domingo, 27 de junho de 2021

Carmen Garcia - O avô é imortal

CRÓNICA

Eu queria levá-los à feira como o meu pai me fazia. Queria dar-lhes um churro cheio de gordura e chocolate e comprar-lhes senhas para que pudessem andar de carrossel até se sentirem tontos.

Carmen Garcia

27 de Junho de 2021, 8:06

"Mas no meio daquela noite tão estranha achei, por alguma razão, que ir comprar as farturas era uma coisa que fazia imenso sentido" NELSON GARRIDO

Em circunstâncias normais, estas palavras estariam a ser escritas ao mesmo tempo que a brisa me impregnava o quarto com o cheiro enjoativo das farturas e que uma voz cheia de efeitos me adentrava a casa enquanto anunciava o preço dos bilhetes para a pista de carrinhos de choque. Mas este é o segundo ano em que as circunstâncias não são normais e em que a cidade que me viu nascer não vê a Feira de São João tomar conta do Rossio.

Cresci com esta feira, sabem? Mesmo antes de viver em Évora, era certo e sabido que o Rossio, em Junho, era local de visita obrigatória. A minha mãe aproveitava para comprar facas de cabo de madeira, daquelas que cortam bem de verdade, e eu delirava com os carrosséis que me pareciam enormes e tão divertidos. O meu pai, que na verdade sempre gostou pouco de ajuntamentos, fazia o frete para nos ver felizes e conseguia-o. E talvez por perceber desde cedo que fazer 50 quilómetros para passear numa feira era uma coisa que ele só fazia porque nos amava, nunca deixei de o associar a estes dias.

Quando o meu pai fez 60 anos, menos de duas semanas após uma cirurgia cardíaca para colocação de uma válvula aórtica mecânica e de um bypass coronário, depois de um episódio de vómito em casa, o coração dele decidiu deixar de bater. E se não sabem o que é angústia, eu digo-vos que angústia é estar do lado de fora de uma sala de emergência depois de o vosso pai ter estado em paragem cardiorrespiratória, saberem que ele está a lutar pela vida lá dentro e não poderem fazer mais do que rezar ao Deus em que o vosso coração quer acreditar, mas que o vosso cérebro teima em gritar alto não existir.

Já era noite quando o meu pai estabilizou e foi levado para o bloco operatório. Apesar da intervenção recente ao coração, o problema estava na vesícula e tinha-se instalado uma inflamação da membrana que envolve a nossa cavidade abdominal. O quadro era grave e a cirurgia tinha tudo para ser complexa, não só pela medicação que tinha iniciado depois da cirurgia cardíaca, mas pelos valores analíticos que, nas palavras de um dos médicos que o assistiu na urgência, eram um autêntico descalabro. A cirurgiã, preocupada, veio falar comigo antes do procedimento e disse-me que o quadro era demasiado complexo e o prognóstico tão reservado que era melhor preparar a minha mãe para o pior e não acalentar grandes esperanças.

Faltou-me o ar. Juro que me faltou o ar. Queria respirar e não conseguia. Queria falar e não encontrava as palavras. Mas lá encontrei uma réstia de força e, depois de atabalhoadamente pedir à médica que fizesse o melhor possível, saí a correr do hospital e sentei-me num passeio escuro perto de um parque de estacionamento. Era dia 18 de Junho. E apesar de ter esquecido tal facto durante quase todo o dia, o cheiro a fritos dominava o ar e a música pimba sobrepunha-se a todos os ruídos. De repente, o ar voltou aos meus pulmões. Levantei-me e comecei a caminhar. Fui à feira.

Passeei pela feira durante as quatro horas que o meu telemóvel demorou a tocar. Mas soube antes de o atender que tinha corrido tudo bem. Não me perguntem como nem porquê e saibam que sou a pessoa menos mística deste mundo. Mas eu soube. E a voz da minha colega, do outro lado, confirmou. “Correu melhor do que o previsto”, disse-me ela. “Eu sei”, respondi.

Se ela achou que eu tinha enlouquecido, teve o mérito de disfarçar bem e, de forma muito profissional, informou-me que o meu pai iria seguir para os cuidados intensivos, mas que, muito provavelmente, seria ainda extubado durante a noite. E eu desliguei o telemóvel, dei mais uma volta pela feira, fui comprar duas farturas cheias de gordura, açúcar e canela como o meu pai costumava comer e levei-as para casa. Ninguém as comeria, é certo. Mas no meio daquela noite tão estranha achei, por alguma razão, que ir comprar as farturas era uma coisa que fazia imenso sentido.

Este é o segundo ano em que as circunstâncias não são normais e em que a cidade que me viu nascer não vê a Feira de São João tomar conta do Rossio

E se a feira de São João já era importante para mim, depois deste 18 de Junho, tornou-se ainda mais. Não falhei uma única edição, ainda que em 2018, a “rebentar pelas costuras” de grávida, tenha demorado menos do que 15 minutos no meu passeio anual. Mas tinha de lá ir, percebem? Tinha de ir respirar aquele vento frio (por incrível que pareça, faz sempre frio nas noites do São João), tinha de ir percorrer aquelas ruas de sempre, tinha de entrar nos pavilhões que parecem montados a papel químico de uns anos para os outros, porque uma parte da história da minha vida foi escrita ali.

Este ano estou em casa. A creche dos miúdos está fechada porque uma criança testou positivo à covid-19 e eles estão em isolamento profiláctico há 11 dias. Não houve feira pelo segundo ano consecutivo. Estamos em Junho, é noite, não ouço o barulho dos megafones onde se anunciam três cuecas de algodão por cinco euros e as ruas estão tão desertas que mais parecem assombradas. A pandemia continua a roubar-nos partes da vida. E estas pequenas partes são as que mais me têm doído.

Este isolamento dos pequenos tem sido mais difícil do que os longos períodos de confinamento que vivemos. Cada dia parece durar um século. Eles arrastam-se pela casa, perguntam quando podem ir ao parque e a casa dos avós, e eu arrasto-me atrás deles enquanto vou torcendo para que as horas passem mais depressa. Sinto que fomos os três apanhados por uma espécie de letargia que colocou a nossa vida em pausa. Eles são meninos pouco habituados a estar presos.

E eu queria levá-los à feira como o meu pai me fazia. Queria dar-lhes um churro cheio de gordura e chocolate e comprar-lhes senhas para que pudessem andar de carrossel até se sentirem tontos.

"Este isolamento dos pequenos tem sido mais difícil do que os longos períodos de confinamento que vivemos. Cada dia parece durar um século" MIGUEL NOGUEIRA

Queria que a infância deles fosse tão normal quanto possível. Sem máscaras, com festas de aldeia, com feiras e romarias. Acho que o meu mais novo nem tem noção de que é possível andar na rua de cara destapada e saber isso parte-me o coração. No outro dia, depois de lhes dar banho, fui dar com o Pedro a enfiar o cotonete com que lhe limpei os pavilhões auriculares dentro do nariz do irmão enquanto lhe dizia “sossegado que isto é para testar se tens o coronavírus”. E eu quase chorei.

Quase chorei porque de alguma forma sinto que estamos a roubar a estas crianças muitas oportunidades que não voltam, porque sei que um dia vou amaldiçoar cada hora que eles passaram longe do colo dos avós, porque sinto que esta pandemia, que teima em manter-se viva, depois de todas as contas feitas, nos vai sair demasiado cara em afectos e experiências.

É claro que nada disto vale uma vida e, por aqui, mais ou menos cansados, continuamos e continuaremos sempre a cumprir. Mas caramba, tanto que quero pegar nestes dois e levá-los pela mão a passear nas ruas da feira. E um dia, quando eles já tiverem capacidade para entender, u dizer-lhes que foi ali, naquelas ruas empedradas e naquela terra batida do Rossio, que tive a certeza de que o avô Januário estava vivo e que é ali e só ali, naquela feira, que a cada ano comprovo que o avô é imortal.

https://www.publico.pt/2021/06/27/impar/cronica/avo-imortal-1967590


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