passou a residir em Lisboa.Na cidade sadina, e durante vários anos, a data do 13 de Março foi assinalada com concorridas manifestações públicas de protesto junto às campas dos grevistas mortos, seguidas de sessões de propaganda promovidas pelas associações operárias.A República e as mulheres do povoA Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, organizada em 1909 por Ana de Castro Osório, nunca teve mais de 500 aderentes. A sua desmoralização ter-se-á acentuado quando, a 14 de Março desse ano de 1911, o Partido Republicano aprovou a lei eleitoral sem consagrar o sufrágio universal, como sempre prometera, deixando de fora praticamente todas as mulheres. Os incidentes da greve e a polémica gerada em volta das posições assumidas por Ana de Castro Osório terão contribuído também para este afastamento em massa.Dias depois dos dramáticos incidentes de Setúbal, esta escrevia, em resposta a uma operária que se queixava do desinteresse das intelectuais em educar as operárias: “A mulher do povo é que, em geral, não tem correspondido à boa vontade que as intelectuais têm tido para com ela, malsinando-lhe os seus intuitos umas vezes, desconhecendo-os outras, e ainda outras acolhendo todas as iniciativas que lhes cumpria auxiliar com a sua presença e boa vontade, com a mais escarninha indiferença”. E concluía, numa nota em que fica patente a decepção: “Em todas as terras onde as senhoras que pertencem à Liga têm tentado chamar a si a mulher do povo, pouco ou nada se tem conseguido”(6).Esta atitude reflecte o sentimento geral das restantes republicanas daquele tempo. Longe ia já o tempo em que Ana de Castro Osório via com entusiasmo a luta social: “…A mulher tem o direito, mais, tem o dever de entrar na lide e, ao lado do oprimido, do fraco, pugnar pela felicidade ou pela menor desgraça dos que sofrem”.(7) Aliás, por esta altura, e certamente para marcar a sua distância em relação a determinadas sensibilidades na Liga, ela fundou, com outras, a Associação de Propaganda Feminista, cujo fim era “elevar a mulher pela educação e pela instrução”. Num discurso de 1912, dirá: “A nossa luta não é, por agora, a campanha frondista das ruas e dos comícios. Não! Deixemos a outras esse papel glorioso e ruidoso que é necessário também, e caminhemos nós, sem nos hostilizarmos mutuamente, porque todas as propagandas femininas são úteis…”(8) O núcleo de 200 a 300 burguesas combativas que antes de 1910 liderava esse movimento de opinião – irmãs de luta dos políticos republicanos – prosseguirá, agora virado para dentro, a sua estratégia de classe, que deixava de fora a grande maioria das portuguesas. A visibilidade da causa feminista declina a partir de 1913, quando se torna claro que o grupo parlamentar republicano nunca consagrará o direito de voto para todas as mulheres, já para não falar na igualdade na família, no trabalho e na educação.O feminismo anti-operário, tornado dominante, limitará a sua actividade aos aspectos associativos e assistenciais e ao apoio incondicional à política dos dignitários republicanos (incluindo a campanha para o alistamento no Corpo Expedicionário Português que irá combater em França), apesar do apoucamento das suas reivindicações mais avançadas por parte daqueles. As mulheres das outras classes ficaram votadas ao ostracismo.À medida que se ia afirmando o carácter burguês do movimento de emancipação, também nas lutas operárias deixaram de ter lugar os ideais feministas, tornados impopulares e considerados como uma causa estranha à classe. Comentários deste género eram frequentes: “A mulher quer o voto? Não! Faço-lhe essa justiça. Quem o pretende é uma reduzida minoria de ambiciosas de espírito tacanho, que nada mais vêem que a bonita figura que poderiam vir a fazer num parlamento, falando e discutindo, rubras, indignadas, em rasgos sublimes de oratória.”(9) Foi o descaso dos republicanos em geral pela condição feminina nas camadas laboriosas e o desprezo dos seus sucessivos governos pelas cidadãs que proporcionou a Salazar, em 1928, um forte apoio das mulheres do povo. A “penúria agradável” da “casa portuguesa” em que o ditador as quis fazer viver, sendo já outra história, é no entanto a consequência desta.
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Texto de Ana Barradas
In "Greve das conserveiras de Setúbal"
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Fontes :
(1) O Radical, 19 de Março.
(2) O operariado e a República Democrática, 1910-1914, p. 265.
(3) Carlos Rates, mais tarde fundador do Partido Comunista, era então dirigente da Associação dos Trabalhadores e da União Local de Trabalhadores.
(4) Germinal, 25/2/1911.(5) O Radical, a 27 de Abril.
(6) O Radical de 6/4/1911,
Fontes :
(1) O Radical, 19 de Março.
(2) O operariado e a República Democrática, 1910-1914, p. 265.
(3) Carlos Rates, mais tarde fundador do Partido Comunista, era então dirigente da Associação dos Trabalhadores e da União Local de Trabalhadores.
(4) Germinal, 25/2/1911.(5) O Radical, a 27 de Abril.
(6) O Radical de 6/4/1911,
http://isabelvictor150.blogspot.pt/2007/11/blog-post_22.html
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