domingo, 6 de junho de 2021

João Pedro Marques - “Os escravos ainda têm de agradecer a alguns brancos”

 

DIA DE PORTUGAL

* João Pedro Marques 

João Pedro Marques, historiador, acredita que Portugal não é um país racista

TEXTO CHRISTIANA MARTINS E HENRIQUE MONTEIRO

Polémico, não receia confrontar os afrodescendentes ao dizer que foram os brancos que defenderam o fim generalizado da escravatura no mundo ocidental.

Que alternativa havia no século XVI ao modelo de colonização português?

A escravidão não desapareceu da Europa com a queda do Império Romano. Os escravos vinham trazidos pelos mongóis. Eram brancos. No século XIII, com as Cruzadas, os ocidentais conheceram a produção açucareira na Terra Santa e associaram-na à exploração intensiva da mão de obra. Esse modelo foi passando para o Ocidente: Chipre, Creta, Sicília, sul de Espanha e Portugal, que já tinha escravos mouros. E há uma coincidência infeliz para os africanos: o momento em que Portugal avança na costa africana e contacta com as populações subsarianas, é o mesmo em que se interrompe o fornecimento de escravos do Oriente e a necessidade de mão de obra é respondida pela disponibilidade que encontram em África, onde há muito havia escravatura interna.

A escravatura anterior à expansão normaliza o tráfico negreiro?

Sim, há jurisprudência e pensamento filosófico sobre a relação entre escravos e senhores, a posse da pessoa e da sua prole: escravo é alguém que não tem posse sobre si próprio.

Este pedido de desculpas é uma alavanca política

Porque Portugal beneficiou da ideia de um colonialismo “português suave”?

Em Angola, os portugueses estabeleceram-se com relações de proximidade, houve uma africanização. No século XV havia quem, para fugir à justiça real, saísse dos navios para a costa de África, eram os “lançados”, que viviam nas comunidades locais, casavam com mulheres poderosas e serviam de intermediários com os portugueses que iam comprar escravos. Depois, Gilberto Freyre desenvolve a ideia da propensão dos portugueses de se ligarem aos locais. É muito diferente da relação com os alemães ou os belgas, que chegam tardiamente, no final do século XIX, e trazem uma ideia de extermínio.

A abordagem distinta não ilude a presença de violência?

Claro que não. O racismo na segunda metade do século XIX é uma teoria e uma convicção em crescimento; as pessoas acreditam que o negro é um ser inferior, alguém que só a pancada será possível civilizar e fazer trabalhar. À época colocou-se um problema moral, filosófico e jurídico. Perguntava-se quem eram aquelas pessoas e supunha-se que eram condenados, pois os potentados negros vendiam-nos como adúlteros e ladrões, mas não havia meio de os brancos saberem.

A elite portuguesa preocupava-se em promover a libertação?

Pouco, porque Portugal começou tarde e foi perro no caminho abolicionista. Quando Sá da Bandeira consegue passar mais leis tendentes à libertação da escravidão, já havia um refluxo da maré. Nos meados do séc. XIX começou a fixar-se a convicção de que o negro era mandrião. Já não era possível manter a escravidão por razões morais, mas defendia-se uma tutela paternal que obrigasse os vadios, como eram chamados, a trabalhar. Quando Portugal aboliu a escravatura, parte da elite tinha a convicção de que teria de ser substituída pelo trabalho forçado, o que acontece em 1870.

O abolicionismo em Portugal vem acompanhado pelo racismo?

Não, o abolicionismo do fim do século XVIII não tem uma visão racista, mas no século XIX, com a desilusão e o desenvolvimento das teorias racistas, uma coisa engrena na outra.

Nas colónias portuguesas houve um sentimento abolicionista?

Não. Luanda, um grande porto exportador de escravos durante séculos, não teve nenhuma revolta escrava. Os escravos reagiam de várias formas à condição horrível em que viviam. Se pudessem, fugiam e formavam quilombos. Às vezes revoltavam-se, mas não eram contra a escravidão, apenas contra a sua própria escravidão. Muitas vezes negociavam escravos para obter armas e pólvora. Em África não há vestígios de líderes ou pensadores abolicionistas naquela época. É uma ideia ocidental.

Esta narrativa é rejeitada pelos afrodescendentes.

A história está a ser falsificada. Essa narrativa visa dar às comunidades negras elementos de identificação e orgulho. Mas não é história: é ideologia.

Criou-se uma situação em que o negro não pode ser criticado porque é racismo

A singularidade ocidental está em ter acabado com a escravatura e condenar o racismo como algo desumano?

Sim. O que é específico deste sistema foi ter colocado um fim à escravatura. Não é simpático dizer que os escravos ainda têm de agradecer a alguns brancos.

Então não coloca a questão do pedido de desculpas histórico?

Não faz sentido. Em primeiro lugar porque era aceite pelas duas partes, a que vendia e a que comprava. E porque só foi considerado um crime a partir do século XVIII. Temos de ir devagar. Por isso, só entidades sem responsabilidade direta o podem fazer, como o Papa.

A culpa não é uma herança?

Este pedido de desculpas é uma alavanca política para se pedir o ressarcimento material. É preciso dizer-lhes que não são vítimas nem herdeiros da escravatura: esses estão no Brasil. Os que estão cá descendem no máximo de quem vendeu os escravos. Criou-se uma situação em que o negro não pode ser criticado porque é racismo.


https://expresso.pt/sociedade/2021-06-06-10-de-junho.-Os-escravos-ainda-tem-de-agradecer-a-alguns-brancos-diz-Joao-Pedro-Marques-3ac5966d



Sem comentários: