DIA DE PORTUGAL
* João Pedro Marques
João Pedro Marques, historiador, acredita que Portugal não é um país racista
TEXTO CHRISTIANA MARTINS E HENRIQUE
MONTEIRO
Polémico, não receia confrontar os afrodescendentes ao dizer
que foram os brancos que defenderam o fim generalizado da escravatura no mundo
ocidental.
Que alternativa havia no século XVI ao modelo de
colonização português?
A escravidão não desapareceu da Europa com a queda do
Império Romano. Os escravos vinham trazidos pelos mongóis. Eram brancos. No
século XIII, com as Cruzadas, os ocidentais conheceram a produção açucareira na
Terra Santa e associaram-na à exploração intensiva da mão de obra. Esse modelo
foi passando para o Ocidente: Chipre, Creta, Sicília, sul de Espanha e
Portugal, que já tinha escravos mouros. E há uma coincidência infeliz para os
africanos: o momento em que Portugal avança na costa africana e contacta com as
populações subsarianas, é o mesmo em que se interrompe o fornecimento de
escravos do Oriente e a necessidade de mão de obra é respondida pela
disponibilidade que encontram em África, onde há muito havia escravatura
interna.
A escravatura anterior à expansão normaliza o tráfico
negreiro?
Sim, há jurisprudência e pensamento filosófico sobre a
relação entre escravos e senhores, a posse da pessoa e da sua prole: escravo é
alguém que não tem posse sobre si próprio.
Este pedido de
desculpas é uma alavanca política
Porque Portugal beneficiou da ideia de um colonialismo
“português suave”?
Em Angola, os portugueses estabeleceram-se com relações de
proximidade, houve uma africanização. No século XV havia quem, para fugir à
justiça real, saísse dos navios para a costa de África, eram os “lançados”, que
viviam nas comunidades locais, casavam com mulheres poderosas e serviam de
intermediários com os portugueses que iam comprar escravos. Depois, Gilberto
Freyre desenvolve a ideia da propensão dos portugueses de se ligarem aos
locais. É muito diferente da relação com os alemães ou os belgas, que chegam
tardiamente, no final do século XIX, e trazem uma ideia de extermínio.
A abordagem distinta não ilude a presença de violência?
Claro que não. O racismo na segunda metade do século XIX é
uma teoria e uma convicção em crescimento; as pessoas acreditam que o negro é
um ser inferior, alguém que só a pancada será possível civilizar e fazer
trabalhar. À época colocou-se um problema moral, filosófico e jurídico.
Perguntava-se quem eram aquelas pessoas e supunha-se que eram condenados, pois
os potentados negros vendiam-nos como adúlteros e ladrões, mas não havia meio
de os brancos saberem.
A elite portuguesa preocupava-se em promover a libertação?
Pouco, porque Portugal começou tarde e foi perro no caminho
abolicionista. Quando Sá da Bandeira consegue passar mais leis tendentes à
libertação da escravidão, já havia um refluxo da maré. Nos meados do séc. XIX
começou a fixar-se a convicção de que o negro era mandrião. Já não era possível
manter a escravidão por razões morais, mas defendia-se uma tutela paternal que
obrigasse os vadios, como eram chamados, a trabalhar. Quando Portugal aboliu a
escravatura, parte da elite tinha a convicção de que teria de ser substituída
pelo trabalho forçado, o que acontece em 1870.
O abolicionismo em Portugal vem acompanhado pelo racismo?
Não, o abolicionismo do fim do século XVIII não tem uma
visão racista, mas no século XIX, com a desilusão e o desenvolvimento das
teorias racistas, uma coisa engrena na outra.
Nas colónias portuguesas houve um sentimento
abolicionista?
Não. Luanda, um grande porto exportador de escravos durante
séculos, não teve nenhuma revolta escrava. Os escravos reagiam de várias formas
à condição horrível em que viviam. Se pudessem, fugiam e formavam quilombos. Às
vezes revoltavam-se, mas não eram contra a escravidão, apenas contra a sua
própria escravidão. Muitas vezes negociavam escravos para obter armas e
pólvora. Em África não há vestígios de líderes ou pensadores abolicionistas
naquela época. É uma ideia ocidental.
Esta narrativa é rejeitada pelos afrodescendentes.
A história está a ser falsificada. Essa narrativa visa dar
às comunidades negras elementos de identificação e orgulho. Mas não é história:
é ideologia.
Criou-se uma
situação em que o negro não pode ser criticado porque é racismo
A singularidade ocidental está em ter acabado com a
escravatura e condenar o racismo como algo desumano?
Sim. O que é específico deste sistema foi ter colocado um
fim à escravatura. Não é simpático dizer que os escravos ainda têm de agradecer
a alguns brancos.
Então não coloca a questão do pedido de desculpas
histórico?
Não faz sentido. Em primeiro lugar porque era aceite pelas
duas partes, a que vendia e a que comprava. E porque só foi considerado um
crime a partir do século XVIII. Temos de ir devagar. Por isso, só entidades sem
responsabilidade direta o podem fazer, como o Papa.
A culpa não é uma herança?
Este pedido de desculpas é uma alavanca política para se
pedir o ressarcimento material. É preciso dizer-lhes que não são vítimas nem
herdeiros da escravatura: esses estão no Brasil. Os que estão cá descendem no
máximo de quem vendeu os escravos. Criou-se uma situação em que o negro não
pode ser criticado porque é racismo.
https://expresso.pt/sociedade/2021-06-06-10-de-junho.-Os-escravos-ainda-tem-de-agradecer-a-alguns-brancos-diz-Joao-Pedro-Marques-3ac5966d
Sem comentários:
Enviar um comentário